Friday, May 30, 2008



SOMETIMES I WONDER
por John Getz

Vai fazer trinta anos que nasceu o hip-hop com a edição do single Rapper’s Delight dos Sugarhill Gang. A informação não é, como facilmente se percebe, rigorosa mas, efectivamente, Rapper’s Delight evidenciava o protagonismo de uma nova cultura urbana afro-americana, moldada pela memória do Black Power e formado de um novo cocktail político e cultural em que o graffiti, o break dance e o scratch expressavam a marcada distância existente entre o “street corner life” e o “middle-class confort”.



Os europeus absorviam as mensagens públicas do Black Power de uma forma, muitas vezes, romanceada, como se percebe em objectos como o sofá Safari dos Archizoom evocador de um imaginário veiculado pelos filmes Blackexploitation e associados à imagem de Pam Grier.

De entre os protagonistas do Exploitation, uma das minhas actrizes preferidas é Christina Lindberg. Durante vários anos tive no meu espaço de trabalho uma fotografia dela, a descansar no plateau, durante a rodagem de Thriller – A cruel Picture.



Lindberg está lindíssima e a imagem tem uma forte carga onírica que a torna particularmente sedutora.

O filme, também conhecido por They Call Her One Eye, foi realizado por um assistente de Bergman no final dos anos 70 e terá inspirado Tarantino na criação do seu Kill Bill. Por um conjunto de razões, sempre o achei um objecto contemporâneo do Safari dos Archizoom e de tudo aquilo que as novas editoras de hip-hop (a Sugarhill de Sylvia Robinson, a Profile, a Sleeping Bag e a Tommy Boy) iam fazendo.

Quase que conseguia jurar, de resto, que certo dia, durante um concerto dos Afrika Bambaata vi Christina Lindberg no meio do público, de pala do olho esquerdo, devidamente armada. Nada que me pareça improvável.

Wednesday, May 28, 2008



A conhecida questão colocada por Italo Calvino – Porquê ler os clássicos? – poderia ser recolocada assim: Como ler os clássicos? Compreendendo-os no seu ou no nosso tempo?

Se a questão do porquê poderia ser rapidamente respondida – porque sim – a questão do como é mais complexa na medida em que a resposta parece apontar, dado que por um lado a “leitura” é sempre um processo de tornar contemporâneo e por outro deverá envolver uma “ética da leitura”, para a necessidade de compreendermos os clássicos no seu e no nosso tempo, percebendo-os à luz de um contexto histórico passado e descobrindo-os na sua actualidade.

Se o trabalho de designers como Scott Hansen ou Kim Hiorthoy parece exemplificar a intemporalidade das linguagens clássicas, creio contudo que se trata mais de uma resistência ao tempo – resistência que pressupõe o choque da consistência de uma linguagem face ao frémito das modas – do que de uma intemporalidade.

No contexto nacional a questão a colocar é, contudo, outra: Onde encontrar os clássicos? Num país onde os historiadores de design são espécie rara (os trabalhos de Rui Afonso Santos, Theresa Lobo ou Maria Helena de Freitas surgem como pontuais excepções) a inexistência de herança histórica caracteriza o design português. Os designers portugueses não têm história, terão, na maioria dos casos, um imaginário (alemão, holandês ou norte-americano) e a ausência de história pressupõe um começar do zero, sem alicerce nem património.

Claro que, por vezes, ocorrem saudáveis epifenómenos, como o descoberta de Sebastião Rodrigues após a exposição da Gulbenkian ou, mais recentemente, a descoberta de Victor Palla, notabilíssimo arquitecto, fotógrafo e designer, sobretudo depois de Martin Parr ter incluído o livro Lisboa Cidade Triste e Alegre no seu The Photobook.

Pode ser que, em breve, se dê, por um qualquer acaso, uma nova e merecida atenção a Cristiano Cruz, Roberto Nobre, Fred Kradolfer, António Soares ou mesmo Maria Keil e Sena da Silva. E talvez, através de surtos ou (assim se espera) de uma forma mais consistente, o design gráfico português (e o mesmo se poderia dizer do design industrial) possa ainda vir a ter história.

Saturday, May 24, 2008





Dino Santos



O jornal A Bola sai amanhã para as bancas com uma nova imagem gráfica. Os tipos de letra para esta renovação gráfica do jornal foram desenhados por Dino Santos que na edição de hoje os apresenta: "Sugeri a utilização do tipo de letra Prelo que, pelo seu carácter mais neutro e compacto forneceria maior impacto à renovação gráfica do jornal A Bola (...)".

Jonathan Ive



Claire Beale, do The Independent, esteve no estúdio de Jonathan Ive em Cupertino na Califórnia e fez-lhe uma pequena entrevista , ocasião rara já que, como é sabido, o designer da Apple é avesso a dar entrevistas.

World Industrial Design Day



Dia 29 de Junho celebra-se o primeiro dia mundial do design industrial, anunciado há cerca de um ano por ocasião do 50 aniversário da ICSID, o dia será marcado por uma série de eventos que terão lugar em diversos países. Por último, diga-se, a título de curiosidade, que o logo do evento faz mesmo lembrar a Casa da Música.


O.H.W. Hadank



Não sendo um historiador, Steven Heller vai fazendo um bom trabalho de historiografia do design gráfico como se comprova, uma vez mais, no interessante artigo sobre o, pouco conhecido, designer gráfico e tipógrafo alemão Otto Hadank (1889-1965) por quem Paul Rand teria uma profunda admiração.


Scott Hansen e Obama



A campanha eleitoral norte-americana tem suscitado inúmeras discussões sobre o papel político desempenhado pelos designers gráficos na actualidade. A mais recente discussão está a acontecer no Metafilter e foi suscitada pelo cartaz de apoio a Obama feito por Scott Hansen.

Scott Hansen e Lisboa



Scott Hansen esteve, como é sabido, em Lisboa a participar no OFFF e fez uma série de magníficas fotografias da cidade que agora se publicam aqui.

O que motiva um recém licenciado em Design?



Já me questionei e já questionei os meus alunos diversas vezes sobre o que os motiva, certo de que a resposta à pergunta seguramente fornece indicações preciosas para uma reflexão sobre o modo como o design é actualmente pensado e praticado. Sarah Temple reuniu 15 designers recém licenciados e procura responder à questão na Creative Review.


Reedições



Vários clássicos da música indie dos anos 80 estão a ser reeditados. Dos La’s aos The House of Love há muito boa música para conhecer ou recordar. Espero para breve a reedição de um dos meus preferidos, os A.R.Kane.



Agenda




Maio é tradicionalmente um mês que nos oferece uma agenda cultural intensa e a semana que aí vem é bastante cheia. Já hoje há o fabuloso Pick-Up on South Street na Cinemateca. Nos próximos dias vale a pena estarmos atentos ao Alkantara, estou particularmente curioso em ver a Cláudia Dias, e aos Artistas Unidos a levarem à cena Ibsen e Fosse. Há as Feiras do Livro e Lygia Pape na Galeria Graça Brandão. A próxima sexta-feira termina na Casa da Música em mais uma noite de Clubbing com os Young Marble Giants e os Vampire Weekend, antes deles, ao longo da semana, haverá Cocorosie, Cat Power e Animal Collective. Parece-me bem.

Friday, May 23, 2008




A HEMEROTECA DIGITAL

A Hemeroteca Municipal de Lisboa encontra-se a desenvolver a sua hemeroteca digital.

O material já disponível para ser consultado on-line é bastante relevante e, sem dúvida, fundamental para um maior conhecimento das origens do design gráfico em Portugal.

Se a autonomia do Design em Portugal só é publicamente defendida no final da década de 1940, por ocasião do Salão Nacional de Artes Decorativas (1941), a verdade é que encontramos antes dessa data uma ideia de design de contornos bem definidos quer, no que então se denominava de artes decorativas, quer na tradição humorística, vinda da 2ª metade do séc. XIX, desenvolvida sobretudo por Raphael Bordalo Pinheiro e que assume particular importância nas duas primeiras décadas do séc. XX.



De facto, o protodesign gráfico português é indissociável do trabalho dos Humoristas, nomes como Jorge Barradas, Stuart Carvalhais, Leal da Câmara e, a partir do final dos anos 20, Carlos Botelho. Importa recordar que foi através dos salões dos humoristas portugueses (organizados a partir de 1912) que se revelaram ou afirmaram nomes como Cristiano Cruz, autor do fabuloso cartaz do II Salão (1913), Milly Possoz, Almada Negreiros, Eduardo Viana e, dois entre os maiores pioneiros do design gráfico português, Bernardo Marques e António Soares.

A António Soares e Jorge Barradas se deve, supostamente, a primeira tentativa de criação de um ateliê de design em Lisboa, tentativa fracassada devido à falta de encomendas.

Para consulta, na Hemeroteca Digital, encontramos algumas das publicações ligadas a Raphael Bordalo Pinheiro, nomeadamente a fundamental O António Maria, criada em 1879 ano do regresso do Brasil, e a Pontos nos ii.




Entre as revistas humorísticas do séc. XX o maior destaque vai para essa efémera publicação que foi O Riso d’a Vitória, na qual entre 1919 e 1920 colaboram Jorge Barradas, Emmerico Nunes, Leal da Câmara, que em Paris havia colaborado com a conhecida L’Assiette au Beurre, Stuart de Carvalhais entre outros.



Com outras características mas igualmente um projecto editorial decisivo, já disponível para consulta em linha, a Contemporânea criada em 1922 por José Pacheko, um dos maiores dinamizadores da cultura artística desse período. Da revista Contemporânea publicaram-se, até 1926, 13 números saídos irregularmente. Neste projecto colaboraram nomes tão diversos como Almada Negreiros, responsável pela criação das capas dos dois primeiros números, Fernando Pessoa e Marinetti, mas também António Sardinha e Canto da Maia, para além dos mais importantes humoristas dos anos 10 e 20.



