Saturday, July 31, 2010

| SAMPLES PARA UMA PUBLICAÇÃO PARALELA |

Sofia Gonçalves

Uma introdução para textos paralelos

Este texto, afinal dois, parte(m) do circunstancial — o convite para a publicação de dois textos distintos, em dois meios de comunicação distintos, a dois autores distintos.
Se por um lado é a circunstância que leva à escrita, por outro, interessa-nos explorar a alternativa, como tudo aquilo que fica à margem. Como textos paralelos vivem do paradoxo: partilha-se a matriz e com isto se dilui o autor, no entanto, o cruzamento premeditado de referências abre espaço para a autonomia autoral. Testa-se a hipótese de cada escrita ser uma alternativa da outra; acredita-se que a escrita — e aqui, por escrita entendemos também, o design — e as diferenças entre autores, dependem da construção de um contexto que mais tarde se oferece ao pensamento.

O circunstancial obriga também ao estrutural. Os textos são construídos a partir de samples, fragmentos textuais, causa e efeito de uma mesma narrativa. Como palavras por defeito, os samples, unidade estrutural para a publicação paralela, assumem-se como território partilhado.
Como objectivo — testar a possibilidade dos discursos paralelos serem em simultâneo tangenciais, equi-distantes e eventualmente cruzados.

O método proposto parte de uma listagem de conceitos, para daqui aprofundarmos os conteúdos. Cada autor pode apropriar-se e remisturar cada um destes samples construindo com estes discursos distintos. Esta noção de sample, de amostra, aproxima os textos de uma atitude laboratorial, à experimentação, ao teste e ao erro. Pressupõe também princípios associativos, que permitem mais tarde a colagem dos fragmentos para a construção do todo (no limite, eventualmente por outros autores).

Encontramos mais uma vez nestas possibilidades circunstanciais, leit-motifs para a publicação.

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Nota:
Esta é uma introdução comum a dois textos homónimos, pelos autores Marco Balesteros e Sofia Gonçalves a publicar na revista VOCA #3 e, o agora publicado, no REACTOR (respectivamente)



SAMPLES PARA UMA PUBLICAÇÃO PARALELA
Padrões textuais para uma publicação paralela.
Palavras por defeito para a publicação paralela.

Paralelo 1 (ou) Paralelo 2

But for us, who continue to have to do with a human race that insists on thinking, writing and above all publishing, the increasing size of our libraries tends to become the one real problem.
George Perec (1974)

The bastard form of mass culture is humiliated repetition... always new books, new programs, new films, new items, but always the same meaning.
Roland Barthes (1975)

Este texto circunscreve algumas das condições de funcionamento para práticas discursivas no contexto da publicação independente. De que modo chegamos às publicações, as motivações, condicionantes, contextos cúmplices, métodos e estratégias de sustentabilidade económica. Em suma, identifica-se por um lado, os agentes de intervenção nos momentos de autoria e edição, por outro, os factores paralelos e operativos ao objecto publicado.

Encontrando na biblioteca o lugar para onde convergem ambos os momentos, como repositório final de todos os esforços e num movimento contrário ao da acumulação descrito por Perec ou Barthes, como metodologia, reduzimos estas condições a um conjunto de palavras (samples) que concorrem para a definição de um espaço. Qualquer um deste conceitos oferece-se a jogos de recombinação ao infinito, fazendo prever um território instável, nunca terminado, passível de transformação.
Até às últimas consequências, podemos dizer que o "manifesto" fica escrito e sobrevive sem o desenvolvimento dos conteúdos. Como se as "amostras" para um texto bastassem para a declaração das intenções.

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P1(ou) P2: p1(ou) p2
P=Paralelo
p=parte(ou) p2

Método: sample, paralelo, I-Ching ou o Livro das Mutações, Potlach, Samizdat...