Estando o projecto da Hemeroteca Digital numa fase ainda inicial, aguardamos com entusiasmo o muito que ainda falta, da ABC à Voga, da Orpheu à Athena para nos referimos apenas a revistas deste período. Diga-se aliás que o processo de digitalização não parece estar a seguir nenhum critério cronológico estando, de resto, já disponível a revista Quadrante publicada a partir de 1958 pela Associação Académica da Faculdade de Coimbra.



O QUE PODEM AS IDEIAS?
REFLEXÕES SOBRE OS PERSONAL VIEWS


“Não há debates significativos sobre design gráfico a acontecerem actualmente.”
Rudy VanderLans, Emigre, N. 49, 1999. (1)


Quando a 28 de Fevereiro de 2003 teve início a primeira conferência do ciclo Personal Views (2), não existia uma verdadeira referência ou modelo de conferência sobre design gráfico em Portugal. Os eventos anteriores resumiam-se a algumas iniciativas avulsas organizadas pelo Centro Português de Design ou decorrentes dos esforços das Escolas – sobretudo as privadas como o IADE e a ESAD – Superiores de Design. É certo que, em 2003, já haviam decorrido duas edições da Experimentadesign mostrando que em Portugal, ou pelo menos em Lisboa, existia público interessado em ver e pensar o design contemporâneo, constatação que, de resto, serviu de encorajamento tardio para em Março de 2003 o CPD organizar um importante congresso internacional o USER(R).

O número de Janeiro/Fevereiro de 2000 da revista Page destacava na capa uma frase de João Nunes onde se lia: “Não há design em Portugal”. A afirmação, coerente e objectivamente explicada na entrevista dada pelo então designer responsável pela imagem do Teatro Nacional de S. João, seria talvez mais significativa porque sublinhava diversas carências estruturais, apontava para a inexistência de uma verdadeira cultura de design, num período de alguma euforia que marcou o final da década de 1990.

Durante alguns anos, e subitamente a partir de meados dos anos 90, assistimos a uma, pelo menos aparente, transformação da cultura de design portuguesa: algumas empresas de design (como a Novodesign e a Protodesign) apresentavam um interessante volume de negócios; assistia-se a um acentuado dinamismo das relações procura/oferta; a novas possibilidades dadas pelo design digital; à criação, sobretudo em Lisboa e no Porto, de um novo cliente cultural e, mesmo, de um universo de tendências (que reforçou a visibilidade do trabalho de João Nunes, João Machado, Francisco Rocha, Henrique Cayatte, Jorge Silva e, mais tarde, de Ricardo Mealha ou Luís Miguel Castro); a uma “agitação” gerada por uma nova politica cultural (com a criação do Ministério da Cultura e uma série de eventos culturais de grande dimensão que culminam com a Expo98 e o Porto 2001). Esses anos viriam a revelar-se, pouco depois, exemplares no que a um crescimento não sustentado diz respeito e se é duvidoso que tenha existido um real e consolidado crescimento de mercado; se é notório que não se deu uma consistente criação de espaços de comercialização, circulação e exposição, de espaços de discussão e de meios e estruturas de investigação no Design português, torna-se claro que nesse período verdadeiramente apenas assistimos a um crescimento do meio académico com a criação do Departamento de Comunicação e Arte na Universidade de Aveiro em 1996 e o redimensionar de algumas das Escolas já existentes.


Em termos internacionais, os anos de 1990 são marcados pelo ciclo de conferências Modernismo & Ecletismo organizadas por Steven Heller em Nova York e, sobretudo, pela conferência Design Beyond Design organizada por Jan van Toorn que decorreu nos dias 7-8 de Novembro de 1997 na Jan van Eyck Akademie de Maastricht e onde se definiu um corpus teórico que será amplamente trabalhado pelo criticismo contemporâneo e que domina várias conferências do ciclo Personal Views.

Design beyond design. Critical reflection and the practice of visual communication, é publicado em livro por Jan van Toorn em 1998 com os contributos de Andrew Blauvelt, Gui Bonsiepe, Max Bruinsma, Sheila Levrant de Bretteville, Heinz Paetzold, Gérard Paris-Clavel, Rick Poynor, Michael Rock, Teal Triggs, entre outros, e representa o culminar de uma reflexão crítica persistente sobre a dimensão social e política do design, os seus valores e as suas prioridades contemporâneas.

Na apresentação do livro, Jan van Toorn escrevia que “Design beyond design. Critical reflection and the practice of visual communication ocupa-se da discrepância entre a dimensão sócio-económica e a dimensão simbólica no campo da informação e do consumo cultural, bem como das perspectivas de uma democratização dos media.” (3)

Esta reflexão vinha sendo trabalhada desde o início da década de 1990, em artigos como “Whatever happened to political graphics?” e “Guerrilla Graphics” de Steven Heller (Eye, N.4, Verão de 1991); “Good History/Bad History” de Tibor Kalman, J. Abbott Miller e Karrie Jacobs (Print, Março/Abril de 1991); “Can design be socially responsible” de Michael Rock (AIGA Journal of Graphic Design, N.1, 1992); “Whatever became of the content? De Rick Poynor (Eye, Verão de 1993); “There is such a thing as society” de Andrew Howard (Eye, N. 13, Verão de 1994); “What is this thing called graphic design criticism” de Michael Rock (Eye, N.16, Verão de 1995).

Em “There is such a thing as society”, Andrew Howard recuperava o, então esquecido, manifesto First Things First, escrito pelo designer inglês Ken Garland em 1964. “What makes the manifesto interesting today”, escrevia Howard, “is the realization that its premises appear as radical now as they did thirty years ago. And more significantly, the issue it addresses is as unresolved now as it was then”. (4)

O interesse gerado pelo texto de Andrew Howard e a reivindicação dos princípios críticos do Manifesto de Ken Garland assumida quer por algum criticismo, quer pelos Culture Jammers conduzidos por Kalle Lasn, levou a que o número 24 (Verão de 1997) da revista Eye dedicasse um significativo destaque ao pensamento crítico de Ken Garland e, sob o título “Ken Garland’s life in Politics”, alguns dos seus textos fossem aí reeditados e, finalmente, no final de 1998 o próprio manifesto First Things First fosse, de novo, publicado na revista Adbusters.

Como Rick Poynor (5) sublinha, o manifesto traçava uma linha de separação entre o design como comunicação e o design como persuasão. Poynor citava, a propósito, outro designer britânico, Jock Kinneir, segundo o qual “Os designers guiados por esta orientação estão menos preocupados com a persuasão e mais com a informação, menos preocupados com a categoria económica e mais com a fisiológica, menos com o gosto e mais com a eficiência, menos com a moda e mais com a comodidade. Estão empenhados em ajudar a sociedade a encontrar o seu rumo, a compreender as suas necessidades, em descobrir novos procedimentos…” (6)

Em grande medida estas preocupações estavam já presentes entre os designers gráficos em 1998, quando durante um fórum FUSE, Neville Brody afirmava que os designers estão “tão obcecados com a Web e as tecnologias digitais que nos esquecemos da mensagem (…) Imaginamo-nos capazes de fazer tudo e o nosso software ajuda-nos a acreditar que tal é possível (…) No entanto, devemos ir além do como e reconsiderar o quê e o porquê” (7), na mesma forma que haviam sido, um ano antes em 1997, sintetizadas com clareza por Andrew Howard na publicação, intitulada Em Foco, de trabalhos de alunos finalistas de Design de Comunicação da ESAD de Matosinhos. No Editorial da Em Foco, Howard escrevia que “O design gráfico tem experimentado uma crise interna nos últimos 7-8 anos, causada também por uma tecnologia em constante transformação, que revolucionou as ferramentas e, por isso, as formas como os designers gráficos criam as suas próprias formas de comunicar. Uma vez que as alterações na arquitectura de uma linguagem conduzem a alterações naquilo que somos capazes de exprimir e, consequentemente, de pensar, cedo as pessoas aprendem que são capazes de falar, de se exprimirem, em termos que, antes, não teriam imaginado. E quando isso acontece começam também a questionar-se o que será que querem dizer com o que dizem. Este facto produz todos os ingredientes necessários para uma clássica crise de identidade.” (8)

No sentido da seminal definição dada por Umberto Eco, Andrew Howard identificava uma crise no sentido de um momento de transição no qual algo que prevaleceu antes já não prevalece agora, não havendo ainda algo de novo para tomar o seu lugar. A crise identifica um espaço de questionação por resolver, um procura de definição ainda por estabelecer.

Algumas destas brechas constitutivas da disciplina, haviam sido reveladas no contexto da pós-modernidade que, no que ao design de comunicação diz respeito, coincide com a tomada de consciência da simultânea falência do edifício erguido pelo Projecto Moderno e da inexistência de um novo edifício seguro para habitar. Esta travessia, havia sido, em 1988, alvo de uma importante análise desenvolvida, entre outros, por John Thackara no seu Design after Modernism (9) onde se considera que “Actualmente, o design é promovido, não como uma força responsável, mas como uma ferramenta neutral destinada a um uso técnico (…) O Design não é uma ferramenta neutra; é uma actividade projectual cujos objectivos e procedimentos são ditados por interesses comerciais e políticos. O Design tem a ver com decisões e prioridades e, menos, com números e lógica.” (10)

Na sequência da publicação do First Things First Manifesto 2000 subscrito por alguns dos mais importantes designers gráficos e críticos de Design contemporâneos como Milton Glaser e Tibor Kalman, para além de Andrew Howard e Ken Garland, no AIGA Journal of Graphic Design, em 1999 11 e num contexto de crescente agitação social – marcado pelas crescentes manifestações dos activistas anti-globalização – assiste-se à multiplicação de conferências nas quais se questiona e debate a prática profissional e as lógicas de intervenção social do Design.



Entre os exemplos mais significativos, destacam-se a conferência Looking Closer organizada por Steven Heller e Alice Twemlow para a AIGA e, sobretudo, as Declarations of (inter)dependence que tiveram lugar entre 25 e 28 de Outubro de 2001 na Concordia University de Montreal e contaram com a presença de inúmeros subscritores do FTF2000 (como Jan van Toorn ou Teal Triggs) e de outros designers e críticos que, não estando entre os co-signatários, lhe partilhavam o espírito (casos de Mieke Gerritzen, Naomi Klein, Ian Noble ou Amy Franceschini).