SAMPLE

Entre o todo e a parte, entre colectivo e individual, entre obra e autor, chegamos ao sample como unidade estrutural dos textos paralelos (do francês antigo essample, ou do Latin exemplum —exemplo).
O sample ou amostra é uma porção, uma peça ou segmento representativo de um Todo, um especimen, uma entidade representativa de uma classe. Retirado das ciências para a arte através da música, um sample é um segmento extraído de um registo original e inserido, por vezes repetidamente, numa nova gravação. Permite então a remistura e recombinação ao infinito. Para alcançarmos conclusões genéricas, muitas vezes retiramos uma amostra para testar ou examinar. Assume-se desta forma o sample como representativo de um Todo, como um exemplo, passível de construir uma aproximação ou estimativa transversal, que aponta o caminho ou a solução para uma situação.
Pelo contrário, como fragmento subtrai-se ao todo e admite a lacuna, aquilo que está marcado em vazio. Entre o dito e não dito, este é um jogo que afirma, já pela voz de um outro, "isto estava cá, era só preciso ler, está lá tudo, foi preciso os olhos estarem muito fechados e os ouvidos muito tapados para que se não visse ou ouvisse; e, inversamente: não, não está nada nesta palavra, nem naquela, nenhuma das palavras visíveis e legíveis diz alguma coisa sobre o que está em questão, trata-se antes do que é dito, através das palavras, no seu espaçamento, na distância que as separa. Depreende-se naturalmente que este retorno, que faz parte do próprio discurso e que incessantemente o modifica, não é um suplemento histórico que venha acrescentar-se à própria discursividade, replicando-a com um ornamento afinal não essencial; é um trabalho efectivo e necessário de transformação da própria discursividade." (Foucault 1983)
Os samples admitem então a autoria e simultaneamente a citação, o retorno ao texto que instaura uma nova discursividade, sempre possível porque sempre recombinável.
"A copy artist can collect images and text from any source(s), slip them from the original contexts, alter them, and reformulate or place them in a new context, although the making of the piece is usually labor-intensive, the end product can be as seamless as a thought pattern." (Henry 1992)
Perante a voracidade do novo, sampling encontra na apropriação a possibilidade do eterno retorno (a recuperação do "loop" como estrutura audio-visual é disto prova), método eficaz que contraria a proliferação de novas publicações—como forma de reacção ao material já publicado, como forma de recuperação dos discursos de vanguarda, como revivalismo operativo, como forma de manipulação das ordens naturais e culturais. A tudo isto ainda se acrescenta, o facto da montagem e da colagem serem práticas expressivas típicas da vanguarda (à ideologia, acrescenta-se modo de expressão e técnica). Chamam a si as lógicas da apropriação, do cut-up, do copy/paste, das notas de rodapé que afrontam o texto principal, ou das imagens que exigem a releitura do texto, que corrompem a sua primazia.
Georges Perec em "Species of Spaces and other Pieces" assume o método: "(…) putting one word next to the another, looking in a dictionary, recopying, rereading, crossing-out, throwing away, rewriting, sorting, rediscovering, waiting for it to come, trying to extract something that might resemble a text from something that continues to look like an insubstantial scrawl, getting there, not getting there, smiling (sometimes), etc.) to work full stop (elementary, alimentary): i.e. to ticking, in a journal containing a summary of almost all the others in the field of the life sciences, the titles that may be of interest to the research-workers whose bibliographical documentation I am supposed to provide, filling in index-cards, assembling references, correcting proofs, etc. Et cetera."
Assim se reconstrói o espaço, povoado por palavras e imagens, sinais deixados numa página, na ânsia de deixar mais um registo, mais um documento: "To describe space: to name it, to trace it, like those portolano-makers who saturated the coastlines with the name of harbours, the names of capes, the names of inlets, until in the end the land was only separated from the sea by a continuous ribbon of text. (…) Space as inventory, space as invention." (Perec 1974)
Sempre recombinável, sempre em evolução, um texto para o futuro assume-se assim como cena idealizada. Este é também o exercício destes textos—a dobrar, porque paralelos, deixamos n conceitos em x páginas que nos assegurem este espaço, o lugar que procura analisar o fenómeno da publicação, juntando "quem", "como" ao "porquê".
Mas deixar as palavras como rasto, é ambicionar o manifesto.