É dentro deste contexto teórico directamente ligado ao criticismo contemporâneo, dentro de uma reflexão pós-pós-moderna, que os Personal Views encontravam o seu espaço de acção. No seu artigo sobre os Personal Views, intitulado “O design gráfico não é só publicidade”, publicado no jorna Público de 23 de Junho de 2007, Mário Moura considerava que a ideia por detrás do ciclo de conferências Personal Views é o debate sobre as responsabilidades sociais, culturais e políticas do design gráfico, cremos que, a ideia central dos Personal Views é, mais precisamente, a de propor aos seus profissionais – estando eles ligados ao Design enquanto designers, professores ou críticos – uma reflexão sobre a identidade do Design gráfico contemporâneo à luz da dimensão social, cultural e política ínsita à disciplina, trata-se, no fundo, de visar a construção de uma definição do Design gráfico resolvendo, pelo menos individualmente, as questões suscitadas pelo criticismo contemporâneo e, parcialmente, resumidas no texto do FTF2000.

Na primeira temporada, o Personal Views trouxe a Matosinhos, 26 reflexões sobre Design gráfico, desenvolvidas, entre outros, por Ken Garland, Phil Baines, Jan van Toorn, Katherine McCoy, Rick Poynor e Wim Crouwel 12, confrontados com importância de um assumpção individual de responsabilidades perante um cenário de crise.

Estes Personal Views parecem reforçar a ideia de que as várias crises – crise das instituições, crise de valores, crise do sujeito – que marcam o fim do século XX e o início do século XXI e vêm culminar no que Fernando Gil classificou de “crise geral do sentido”, reivindicaram ou conduziram à auto-revindicação de um design “autoral”, “mediador” e “activo” socialmente, com características, a muitos títulos, novas.

Este perfil do designer como “interventor político” se não é, em termos absolutos, original na história do design é, pelo menos, original face ao seu enquadramento actual: em nenhuma outra época, nos confrontámos com este estatuto do designer como agente político no interior de um enquadramento dominado por uma espécie de regime “metademocrático” e “metadoxo”, onde o espaço de construção e circulação das opiniões se alargou exponencialmente, até ao limite do espaço público ser partilhado, quase sem brechas, por duas potenciais formas de ditadura: a do marketing e a da doxa.

O que reduzia, consequentemente, o, assim chamado, “design socialmente responsável” a um protagonismo limitado, o protagonismo de “alimentar a esperança”. Nas palavras de Fernando Gil: “Não há alternativa. Felizmente o desenvolvimento das ciências e das artes e uma consciência social e politica que pouco a pouco se elabora contra o pano de fundo da crise, permitem-nos sem voluntarismo nem wishful thinking alimentar a esperança de se chegar ao fim do túnel”, o que significa que a incapacidade – pelo menos parcial – de encontrar soluções e o carácter idealista das propostas não lhes retira o mérito de serem capazes de gerar um discurso positivo e esperançoso

As questões colocadas por Andrew Howard ao longo dos primeiros Personal Views passavam pela constatação de que “descrever a natureza da nossa actividade dá lugar a várias interpretações. Ao moldar o conteúdo de outrem, as formas e as linguagens visuais que criamos tornam-se parte da mensagem, fazendo de nós autores por direito adquirido ou será que a nossa actividade se baseia mais no serviço, tornando-nos estilistas visuais, especialistas em encontrar as roupas certas para a mensagem certa? Que mensagem e informação comporta o nosso trabalho e a quem pertencem as mensagens? Em nome de quem é que falamos e a que propósitos culturais e sociais é que o nosso trabalho corresponde?”. (13)

Muitas destas reflexões estavam, simultaneamente, a ser desenvolvidas, em alguns casos pelos mesmos protagonistas, noutros locais, nomeadamente na antologia de textos Looking Closer, cuja publicação coordenada, entre outros, por Steven Heller para a Allworth Press, se inicia em 1994 num primeiro volume que conta com uma introdução de Steven Heller intitulada “Looking Closer at Design Criticism”. (14)

O abalo gerado pela publicação do Manifesto First Things First 2000 provocara, entretanto, as suas réplicas, levando à publicação de novos manifestos – o “voto de castidade” dos alunos de design do Central St. Martins inspirado no manifesto Dogme 95, escrito pelos cineastas dinamarqueses Lars von Trier e Thomas Vinterberg; o Disrepresentationism proposto pelos Experimental Jet set, inspirado num texto de Theo van Doesburg; o Socialist Designers Manifesto redigido pelo designer italiano Fabrizio Gilardino – e gerando diferentes reacções perante o teor dos mesmos.

Quando, a 26 de Janeiro de 2007 se inicia com a conferência de Andrew Blauvelt uma nova temporada de Personal Views (que contaria, entre outros, com as presenças de Neville Brody, Erik Spiekermann e dos Experimental Jetset) (15), o âmbito da reflexão dos Personal Views parecia ter-se alargado, derivando de uma reflexão que questiona os fundamentos do design gráfico, para uma reflexão que questiona os fundamentos das interacções entre uma disciplina em transformação – o Design – com outras disciplinas, com o Mercado e com a Sociedade atravessadas por uma idêntica transformação das suas fronteiras e lógicas internas de funcionamento.

Ao reflectir sobre estas mudanças, afigurava-se importante para Andrew Howard, no contexto de uma escola superior de design, questionar se os conceitos tradicionais de design são ainda legítimos ou se a própria noção de ortodoxia – afirmar que existe uma definição de design – terão sido substituídos por uma série de tomas de posição individuais. Neste sentido, os Personal Views procuravam inquirir da existência de se extrapolar uma definição consensual de design a partir dos pontos de vistas individuais de diversos dos seus profissionais.

Na apresentação da penúltima série dos Personal Views, Andrew Howard escrevia que “talvez se trate aqui de uma reflexão intelectual de uma cultura cujas fronteiras e distinções relativamente a outras áreas da nossa vida – entre o público e o privado; entre o desejo e a necessidade; entre a escolha e a participação – se tenham consumido e esbatido. A perda endémica do tecido social que daí resulta parece delinear um território que é ainda mais significativo.

Personal Views é, então, uma dessas tentativas de delineação do território, assente no princípio de que a procura de clareza e substância não deve ser confundida com tentativas de chegar a definições inquestionáveis. Não obstante as relações entre ideias e práticas, Personal Views interroga-se acerca daquilo que distingue a nossa actividade de todas as outras, daquilo que nós podemos fazer enquanto outros não podem, ou não querem. (…). É provável que nenhum dos oradores forneça uma resposta consensual, mas, em conjunto, todos irão construir um quadro a partir do qual os jovens designers em especial podem começar a formar um juízo acerca dos instrumentos intelectuais, assim como operacionais, necessários para construir e sustentar uma prática social com significado e valor.” (16)

Se há neste objectivo uma partilha de motivações e expectativas presentes na versão de 1964 do First Things First, um texto essencialmente ideológico em que o seu redactor – Ken Garland – e a quase totalidade dos seus subscritores, mesmo os nomes mais significativos como Caroline Benn, a mulher do politico Tony Benn, Edward Wright ou Anthony Froshaug não são figuras mediáticas e, também por isso, o discurso perde pese autoral e ganha dimensão colectiva, este desiderato é virtualmente impossível no contexto contemporâneo em que o protagonismo individual, mesmo que seja capaz de gerar um efeito catalisador, tende a não perder a sua carga “autoral”, “privada” e, deste modo, dificilmente se dilui e se reforça dentro de uma comunicação pública.


No seu artigo, Mário Moura retira três grandes ilações dos Personal Views: “em primeiro lugar, a crítica das relações entre design, comércio e cultura não é uma recusa completa do lado mais comercial do design, mas a consciência de que estas relações são complexas e contraditórias, alterando-se ao longo do tempo. Se no manifesto First things First original, por exemplo, o problema era a prioridade da publicidade em prejuízo da cultura, actualmente parece ser a fusão pura e simples entre cultura e branding, de que os designers acabam por ser vistos não só como cúmplices casuais, mas também como culpados conscientes. (…) Por outro lado, com a privatização crescente da cultura e o corte de subsídios do Estado, muitas instituições culturais começaram a socorrer-se dos serviços de designers para cativar novos públicos e novos mecenas. Embora o design gráfico ainda seja considerado pelos próprios designers como uma actividade essencialmente comercial, ligada à publicidade e ao marketing, muitos dos seus praticantes mais conhecidos trabalham em contextos culturais ou académicos.


Alguns, como Andrew Blauvelt e Wim Crouwel, assumiram o papel de comissários, como extensão natural da sua actividade enquanto designers, não se limitando a gerir a imagem gráfica de uma instituição, mas participando activamente na concepção de exposições, palestras e eventos” e outros, como Steven Heller, Rick Poynor ou Max Bruinsma assumiram-se como “escritores” de um modo que convida a diluir as fronteiras, em alguns contextos ainda fortemente demarcadas, entre a teoria e a crítica do Design – mesmo que seja eventualmente necessário refazer a teoria e repensar a prática tal como sugeria Andrew Blauvelt. (17)

Para Mário Moura a “lição final das Personal Views acaba por ser a revelação da existência em Portugal de um público fiel, interessado e participativo, disposto a deslocar-se de Lisboa, Coimbra ou Aveiro, por vezes mesmo de Faro, para assistir a uma conferência de design.”, um público que, progressivamente, ao longo dos sucessivos anos de Personal Views se revelava, também, mais informado e melhor preparado, o que reflectia, não só a importância educadora do evento, mas igualmente o enriquecimento e democratização dos espaços de divulgação e crítica de design, alguns deles, como o Design Observer ou, em Portugal, o Ressabiator de acesso livre na Web.

As mais recentes conferências dos Personal Views (18), desta que se apresenta como a última temporada do mais importante evento sobre Design gráfico que teve lugar em Portugal e, seguramente, um dos maiores e mais relevantes do mundo, prosseguem este longo diagnóstico de cinco anos, e cerca de meia centena de intervenientes, em torno de ideias que permitem pensar, descrever, definir, problematizar, contextualizar, historiografar e praticar formas de comunicação visual através das quais construímos processos de acção e interacção individuais e colectivos.

Se os Personal Views são, indiscutivelmente, uma enorme conferência sobre a dimensão política do design de comunicação, eles possibilitaram uma gradual e consolidada reflexão sobre os meios, as necessidades e os valores que estruturam uma disciplina especializada em comunicar – literalmente em pôr em comum – em procurar consensos, em exercer dinamicamente a mediação, a nossa voz em comunhão com a de outros.

Dessa reflexão sai reforçada a ideia de que o design não é um processo socialmente neutro, antes um exercício intencional que arrisca a mediação comunicativa, promovendo estratégias de diálogo, num espaço frequentemente dominado por interesses paradoxais; dessa reflexão sai também evidenciada a motivação da disciplina para, perante uma crise de valores generalizada, os questionar e comunicar, os produzir e propor, aliando à comunicação uma decisiva ética da acção. (19)

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1. A frase é escrita por Rudy VanderLans no “The Everything is for Sale Issue” (N.49, 1999) na revista Émigré onde é dado um significativo destaque ao manifesto First Things First escrito em 1964 por Ken Garland.
2. Evento comissariado pelo designer Andrew Howard para a ESAD – Escola Superior de Artes e Design de Matosinhos. http://www.esad.pt/personalviews/
3. Jan van Toorn (Ed.), Design beyond design. Critical reflection and practice of visual communication, Jan van Eyck Akademie Editions, 1998.
4. Andrew Howard, “There is such a thing as society”, IN Eye Magazine, No 13, 1994.
5. Rick Poynor, “First Things First, a brief history”, IN Adbusters, No 27, 1999.
6. Apud Rick Poynor, Idem, Pág. 8.
7. Rick Poynor, Eye, N. 29, 1998, Pág. 10.
8. Andrew Howard, “Editorial”, Em Foco, ESAD, Matosinhos, 1997.
9. John Thackara (Ed.), Design After Modernism, Thames and Hudson, London, 1988.
10. IDEM, Págs. 11-12.
11. O Manifesto First Things First 2000 foi publicado no AIGA Journal of Graphic Design, Vol. 17, N.2, 1999 e teve como co-signatários Jonathan Barnbrook; Nick Bell; Andrew Blauvelt; Hans Bockting; Irma Bloom; Sheila Levrant de Bretteville; Max Bruinsma; Sian Cook; Linda van Deursen; Chris Dixon; William Drenttel; Gert Dumbar; Simon Esterson; Vince Frost; Ken Garland; Milton Glaser; Jessica Helfand; Steven Heller; Andrew Howard; Tibor Kalman; Jeffery Keedy; Zuzana Licko; Ellen Lupton; Katherine McCoy; Armand Mevis; J. Abbott Miller; Rick Poynor; Lucienne Roberts; Erik Spiekermann; Jan van Toorn; Teal Triggs; Rudy Vanderlans e Bob Wilkinson.
12. Os restantes participantes foram: Lucienne Roberts; Ian Noble; Ricardo Mealha; Tony Credland; Henrique Cayatte; Teal Triggs; David Crow; Hamish Muir; Paul Elliman; Michael Rock; Nick Bell; Heitor Alvelos; Max Bruinsma; Robin Fior; Karel Martens; Armand Mevis&Linda van Deursen; Graphic Thought Facility; Garth Walker e Steven Heller.
13. Andrew Howard, citado do texto que acompanhava os primeiros desdobráveis dos Personal Views.
14. Michael Bierut, Steven Heller, William Drenttel e DK Holland (Eds.), Looking Closer: Critical Writings on Graphic Design, Allworth Press, New York, 1994.
15. Os outros participantes foram Adrian Shaughnessy; William Owen; Gerard Unger; Jon Wozencroft e Ellen Lupton.
16. Andrew Howard, citado do texto que acompanhava os desdobráveis da penúltima temporada dos Personal Views.
17. Andrew Blauvelt, “Remaking theory, rethinking practice”, IN Steven Heller (Ed.), The Education of a Graphic Design, Allworth Press, New York, 1998, Págs. 71-77.
18. Nomeadamente: Stuart Bailey; Andy Altaman; Paula Scher; William Drentel & Jessica Helfand.
19. Aproximamo-nos aqui de uma tradição hermenêutica, próxima de Rorty, que sublinha a complementaridade entre a ética da comunicação e a ética da interpretação. A perspectiva hermenêutica exige assim um trabalho colaborativo entre emissor e receptor, posições, de resto, reversíveis num processo de comunicação participativo e aberto. Os dois aspectos constitutivos da hermenêutica: o da ontologia e o da comunicabilidade, apelam para a legalidade interna da obra, aquilo a que Pareyson chamava a “forma formante”, condição de possibilidade, que a liberdade da comunicação não é arbitrariedade, mas intencionalidade e risco.

Artigo originalmente publicado na Arte Capital

Wednesday, May 21, 2008



REACTOR ENTREVISTA LUÍS CARMELO


Luís Carmelo é doutorado pela Universidade de Utrech, professor de semiótica e escrita criativa na Escola Superior de Design, romancista e ensaísta prolífico e, claro, um conhecido blogger e estudioso do mundo da blogosfera. O Reactor conversou com ele numa entrevista de 2007 que, agora, se recupera.



Reactor: Há um post no Reactor intitulado O estado do design. O que é que este título lhe sugere actualmente?

Luís Carmelo: É difícil conceber a ideia de estado – geralmente, uma espécie de redoma imaginária mais ou menos estável onde os fenómenos são um tanto previsíveis – no caso do design. Sobretudo porque o design corresponde a um recorte sempre oscilante, a uma postura de reencontro com os gestos e com os objectos que não cabe em si própria. Esse recorte é das melhores metáforas para a desterritorialização de mundos. Contudo, o “estado do design” poderá também ser entendido como uma espécie de observatório dessas variabilidades, ou dessas ausências de perímetro onde se agenciam moldagens criativas e inesperadas. Tudo se passa, hoje em dia, como se a câmara se colocasse no campo que filma e desse do corpo (que é actor e narrador) a imagem da própria câmara: um vaivém em que as formas jamais se acondicionam sem, no entanto, deixarem de responder à urgência acelerada dos nossos actos, fluxos e delírios.

R: A palavra design identifica cada vez menos um campo disciplinar definido, passando a remeter para uma campo de criação híbrido e difuso. Corresponderá isto a um fracasso ou a triunfo do design sobre a cultura contemporânea?

LC: Já escrevi uma vez que a história do design aparece reflectida numa ideia de criação que funde a dupla formulada por Blumenberg em Trabalho sobre o Mito (a concertação do “Mito” com o “Logos”): de um lado, a dimensão original da poeisis criativa que a arte reivindica e, do outro lado, a racionalidade e a eficácia da abdução aplicada à expressão da cultura material. Ao reunir os dois termos que se amalgamam na invenção moderna – “Mito” e “Logos” –, o design seria, não apenas a consecução plena de uma profecia metafísica (de origem romântica) e de uma conjectura pragmática (de origem racional), mas também o ponto mais alto da actual esteticização generalizada do mundo. Nessa medida, enquanto indefinição que reúne, enquanto hibridismo que afirma, eu creio que o design é sobretudo um território atraente, optimista e sobretudo mobilizador.

R: Há um conceito estruturante do pensamento projectual do Walter Gropius que é o conceito de design total, a ideia é, em síntese, a de que ao designer compete a definição intencional das modalidades de relação social, o design seria, assim, uma disciplina de definição política. Não lhe parece que este "exercício político" do projecto é tão mais eficaz quanto mais imperceptível for e, neste sentido, o carácter difuso do design não poderá ser um sinal da sua eficácia?

LC: A eficácia é uma das matrizes essenciais do design, mas a pertinência que faz de um objecto um objecto com design é sobretudo uma emoção. Dou o exemplo da emergência dos novos materiais que se estão a apresentar à funcionalidade e emoção globais como as novas próteses da nossa cultura material. São simulacros tácteis que podemos fruir com o corpo e com a percepção (cerâmicas flexíveis, espumas metálicas, plásticos condutores, emissores de luz capazes de memorizar as formas, fibras de carbono, etc.). O caso dos polímeros sintéticos é particularmente interessante, já que remete directamente para a mimese das propriedades naturais, preservando os atributos tácteis e alterando se necessário o potencial formal dos produtos. Os objectos e produtos revêem-se, deste modo, como esteios variáveis, estésicos e emotivos que estão para além da forma e função para que foram desenhados (leve vs. resistente, elástico vs. desdobrável, deformável vs. flexível, transparente vs. opaco, etc.). Por outro lado, o desenho da matéria satisfaz cada vez mais o desejo instantanista que nos governa, liofilizando-a e contribuindo decisivamente – repito este dado fundamental – para a generalizada esteticização do mundo (ou não há, hoje em dia, um inesperado museu de arte contemporânea a crescer em todo o espaço à nossa volta, para fora do ‘sagrado’ que aparentemente se institucionalizou após as várias mortes de Deus?).
Por isso, concordo: quanto mais imerso em nós mais imperceptível, mas também mais eficaz, mais colado à ‘respiração dos usos do quotidiano’.

R: Se lhe pedisse uma definição de design...

LC: A desmontagem das ilusões salvíficas transpostas, em larga escala, na construção provisória de mundos. O design é, pois, uma revolução sereníssima que tornou desnecessária a peregrinação apocalíptica do homem até junto ao trono de Deus. A “Visão”, hoje em dia, mais não é do que a reciclagem da euforia acumulada pelo homem ao longo do seu maior projecto de sempre: a crença. O design sucede hoje à crença do mesmo modo que, para Nietzsche, a gramática pretendeu suceder a Deus. O design é, na contemporaneidade, o apogeu de uma história que passou a ser vivida sem clímax nem desenlace. Diria mesmo mais: o design é um paraíso tautológico.