PARALELO

São estes os princípios e referências fundamentais que definem este espaço, este texto. Circunscrito por duas linhas autónomas e paralelas, que no entanto partilham a mesma estrutura, são fruto do mesmo diálogo.
Duas acepções ao conceito de paralelo governam esta aproximação — pela geometria, duas linhas ou superfícies que se conservam a igual distância uma da outra em toda a sua extensão; pela geografia, cada um dos círculos menores da esfera perpendiculares ao meridiano.
Por comparação ou confronto, estas duas linhas que, por um lado, apenas se tocam no infinito inantingível (pela definição da geometria), por outro, se cruzam nos dois polos (pela geografia e cartografia) permitem-nos aferir as subtilezas e ambiguidades do conceito paralelo como noção operativa para a definição da publicação. Esta noção de uma ciência e arte românticas (simultaneamente lugar, abstracção e utopia, prontos à exploração) deriva numa possível aproximação à publicação independente. Perante as inúmeras tentativas de demonstração do 5º postulado de Euclides, constrói-se um território de experimentação infinita, obsessivo no campo da matemática, passível de demonstração e reconstrução, de desvio (admite-se uma mesma linha geneológica, feita de filiação e confronto geracional, pronta às movimentações de vanguarda).
No lugar de todas as contradições e, se Georges Perec, no seu texto "Notes on What I'm Looking For", define o seu trabalho como um modo de evitar a escrita de dois livros semelhantes, com a fórmula desenvolvida em publicações anteriores, este texto ambiciona exactamente o oposto—definir uma fórmula, construída pelos samples que convergem na escrita de dois textos paralelos, difundidos por dois canais de comunicação distintos, ou seja, sujeitos ao ruído que lhes confere a desejada diferença (é o medium e a recepção que define a identidade).
Ao colocar as mesmas questões, ao apresentar os mesmos conceitos, ao descrever os mesmos momentos, o que se relata são possíveis modos de interrogar a produção da publicação editorial.
É esta sucessão de amostras textuais, organizadas e demonstradas de modos distintos, que constrói uma possível direcção, marca um espaço, traça um itinerário alternativo.
Mas para construir este espaço, precisamos primeiro de nos saber posicionar, encontrar um lugar para a inscrição, de acordo com Perec, uma imagem global, exacta, impossível de alcançar (como o ponto onde as linhas paralelas se encontram) e que, por isso mesmo, nos impele para a edição. A essa imagem total, que constitui O texto para a literatura, corresponde um conjunto de referências às quais nos aproximamos por caminhos pouco convencionais, à deriva. Com este percurso rizomático, circunscrevemos publicação própria/self-publishing hoje — marcado pelas variações possíveis ao gesto de publicar como tornar público, seja pela performance, conferência, apresentação, workshop ou objecto impresso.


I-CHING OU O LIVRO DAS MUTAÇÕES

O I Ching ou Livro das Mutações, é um texto clássico chinês composto por várias camadas, sobrepostas ao longo do tempo. A aproximação a este livro é fundamental para o entendimento da utilização das amostras textuais na construção dos dois textos paralelos: a cada ideograma, a cada imagem, corresponde um conceito que se vai associando, repetindo e transformando ao longo de cada fragmento do oráculo. São estes samples, unidades estruturais que constróem um todo, que "adivinham" possíveis percursos para o futuro da publicação.


POTLACHT

Potlatch est la publication la plus engagée du monde: nous travaillons à l'établissement conscient et collectif d'une nouvelle civilisation. (A Redação in POTLACHT #1 (22 junho 1954)

Mais do que um espaço comum, este texto é um lugar de partilha, uma partilha ao modo Potlatch, uma competição não altruísta, i.e. recebe quem dá. Este evento cultural irregular, uma forma pré-comercial de circulação de bens, era praticado principalmente por grupos opostos de nativos americanos, que para impressionar os seus rivais, doavam ou destruíam os presentes mais extravagantes. Ao privilegiar a honra em vez do materialismo ou dos valores comerciais, estas demonstrações foram mais tarde proíbidas pelos ocidentais uma vez que, segundo estes, corrompiam os sistemas económicos capitalistas vigentes.
Potlatcht é também o nome de uma publicação da Internacional Letrista Situacionista, cujos vinte e nove títulos (entre Junho de 1954 e Novembro de 1957) eram enviados gratuitamente pelos seus editores (Guy Debord e outros) a um grupo de interessados na recepção da publicação e a um conjunto de outros, seleccionados aleatoriamente através da lista telefónica. Para alguns autores, como precursora da "publicação pirata" (ou da "edição selvagem"), Potlacht tinha como principal objectivo a rejeição dos valores mercantilistas. Como expressão radical e experimental, foi igualmente fundamental para a consolidação de uma rede de autores em torno do movimento situacionista que, nas suas próprias palavras, se colocavam deliberadamente no centro da contradição — presentes e em oposição à chamada arte moderna.