R: O design sempre se caracterizou pela inexistência de um consenso programático, hoje talvez mais evidente devido à falência dos verdadeiros projectos colectivos, a teoria do design sempre oscilou entre uma interpretação do designer enquanto um "agente social" e uma interpretação do designer enquanto um "agente do mercado", parece-lhe haver sentido nesta distinção?

LC: Quando se entra num hipermercado ou no site da Amazon, verifica-se que o espaço é composto pelo fluxo das formas. O design vive em fluxo, autoreproduzindo-se, esgotando a capacidade de uma individualização que se adequasse a uma solução geral e universal. Está lá tudo (um dasein que agencia todos os agenciamentos que estão em curso). A inscrição de qualquer forma na forma desses espaços (hipermercados e sites muito visitados) é sempre um acto de passagem ou uma notação do diferente no diferente. As matrizes iniciais, ao modo dos “pixels”, parecem dissolver-se e ao mesmo tempo corporizar-se nesta nova concepção que poderia ser baptizada como ‘design do design’. Caracterizá-la-íamos como a moldagem do moldado onde cada inscrição, tal como no hipertexto, se submete à provisoriedade (as formas estão em estado de permanente subtracção e adição), à des-subjectividade (enunciação síncrona e plural), à estesia (simultaneidade entre a sinalização e a poiesis), à meta-contextualidade (as formas criam o seu próprio contexto, deixando de haver um “de fora” e “um de dentro” evidentes), à reversibilidade (multimodalidade e coexistência de registos) e ao incorpóreo (no sentido de um agregado inorgânico e descentrado). Não existindo, felizmente, teorias filosófica ou semióticas unificadas do design, parece-nos que esta caracterização do ‘design do design’ poderá pelo menos complementar a noção de C. e P. Fiell, avançada no recente Designing The 21st Century , segundo a qual a “prática do design deve responder a necessidade técnicas, funcionais e culturais e criar soluções que comuniquem significado e emoção que transcendam idealmente as suas formas, estrutura e fabrico” (2005, pp.11-21). Nesta medida, respondendo directamente à questão, creio que a sociabilidade e o mercado são realidades de tal modo íntimas quanto imersas no chamado ‘design do design’. Daí que não me pareça que haja grande sentido em tal distinção.

R: Perante o relativismo dos valores (e, em particular, dos valores do design após a crise do projecto moderno) não será importante os designers mostrarem que existe uma diferença profunda entre a "ética individual" e a "ética disciplinar"? Quero dizer, os valores que orientam o design não podem ser relativos aos valores que guiam o comportamento dos seus profissionais.

LC: É muito difícil projectar na arena da criação de design padrões de natureza ética. O ‘dever ser’ é hoje um campo que aparece massificada e globalmente sublimado pela aura do consumo e sobretudo por aquilo que é o receptáculo e, ao mesmo tempo, o maior agente do design: o corpo. Este efeito de boomerang (que faz com que o design seja quer o motivo quer o resultado) retira margem de manobra para a separação de águas e, naturalmente, de éticas. Nas actividades onde as deontologias são hipercodificadas e até estriadas (caso do jornalismo), tudo ou quase tudo se passa no limbo onde o possível e o impossível permutam e, por vezes, parecem pactuar. No entanto, em terrenos de tipo emergente – como o são os do design dos nossos dias –, as regras procuram ocupar um espaço que se confunde com esse limbo. E é aí que os criadores objectivam e partilham o possível e o impossível. Ou seja: sem grande capacidade de darem conta de diferenças profundas entre os níveis éticos referidos na pergunta.

R: Historicamente, o design foi sendo pensado como uma disciplina de dimensão utópica. Ainda há espaço para utopias no mundo contemporâneo?

LC: Não. As utopias foram espaços de sobrevivência que ampliaram narrativas e sentidos de vida. Hoje há hierofanias utópicas e sobretudo duas: uma relativa aos ‘milagres’ da comunicabilidade e outra relativa à habitabilidade do presente (uma ‘para-utopia’ defensiva). Tal como respondi mais acima (pergunta 4 sobre uma definição de design), o design é, hoje em dia, um espaço (quase) utópico – por isso mobilizador – mas vocacionado para viver e ser criado num mundo sem utopias (tradicionais: escatológicas ou de teor ideológico).

R: Recordo-me de uma utopia particular, Xanadu do Ted Nelson. Como olha para o actual estado do ciberespaço e da blogosfera em particular?

LC: O ciberespaço é a abertura a uma segunda humanidade. E o que a dita é sobretudo um novo tipo de mobilidade e de aparecimento subsumido, por sua vez, a um novíssimo registo temporal (a tentação da instantaneidade) e de espaço. A instantaneidade – aspecto que ainda é fundamental – é geradora de simulações e de prestidigitações e tende por isso a criar cenografias que sempre foram auguradas nas culturas axiais ou escatológicas (a salvação, a perfeição, a metamorfose imediata, a visão mística). O on-off dos ‘ciberaparelhamentos’ é, hoje em dia, por isso mesmo, a grande catarse das antigas narrativas salvíficas e a sua superação e continuidade, de algum modo, também. Daí que o reino do presente esteja a reduzir o passado a uma espessa "amnésia colectiva" (Bertolucci) e se tenha, por outro lado, tornado anfitrião de um futuro que, tradicionalmente, sempre foi o local onde se projectavam idealidades de todo o tipo. Um certo niilismo e uma profunda cautela que reservo face a todo o tipo de “utopias” (incluindo as que se projectarão na sociedade de informação) têm aqui a sua fonte. O que não quer dizer que não olhe para este magnífico presente como se fosse uma ponte criativa que une um mundo ‘catalogável’ que já foi e um outro, seguramente tentador, que virá. Um “Iluminismo” de nome novo, ou melhor ainda: inomeável. O design é um dos emblemas desta travessia que caracterizamos como presente.

R: Quais são os seus blogues de referência?

LC: Não tenho blogues de referência, tenho blogues que visito. As preferências, sempre instáveis por natureza, dependem de novas formas de contrair empatias. Ou seja, os novos tipos de comunicação que se estão a processar na rede não pressupõem apenas uma questão de “tom”, ou seja, da procura expressiva que tenta adequar-se ao novo medium, mas pressupõem também, e sobretudo, uma novíssima questão que aparece associada à interacção entre mundos, euforias, emoções e afectos – com realce para a área do “não dito” – que se desencadeia entre quem navega (seja nos níveis da chatsfera, da blogosfera ou da mediasfera). É este tipo de ciberempatias que geralmente organiza os menus dos blogues, ou seja, as listas permanentes de links que um blogue escalona no seu próprio menu. “Lincar” e “deslincar” tornaram-se, hoje em dia, formas muito frequentes de entender o relacionamento entre o que se expressa na rede: e tanto mais se linca e deslinca quanto mais as identificações se tornam vulneráveis e, claro, atractivas e cúmplices ou, ao invés, desinteressantes e sórdidas. Seja como for, é neste caudal cruzado da vida em rede – com destaque para o caso da blogosfera – que se tem vindo a renovar o significado da noção de amizade e de apego por um lado eminentemente personalista da enunciação. Por uma questão de elegância, prefiro não aflorar os meus links e visitas mais insistentes dos últimos tempos.

R: Que pergunta acrescentaria a esta entrevista? E que resposta ela lhe mereceria?

LC: O que é que o design hoje significa que, antes – na modernidade ainda crente – era significado de outros modos? Porventura – e esta é já a resposta – os padrões do dever com que o altar do destino e as engenharias sociais parodiaram o desejo e o potencial usufruto da felicidade e da liberdade individual.


“Tudo começa na inutilidade dos fragmentos/descritos um a um, ou nas suas invisíveis conexões.”. Encontrei ontem, num postal esquecido dentro de um livro, estes versos do Luís Quintais escritos com a tua letra. Não tenho a certeza de quando, nem onde me deste o postal, mas lembro-me demasiado bem do meu olhar reflectido no teu e de que como partilhar aquelas palavras escritas inspirava a eloquência e o silêncio.



Este não é, contudo, o lugar certo para te escrever. Nem este será um texto íntimo, mesmo que envolva memórias e elas sejam a nossa herança mais privada. Já em outros momentos revisitei memórias que, para mim, funcionavam como pretextos para pensar uma espécie de história velada das imagens. Creio que tudo, as palavras e as coisas, as pessoas e os momentos, tende a tornar-se numa imagem, que será viva enquanto alguém, sentindo-a, a vivificar.

Em A ideia da Luz, Giorgio Agamben escreve que “O único conteúdo da revelação é aquilo que é fechado em si, o que é velado – a luz é apenas a chegada do escuro a si próprio.” A imagem é esse “escuro que pressupõe a luz”, fragmento que anuncia tudo o que é impossível revelar.



Porém, a relação da imagem ao original não é uma relação de incompletude mas de aproximação e diferença. De desencontro, se se considerar que nele o encontro está sempre evocado.
Do mesmo modo, a recordação não recupera esse momento que se viveu, nem sequer nos reporta a ele com falhas. Na recordação nós voltamos a um tempo onde nunca havíamos estado, confrontamo-nos com uma outra possibilidade para a vida, mesmo que aí, o que mais amamos, não possa ser mais do que uma imagem.



Há por isso um encanto extraordinário e uma quieta melancolia quando escrevo: “Lembro-me tão bem de ti”.

Monday, May 19, 2008




AREA_2

Há 5 anos a Phaidon convidou 10 curadores de design – 10 nomes de peso mesmo que alguns só duvidosamente pudessem ser vistos como curatores – Anthon Beeke, Fernando Gutierrez, Ken Cato, Nick Bell, Omar Vulpinari, Serge Serov, Shigeo Fukuda, Stefan Sagmeister, Uwe Loesch e Werner Jeker, para que estes escolhessem 100 designers gráficos emergentes cujo trabalho exercesse uma forte influência no design gráfico contemporâneo.

O resultado foi apresentado no livro Area. Se em relação a essa lista poderíamos contestar algumas ausências, já os nomes escolhidos – dos 032c a Chris Ware, de Garth Walker a Reza Abedini, passando pelos Delaware ou por Amy Franceschini – estavam acima de qualquer suspeita. Dessa lista não constava nenhum designer a desenvolver trabalho em Portugal, pese embora a inclusão de Victor Hugo Marreiros, que tendo nascido e trabalhando em Macau, estudou em Portugal e possui dupla nacionalidade.

Após a publicação, do Area, 5 anos volvidos a Phaidon volta à carga publicando o Area_2.

Trata-se essencialmente de uma actualização, quer ao nível da escolha dos curadores de referência, quer dos criadores de referência, no design gráfico contemporâneo.

Assim, o conceito mantém-se (dez curadores, 100 designers gráficos e dez “clássicos”) os nomes, evidentemente, renovam-se. Os curadores são desta vez Julia Hasting (responsável pelo design do livro, que me parece superior ao do Area), Ruedi Baur, Irma Bloom, James Googin, Ellen Lupton, Saki Mafundikwa, Jan Middendorp, Dan Nadel, Brett Phillips e Keiichi Tanaami.

Entre os clássicos encontramos nomes como Wim Crouwel, Bradbury Thompson, Jan van Toorn ou Bruno Munari, numa escolha que, num livro assumidamente de diagnóstico da contemporaneidade, soa mais a um detalhe "pós-moderno" do que a algo de sério, já nos contemporâneos surgem-nos Laurenz Brunner, Vanessa Van Dam, Flag, Luna Maurer, Etienne Mineur, Peter Bilak, entre outros.

O destaque, no entanto, vai para a escolha do atelier português Barbara Says… e do atelier Change Is Good do designer português José Albergaria, agora radicado em França.

O Reactor pediu a António Silveira Gomes/Barbara Says... e José Albergaria/Change Is Good uma breve explicação dos trabalhos seleccionados que de seguida se apresenta.


“Para a selecção do livro Area 2 escolhemos 2 tipologias de trabalho que podem traduzir a atitude do atelier dos últimos 5 anos.
3 trabalhos institucionais: Metaflux – Instituto das Artes; Cinema Portugal 2006 para o Instituto do Cinema, Audiovisual e Multimédia; e Formato para a Ordem dos Arquitectos.
1 trabalho mais exploratório: O cartaz da exposição do Rigo23 para a Galeria Zé dos Bois é uma síntese dos nossos processos de trabalho e do artista: a apropriação, a acção social, o vernaculismo e a “essência”. O trabalho para a ZDB é altamente estimulante é fruto de uma relação de confiança e sintonia de trabalho de vários anos; debatendo-se com constrangimentos orçamentais que são sempre encarados de forma positiva e potencialmente sustentáveis; e a vontade da Zé dos Bois do trabalho gráfico ser um acrescento de valor à programação artística.
Com o Cinema Portugal 2006, a imagem institucional para a actividade do ICAM, pretendemos fazer uma homenagem ao cinema e aos seus aspectos mais tangíveis através de uma recolha da sua iconografia, desde plantas das salas de cinema a cartazes de filmes, tentamos desviar o olhar para o acto de ver cinema como prática social.
O Metaflux foi uma exposição sobre arquitectura que representou Portugal na Bienal de Arquitectura de Veneza. O projecto faz referência às metodologias e materiais usados por 10 arquitectos.
Para o cartaz Formato para a Ordem dos Arquitectos desenvolvemos um lettering feito com livros de arquitectura.
O trabalho do atelier barbara says... pretende ser um exercício de liberdade na forma de comunicar as ideias, projectos e necessidades dos nossos clientes.” António Silveira Gomes



“A selecção de trabalhos apresentada no livro Area 2 da editora Phaidon pretende mostrar o método intuitivo de trabalho do nosso atelier, um laboratório de pesquisas e práticas que explora diversas técnicas, metodologias e materiais.
Os projectos apresentados são exemplos dessa atitude de experimentação.
“72” é um livro sobre projectos artísticos falhados, recusados ou apenas planeados e nunca executados. Nesta publicação usámos uma fonte criada por nós, a “Zérik”, que foi sistematicamente recusado por vários clientes. Achámos que “72” era o projecto indicado para ela ver a luz do dia.
Nos projectos de «Chaumont» e «Liberation/Fooding» utilizámos as propriedades plásticas de letterings e imagens criadas com fitas-cola coloridas de electricista enquanto na revista «Currency» quisemos contrapor um formato de publicação tradicional – tipo álbum de BD – a uma grelha tipográfica experimental.” José Albergaria

A ambos, o Reactor dá os sinceros parabéns por esta distinção internacional.

Quem quer sugerir nomes para o Area_3 ?

Wednesday, May 14, 2008






A Exposição VINIL - GRAVAÇÕES E CAPAS DE DISCOS DE ARTISTA já chegou a Serralves onde estará até dia 13 de Julho. Comissariada por Guy Schraenen
 e organizada pelo Research Centre for Artists' Publications / Neues Museum Weserburg Bremen e pelo Museu d’Art Contemporani de Barcelona, a exposição ilustra a exploração da capa dos discos e evolução do seu design gráfico ao longo de quase um século.


Terminado o fim de semana de OFFF começa-se a digerir o que se viu e ouviu. Sobre a intervenção de Joshua Davis, para aqueles que gostaram e para os que detestaram, vale a pena ler o comentário de Régine Debatty no We Make Money Not Art.



Há um novo blogue que vou passar a acompanhar. Chama-se Mirrorcities e explora uma ideia sedutoramente simples: ilustrar um mesmo tema a partir da perspectiva de duas pessoas, uma vivendo em Lisboa e outra em Tóquio. Resulta muito bem.


Em menos de 80 dias (em 56 para sermos precisos), Jan Enkelmann deu uma volta ao mundo questionando as comunidades que visitou sobre a felicidade. O registo visual encontra-se aqui.


O fascinio pelas possibilidades geradas pelo design gráfico pode ser renovado constantemente, por vezes quando menos o esperamos. Um bom exemplo é um número, já com algumas semanas, do jornal sul-africano Cape Argus e a inteligente solução editorial encontrada para sublinhar os preocupantes números sobre doentes de SIDA.



Em matéria de entrevistas, refira-se a publicação da entrevista, por nós conduzida, a Andrew Howard no último número dos Cadernos de Tipografia e, ainda, um destaque para a entrevista com Nadine Chahine, a talentosa typedesigner libanesa, no I Love Typography.

Último destaque, para uma entrevista igualmente. Há poucos autores que pensem tão bem o design e a arquitectura como Mark Wigley. Por isso sempre que o homem fala importa estar atento. É o caso da interessante entrevista publicada pela 03000.TV

Tuesday, May 13, 2008



RUMO À MEDIAÇÃO 3.0


Bruce Sterling lançou há algum tempo na Web o Dead Media Project: um arquivo sobre alguns media nados-mortos (undead), degenerados (deceased) e mortos-vivos (never-lived), que somos chamados a procurar reanimar ou levados a, caridosamente, por fim ao suplicio.

A morte de um medium pressupõe a falência de uma determinada forma de mediação e o, consequente, desaparecimento do saber por ele mediado. É, precisamente, a partir do momento em que o saber, resultante de um certo agenciamento mediúnico, já não pode ser resgatado, i. e., quando o medium se revela inconsequente por se ter perdido o dispositivo que o fundamentava, que um medium tomba no seu envelhecimento e, definitivamente, falha.

Que a falha na mediação é mortal, eis o que nos ensina Bruce Sterling, mas que essa falha não resulta tanto da fragilidade do medium mas de condições de possibilidade do agenciamento mediúnico (chamemos-lhe dispositivo ou máquina semiótica) isso devemos recorda-lo por nós. O defeito do medium tem aqui a ver com a incapacidade desse medium gerar o efeito que no interior de um determinado dispositivo se espera e se é capaz de reconhecer. O defeito coincide com a incapacidade de reconhecimento do efeito mediunicamente possibilitado, consequência, quase sempre resultante de uma alteração do próprio dispositivo de mediação. Geoffrey Pingree e Lisa Gitelman, fazem notar, a propósito, “Yet because their deaths, like those of all “dead” media, occurred in relation to those that “lived”, even the most bizarre and the most short lived are profoundly intertextual, tangling during their existence with the dominant, discursive practices of representation that characterized the total cultural economy of their day”.(1)

A morte, convém enfatizar, é matéria dos vivos.

Na sua análise dos processos de mediação tecnológicos, Paul Duguid propõe que pensemos os media modernos a partir de duas categorias fundamentais. A primeira remete-nos para o conceito de “supressão” identificando a ideia de que cada novo medium “vanquishes or subsumes its predecessors”; a segunda remete-nos para o conceito de “transparência”, para a “assumption that each new medium actually mediates less, that its successfully “frees” information from the constraints of previously inadequate or “unnatural” media forms that represented reality less perfectly”.(2)


O arquivo ilustrado do Dead Media Project contém, no seu sarcófago virtual, alguns media que estiveram na origem da profunda transformação da cultura visual moderna, também analisados por Carolyn Marvin no seu When Old Technologies Were New, dispositivos anamórficos, Bancos ópticos, Câmaras Obscuras e Câmaras Lúcidas, Sacarímetros, Panoramas e inúmeros outros. Chamemos-lhe Media 1.0, considerando uma arqueologia da mediação que começaria na modernidade. Os Media 1.0 são media de representação diferenciando-se do que designamos por Media 2.0, pensados como media de conexão, e dos Media 3.0, fundamentalmente media de hiperrepresentação.

Neste artigo, consideraremos, em maior detalhe, os processos de Mediação 1.0, dando indicações da evolução rumo à Mediação 3.0.


As tecnologias do visível, que a Modernidade largamente desenvolve, são meios colocados ao serviço de um processo de racionalização do olhar, que remonta à revolução anatómica do Séc. XIV, ou seja, ao desenvolvimento do projecto taxinómico moderno. De facto, a história do alargamento do campo do visível, rasgado em direcção ao infinitamente pequeno e ao infinitamente distante, coincide com o fazer de uma história da verdade do visível, a construção de processos capazes de garantir a sua veredicção.

A leitura foucaltiana de Jonathan Crary (3) parece-nos, a este título imprecisa, na medida em que faz coincidir a Modernidade mais como uma nova modalidade do ver, mediada pelos dispositivos estereoscópicos, e menos como uma semioticização do ver, i. e., a construção de novos modelos de interpretação e veredicção da verdade do visível.