SAMIZDAT

A troca exige objecto(s); o manifesto exige acções.
O workshop "SAMIZDAT: publicação editorial independente" decorreu na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa entre 11 de Janeiro e 15 de Abril de 2010.
‘Samizdat’ é um termo russo que descreve o fenómeno que surgiu na USSR pós Estaline. A palavra ‘Samizdat’, etimologicamente, é formada por ‘sam’, que em russo significa auto ou por si mesmo e por ‘izdat’, editora. Este conceito ilustra na perfeição a génese do self-publishing. O fenómeno estava associado à publicação e difusão de ideias de cariz político, subversivo e revolucionário, na forma de material impresso que passava de mão em mão e, assim, fugia à censura. Desta forma, estabelece-se a relação com um dos aspectos mais importantes do self-publishing — a ideologia, seja ela política, cultural, individual.
Como um manifesto, a declaração de intenções para este workshop, propunha um trabalho de campo metódico nas publicações independentes, através de uma aproximação meta-projectual — o contexto leva à experiência e esta à publicação. Esta exploração fundamentada foi basilada pelo reconhecimento profundo de um contexto e das suas inúmeras variantes e temáticas, organizadas em sete aproximações.
A primeira — IDEOLOGIA(S) — encontra na publicação uma possibilidade ideológica, analisa contextos de subversão políticos, sociais, estéticos, investiga fenómenos como o Samizdat e as publicações clandestinas). Em ARTE / PUBLICAÇÃO, explorámos a a publicação como lugar de disseminação das experiências de vanguarda, o livro como extensão do espaço expositivo ou como objecto artístico). EDIÇÃO / CONTEÚDOS explora métodos de apropriaçãom remistura, cut-up, arquivo, recolecção, associações livres, criação, o papel do editor ou o editor como diletante. CULTURA IMPRESSA / CULTURA DIGITAL analisa alterações no fenómeno do self-publishing a partir da cultura digital, os fenómenos de remediação — a redefinição da publicação impressa a partir dos princípios fundamentais da cultura digital, a publicação digital como pastiche ou reflexo da publicação impressa; espaços de convivência — publicações híbridas em papel, multimedia ou hipermedia. META-MEDIA encontra medium e tecnologia como processo e mensagem—como os media e as tecnologias moldam conteúdo e forma. Em PRODUÇÃO analisamos as fases projectuais como um todo — estratégias contemporâneas de sustentabilidade de projectos editoriais independentes, territórios alternativos à produção em massa, pós-fordismo, toyotismo, DIY, just-in-time. Por último, DISTRIBUIÇÃO / PÚBLICO / LEITOR explora a distribuição como fase de produção e processo orientador da publicação, estratégias independentes de distribuição, a procura do leitor ideal ou a construção de comunidade através de interesses afins.
A partir das temáticas desenvolveram-se publicações individuais (que como um monólogo, colocam cada participante perante os dilemas da produção a partir de uma aproximação pessoal) e contribuições colectivas (através do diálogo, como painéis de discussão, obrigam a um consenso perante os temas).
Por via do monólogo ou diálogo chegamos ao Reader, uma publicação auto-reflexiva que aborda o fenómeno do self-publishing através da compilação dos processos do workshop. Esta publicação-documento tem por linha editorial fundamental as noções de cooperação vs. competição — um palimpsesto entre personagens, mais do que entre textos.
Se o workshop é a causa, que despoleta a exploração e o consenso do resultado, o Reader é o efeito. A esta diferença funcional, subjaz ainda uma diferença de tempos. O workshop é efémero, construído por situações quotidianas, em tempo-real, gerador de conteúdo, que questiona imediatamente a metodologia adoptada, que reformula os processos, como uma palestra contínua, alongada, com vários interlocutores. O Reader é perene, fruto de uma sedimentação, materializado através de um dos maiores estandartes dessa perenidade: o codex/livro, limitado, circunscrito, síntese que obriga a reflexão, a um outro tempo de leitura e interpretação.
O workshop é então matéria temporal que origina de imediato a produção, just-in-time, como campo para a experimentação e orientação, porque oferece contexto, agentes, condicionantes e cúmplices. Também é campo de batalha, povoado de contradições e discussões. Constrói comunidade porque estabelece pontos de encontro. Como momento público, prepara a publicação. O Reader como a intersecção de vários planos, como ecossistema para os contributos colectivos e para as publicações individuais, como síntese assumida em volume coeso, como contributo para a investigação ou análise do contexto da publicação independente, auto-reflexivo, como produção crítica.
Ambos investigam o sentido de publicar como processo e não apenas como criação, edição e distribuição de conteúdos.
Em suma, o workshop é momento de remistura ou ressonância, o contexto que alimenta os conteúdos e a orientação editorial do Reader, que também lhe define o processo.
No Reader, à escala dos trabalhos (publicações individuais, contributos colectivos) corresponde uma posição. As contribuições colectivas são enquadradas directamente na publicação, cumprindo ou efectivando a sua grelha, ccoperando com o volume, completando-o, dando-lhe sentido. As contribuições individuais, como panfletos prontos a disseminar mensagem, assumem autonomia, autoral, editorial, artefactual. Como instrumento de difusão de ideias ou ideais críticos, como contributo subversivo, o panfleto instala-se nas franjas das publicações convencionais. As publicações individuais minadas por distintas subjectividades, preparam o binómio cooperação/competição.
Andrew Murphie (2008) no texto "Ghosted Publics" define o conceito de ‘unacknowledged collectivity’, enquanto identifica o fenómeno de expansão e infinita citação entre os vários agentes de publicação independente. Se a competição é feita pela definição e apuramento das características identitárias ("o meu ego é superior ao teu"), na cooperação a identidade esbate-se para dar lugar a uma outra noção social de colectivo. Se a competição coloca a ênfase na noção de autoridade, ordem, superioridade, na cooperação admite-se que o resultado é sempre melhor a partir da soma das partes. Entre competição e cooperação age-se ciclicamente por citação, sampling, remistura (se nem sempre a quantidade é o melhor argumento, o conjunto de publicações que se assumem como compilações copy/paste de outros textos ou de outros autores são disto um claro exemplo).