Em todo o caso, dir-se-ia, como Crary também o mostra, que a Mediação 1.0 se caracteriza por uma progressiva protecização do olho – crescentemente aparelhado, não se valendo a si próprio – funcionando o medium como um intensificador da visão, sempre confinando a uma lógica dispositiva capaz de o submeter a uma determinada ordem, injuntiva e prescritiva, ao serviço de uma visão correcta e exaustiva; gera-se assim uma pulsão escópica que corresponde, em termos históricos, à materialização maquínica de um nó tecno-epistemológico no interior do qual o poder analítico da visão – prolongado pelas lunetas, microscópios, telescópios e toda uma panóplia de próteses do olho – se pode gradualmente assumir como virtualmente infinito.

Torna-se claro, que o desenvolvimento da ciência instrumental moderna modifica, radicalmente, a organização epistemológica da cultura medieval. Os novos instrumentos permitem a verificação de certas hipóteses científicas; na medida em que fixam, na sua estrutura e na sua função, uma “verdade teórica” concretizada, eles tornam-se modelos de investigação científica fornecendo perspectivas conceptuais e metodológicas. Assim, por exemplo, as questões da “divisão ao infinito” do cálculo infinitesimal, não são pensáveis sem o microscópio que as concretiza; instrumentalizam a linguagem tradicional modificando-a, os instrumentos científicos são, então, agentes activos de modificação da linguagem; instrumentalizam e funcionalizam os comportamentos quotidianos, funcionando como instrumentos mediadores e fornecendo linguagem mediadora da nossa relação com a realidade.

Progressivamente a partir do século XVI, saber e poder passam a estar associados a partir de um operador comum: o olhar. As diferentes modalizações do olhar determinam diferentes graus de saber e diferentes ordens de poder. O controlo dos media e dos instrumentos significa, também, a possibilidade de ver, de ver mais longe, de ver melhor, de ver o “invisível”, de ver sem ser visto, de ver repetidas vezes. O telescópio e o microscópio o demonstram, mas dentro desta lógica podemos incluir também, e entre tantos outros exemplos possíveis, a arquitectura panóptica ou, posteriormente, a invenção da fotografia. Agora é claro, o olhar é o primeiro instrumento e, por isso, também ele deverá ser “afinado”, também ele deverá ser semioticizado, ganhando um sentido determinado dentro do sistema de saber-fazer no qual se integra. E nesta constatação vamo-nos apercebendo como aqueles mesmos que inventam e utilizam os novos instrumentos vão sendo instrumentalizados, como aqueles mesmos que dissecam os corpos vão sendo dissecados, como aqueles mesmos que desenvolvem taxinomias vão sendo ordenados.

Com o desenvolvimento dos instrumentos observacionais, a modernidade vai-se dando conta de que existem formas de vida, desconhecidas do mundo antigo e medieval, acima de nós (reveladas pelo telescópio), à nossa volta, mas, também, dentro de nós, vida infinita pequena revelada pelo microscópio. À nova ciência instrumental cabe, assim, ordenar o saber visível e invisível a olho nu, ordenar o que está infinitamente distante e infinitamente pequeno, ordenar a vida biológica e o mundo inanimado das máquinas, ordenar o cadáver e o corpo vivo, ordenando, ainda, as formas de viver.

Em meados do século XVII, Francisco Stelluti relatava com entusiasmo as suas investigações em microscopia e como elas lhe permitiam distanciar-se das autoridades antigas: «Utilizei o microscópio para examinar as abelhas e todas as suas partes. Também identifiquei separadamente todos os membros que assim descobri, para minha grande satisfação e maior admiração, dado serem desconhecidos de Aristóteles e de todos os outros naturalistas.»

O grande crescimento do conhecimento físico, associado ao, ainda maior, crescimento do conhecimento biológico, provocou uma reorganização do mundo medieval. A nova geografia física e humana às quais se poderia acrescentar uma nova geografia epistemológica, produz toda uma nova geo-estratégia que reinterpreta saberes, fazeres e poderes agora integrados num esquema de maior complexidade que aquele do mundo medievo. O biopoder moderno que, detalhadamente, Michel Foucault trabalha insere-se, precisamente, nesta nova ordem geo-estratégia que deve ser capaz de construir uma semiótica, uma axiologia e uma epistemologia que estabilize o novo, que imponha processos normativos, que estabeleça classificações, que possua uma lógica arquivística que seja capaz de integrar e dominar o novo e, ao mesmo tempo, requalificar o antigo.

Assim, novos instrumentos, novos lugares, novos corpos, novos saberes, novas práticas e novos poderes são integrados numa ordem sistemática que parece capaz de impor a sua ordenação, a sua classificação, a sua legenda, a sua arquivística a uma nova natureza da vida.

Como bem afirma José Gil, “o olhar não se limita a ver, interroga e espera respostas, escruta, penetra e despoja as coisas e os seus movimentos.”(4) Não surpreende, pois, que o olhar que domina o projecto taxinómico dos compiladores do século XVI e XVII não seja um olhar estritamente científico. Assim, por exemplo Conrad Gesner na sua enorme Historiae Animalium além de designar e descrever o animal, discute as suas funções naturais, a qualidade da sua alma, a sua utilidade para o homem em geral e como alimento ou medicamento em particular. Aldrovani aprofunda ainda mais este tipo de informação, por exemplo ao escrever sobre o leão anota, pormenorizadamente, o seu significado nos sonhos e na mitologia e a sua utilização na caça e nas torturas.

A organização social moderna, no sentido de construção de uma série de práticas de comportamento e de formas de pensamento, faz-se a partir de uma ampla construção visual. A ciência da visão, que se desenvolve após a revolução industrial, integra e relaciona a dimensão anatómica (o estudo da dimensão fisiológica do acto de ver); filosófica (a diferença entre fenómeno e coisa em si); Óptica (o exame dos mecanismos da luz e da transmissão óptica); antropológica (as correspondências entre organização sensorial e organização étnica e social); socio-médica (relação entre doença e comportamento), mas, também, psicológica, legal, moral, artística, económica e religiosa.

A imagem torna-se um elemento disciplinador, funcionando como um operador de micro-poder. Precisamente neste sentido ela funciona como interface entre um infinitamente pequeno e um infinitamente grande, cimentando uma unidade sistemática entre eles. Na Modernidade o mesmo poder controla a ciência responsável pela criação de meios de produção das imagens; os meios, as estruturas e os registos de produção; a circulação das imagens e a sua recepção; dominando um sistema de produção que produz imagens da mesma forma que produz espectadores.

Instrumentos como o telescópio e o microscópio contribuem, já, para uma transformação do olhar, sugerindo diferenças entre o “olhar natural” e o “olhar técnico” e, simultaneamente, relativizando um e outro. As inovações técnicas associadas à produção e reprodução de imagens do século XIX, do Optograma de Vernois ao Zoopraxinoscópio de Muybridge e culminando na fotografia e no cinema (com uma possibilidade absolutamente nova de registo) encontram um olhar já “instrumentalizado” quer do ponto de vista sensorial, quer do ponto de vista psicológico, quer do ponto de vista linguístico, quer do ponto de vista do enquadramento científico.

Poder-se-ia considerar que a tecnologia que afecta o corpo, o transforma e o prolonga (a tecnologia é, sempre, mesmo na perspectiva marxista, prolongamento do corpo) é, essencialmente, uma tecnologia semiótica que transforma e prolonga sentidos do corpo, significações do corpo, ao mesmo tempo reverte e intensifica, no corpo, estatutos de significante e significado. Esta tecnologia é menos produtora que reprodutora, não corresponde a produções identitárias mas a produções intensivas. É no campo da intensidade e não da identidade que ela se joga. Não será, essencialmente, uma tecnologia de reciclagem, no sentido em que Baudrillard situa a economia politica contemporânea, mas a sua actuação é, no sentido do mesmo Baudrillard, residual. Todo o real é residual, e tudo o que é residual está destinado a repetir-se indefinidamente no fantasmal.

O olhar está sempre lá, numa determinada focagem, construindo a própria imagem por ele captada. Quer a história da arte moderna (e a sua evolução contemporânea) quer, por exemplo, a história da medicina moderna (e, também aqui a sua evolução contemporânea) é, em grande medida, a história desse olhar armado e das suas transformações. Pese embora a, bem conhecida, rejeição levada a cabo por Claude Bernard da investigação da vida com o microscópio – o corpo vê-se sem instrumentos ópticos artificiais, para julgar o que é normal ou patológico no corpo é preciso olhar e ver o corpo – a evolução da medicina faz-se através da evolução da instrumentalidade técnica e dos seus vários aparelhamentos do olhar. A rejeição de Bernard deve ser bem entendida, o que se afirma é que o olhar clínico deve ser entendido, ele próprio, como um instrumento. Neste sentido o médico deveria ter um “olho treinado”, “educado” que operaria com ou sem o auxilio de instrumentos de visão; algo que, num registo diferente, ainda nos aparece tematizado, por exemplo, no Homem da Câmara de Vertov. Sem o “olho treinado” os instrumentos auxiliares de nada valeriam pois não é a câmara que vê é, sempre, o olho que vê através dela. O que se afirma é, então, uma semioticização do olhar que deve semioticizar o operarador como condição de possibilidade dessa semiótica ser reguladora dos instrumentos. Olho biológico, mãos, ouvidos são tornados instrumentos da mesma forma que os aparelhos auxiliares da visão ou da audição o são, operam em interacção orientados pela mesma lógica, integrados no mesmo máquina dispositivo de mediação.

Henri Atlan mostra como perante uma realidade tão complexa como a dos fenómenos quânticos, existe, ainda, uma soberania do olhar: “Nous partons du macroscopique perceptible par les sens (celui d’une coupe anatomique) pour arriver au même macroscopique perceptible par les sens (celui de l’image après reconstruction informatique), mais après un détour par le monde des abstractions de la physique quantique, dont les relations avec la réalité macroscopique font l’object de controverses philosophiques encore vivaces. »

Dos tratados de anatomia à radiografia, da sintografia às tomografias axiais computorizadas, da termografia à ecografia e desta à ressonância magnética, todo um imaginário da transparência abre o real a uma nova visibilidade, possível de ser vista e lida apenas por um “olhar técnico”, que progressivamente vai sendo experimentado, também, com fins artísticos. De resto, o desejo de saber da ciência moderna – da física à biologia, da citologia à medicina clínica - e o desejo de representar da arte moderna, edificam-se sobre um desejo de ver, e o desejo de ver abre-se num desejo de registar, de decifrar, de arquivar, de mapear, de ordenar, de tudo, sem excepção, semioticizar a partir de um olhar, afinal, ele próprio já previamente semioticizado.

Como escreve Le Breton “De l’homme anatomisé de Vésale aux techniques nouvelles de l’imagerie médicale, le traitement de la figure rapportée du corps suit la voie d’une épuration de l’imaginaire au sein même de l’image. Le dépouillement des couches fantasmatiques qui altéraint le contenu scientifique grandit au fil du temps. La projection inconsciente sur la figure était facilitée jusqu’au XIXe siècle par la nécessité d’une reproduction artistique des schémas dans les traités d’anatomie ou de clinique. La possibilité du cliché photographique ferme l’écluse où passait ce surcroît de sens. En 1868 parît en France l’Atlas clinique photographique des maladies de la peau par A. Hardy et A. Montmeja, premier ouvrage à ce passer du travail de l’artiste dans le rendu des images. »

Em 1895, Roentgen repete no seu laboratório as experiências de Crookes sobre os raios catódicos. Ao realizar a experiência confrontou-se, surpreendentemente, com uma fluorescência inusitada da folha de cartão. Por uma série de circunstâncias, Roentgen viria a evidenciar uma nova forma de energia radiante, invisível ao olhar humano, cuja propriedade é a de atravessar opacos através de raios luminosos. A partir dessa data Roentgen fotografou os mais diversos objectos – começando pela mão da sua mulher cuja fotografia Raio X foi tornada pública nesse mesmo ano – utilizando o princípio da radiografia. Pela primeira vez, a entrada no espaço labiríntico dos tecidos humanos não exige, como condição de possibilidade, a morte do homem. Já não é, apenas, o corpo cadáver mas, agora, o corpo vivo, a ser atravessado por um olhar que atravessa a superfície da pele que em profundidade.

A utilização da radioactividade, descoberta por Becquerel em 1898, optimiza as técnicas de radiografia. O trabalho de Hevesy vem demonstrar, em 1913, a possibilidade de reproduzir, sobre um suporte fotográfico, o percurso da fixação radioactiva sobre um determinado órgão humano. Durante os últimos anos da década de 30, a sintografia explora as novas possibilidades de introduzir elementos radioactivos no organismo para analisar as diferentes concentrações de Raios Gama e, através deles, seguir visualmente a evolução dos processos metabólicos. A captura visual do “invisível” alarga-se ao interior dos órgãos e ao próprio cérebro, manifestando uma espécie de alcance ilimitado desse olhar científico.

Como nos diz Teresa Cruz “a imagem ganhou, a partir da fotografia, uma intimidade quase absoluta com o corpo. A captura a que os corpos estão votados, depois dela, parece não conhecer limites: toda a superfície mas, também, as entranhas, todas as partes, todas as poses, todos os gestos, e até os fluidos e o sangue. O corpo é certamente um dos objectos mais intensamente perscrutados pela imagem moderna”.(5)

O último grande desenvolvimento da cultura visual da medicina e, com ele, da reconstrução do olhar e do corpo-olhado (objecto intensamente perscrutado pela imagem como refere Teresa Cruz) dá-se na década de 70 do século XX graças aos desenvolvimentos da investigação no campo da física e da informática, tornado-se possível a realização de imagens digitais susceptíveis de serem monitorizadas.

A partir dos anos 70 vão-nos aparecendo uma série de novas técnicas imagiológicas, os ultra-sons; a tomografia axial computorizada; a imagem por ressonância magnética; a tomografia por emissão de positrões; a magnetoencefalografia, geradoras de uma nova retórica visual. O olhar evolui e com ele as gramatizações do ver e do visto.

Por outro lado, as imagens computorizadas ficam cada vez mais dominadas pelas lógicas do digital. A este propósito Nobert Boloz recorda-nos que “sob condições informáticas entender uma coisa significa ser capaz de simular através de imagens computacionais. Numa tal perspectiva – de resto idêntica à do construtivismo radical – também a chamada “realidade natural” se revela numa configuração de dados, um caso especial dentro das operações elementares com números computacionais que são específicas do meio.”(6)

Este olhar em profundidade, aprofunda a própria relação entre o olhar cientifico, instrumentalmente assistido, e a vida. Também a arte moderna e a sua evolução contemporânea, particularmente intensificada ao longo do século XX é marcada por essa “viragem para a vida” a um ponto que parece ambicionar a supressão da mediação e a correspondente anulação da representação.

Esta (aparente) anulação da mediação é, já, uma marca forte da Mediação 3.0. Um inventário possível da sua imposição terá de passar sempre por eventos como Electra organizado por Frank Popper em Paris, em 1983; Les Immatériaux de Lyotard, em 1985; Arte e Sciencia na Bienal de Veneza, em 1986; Cultura e Novas Tecnologias na inauguração do Rainha Sofia, em 1986; e no espaço português, a partir dos anos 90 com destaque para a exposição Múltiplas Dimensões no Centro Cultural de Belém, em 1994.

Se a exposição Electra. Electricity and Electronics in the Art of the XXth Century, comissariada por Frank Popper para o Musée d’Art Moderne de Paris marca uma télématique turn no campo da criação artística, as origens da ars telematica (termo introduzido em 1978 por Alain Minc e S. Nora e sedimentado por Ray Ascott) são anteriores e obrigam-nos a recordar a importância do EAT (EXperiments in Art and Technology) criado em 1966 por Billy Klüver; da decisiva exposição Cybernetic Serendipty que teve lugar no Institute of Contemporary Arts de Londres em 68; dos trabalhos – de Robert Rauschenberg, Jean Tinguely ou John Cage – no pavilhão Pepsi-Cola da EXPO’70 de Osaka; a exposição Software comissariada por Jack Burnham para o Jewish Museum de Nova York (onde se exibe o primeiro protótipo do sistema de Hipertexto “Xanadu” proposto por Theodor Nelson); bem como das acções FLUXUS iniciadas em 1961.

Em 1970, Tom Marioni, fundador e director do MOCA (Museum of Conceptual Art) de São Francisco, definia a orientação do museu como sendo “idea-oriented situations not directed at the production of static objects”. Esta definição sintetizava bem o novo posicionamento de uma geração de curadores e artistas, mas também de investigadores, teóricos e cientistas que contribuem para a redefinição das fronteiras artísticas.

As novas tecnologias digitais e os novos usos das “velhas tecnologias” analógicas, a sua democratização e acessibilidades crescentes a partir dos anos 60, o contexto politico e social promotor de atitudes contra-culturais, a desconstrução das definições herdadas – o nascimento do autêntico leitor deve fazer-se à custa da “morte do autor” defendia Roland Barthes no seu ensaio de 1968 “A morte do autor” – intervêm nesta deslocação de fronteiras, gerando novos criadores e novos públicos, novas formas de criação e de recepção artística.

Na segunda metade da década de 90 assistimos à explosão da Web Arte, entre as exposições que marcaram a época destaca-se a Documenta de Kassel realizada em 1997. Na mostra Internet comissariada por Simon Lamunière estavam presentes, entre outros, projectos de Joachim Blank e Karl Heinz Jeron (“Without Addresses”); Heath Bunting (“Visitors Guide to London”); Martin Kippenberger (“METRO-Net”) ou Mark Peljhan (“Makrolab”). Porém, ao longo dos anos 90, muitos outros espaços institucionais apresentaram obras de web arte: Bienal de Veneza; Bienal de Whitney; Bienal de São Paulo; MOMA de São Francisco; Walker Art Center; Tate Gallery; Guggenheim; MASS MOCA entre outros.

Em Media Manifestos, Regis Debray, delineou uma matriz teórica para caracterizar o significado social dos diferentes media: logosfera, grafosfera e videosfera, cada um correspondendo a um regime diferente e representado como “pós-escrita”, “pós-imprensa” e “pós-audiovisual”.

Embora tais caracterizações contenham algumas limitações, Debray desenvolve uma curiosa reflexão sobre a relação entre a nossa faculdade originária de produzir imagens e o desenvolvimento da tecnologia. Entraríamos, assim, numa época dominada por uma tecnomimesis, materializada na imagem artificial que, de acordo com Debray, teria sido “processada” de três modos diferentes: a presença; a representação e a simulação, entraríamos assim, na mediação 3.0.

1. New Media 1740-1915, Lisa Gitelman e Geoffrey B. Pingree (Ed.), The MIT Press, Cambridge, MA, 2003, pág. Xiii.
2. Paul Duguid, “Material Matters: The Past and Futurology of the Book”, IN The Future of the Book, Ed. Geoffrey Nunberg, University of California Press, Berkeley, 1996, pág. 65.
3. Jonathan Crary, Techniques of the Observer. On Vision and Modernity in the Nineteenth Century, The MIT Press, MA, 1992; Idem, Suspensions of Perception. Attention, Spectacle, and Modern Culture, The MIT Press, MA, 2001.
4. José Gil, A imagem-nua e as pequenas percepções. Estética e metafenomenologia, Relógio d’Água, Lisboa, 1996, Pág. 48.
5. Maria Teresa Cruz, “Técnica e Afecção” In José A. Bragança de Miranda e Maria Teresa Cruz (Orgs.), Crítica das ligações na era da técnica, Lisboa, Tropismos, Pág. 43.
6. Citado por Siegfried J. Schmidt, “Ciber como Oikos ? ou: Jogos Sérios”, In Cláudia Giannetti (ed.), Ars Telemática, Relógio d’àgua, Lisboa, 2001, Pág. 130.

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