Criação e autoria: vanguarda, autor, comunidade, manifesto, publicação, design, autofagia/ouroboros, evolução das espécies, independente, à margem/marginal...


VANGUARDA

Em "As Vanguardas na Poesia Portuguesa do Século Vinte", E. M. de Melo e Castro (1980) apresenta a vanguarda como um conceito operacional, como "aferidor do dinamismo interno de uma prática produtora de sentido(s)", como uma provocação às "coordenadas actuais que limitam a nossa prática" que coloca em "jogo mecanismos de atracção e repulsa, de irracionalismo e super-organização racional, na possível elaboração de modelos de evolução e revolução que a tornam em si própria uma prática de Vanguarda."
Esta posição assume-se como uma "Futurologia crítica" que coloca em crise sensível presente e passado, em movimento acelerado. Como palavra de "origem militar e guerreira (por isso obscurantista e desumana)", vanguarda sublinha "uma ideia de combate e de linha da frente, onde os riscos são maiores, e onde o engenho e a arte de cada um podem valer para a vitória de todos..." (Melo e Castro 1980)
Ao exigir a urgência pela teoria, a partir da década de 60, o conceito de vanguarda transforma-se "num motor auto-reflexivo sobre a produção de arte ou de anti-arte, de cultura ou de contra-cultura" (Melo e Castro 1980). Sendo auto-reflexiva, a Vanguarda coloca-se em causa, e com este movimento impulsiona pensamento e acção.
Conceito operacional, como acção, como programa, sensível à teoria que modifica a prática, não é de estranhar que as Vanguardas exijam os Manifestos: "documentos que são em si próprios as produções que vão agir nos contextos sociais (…) Um manifesto Futurista desempenha a função de objecto de acção, mais do que um poema Romântico seria capaz. (…) As intervenções de Vanguarda revestem-se por isso de toda uma complexa orgânica de objectivos e meios que ultrapassa em muito o literário e o artístico tal como elas o herdaram do fim do século XIX (…)." (Melo e Castro 1980)
A Vanguarda é então caracterizada pela dinâmica, dialética, negando valores dogmáticos e fixos, ambiciona o domínio dos meios e a vontade angustiada pelo novo, pela experimentação, pela marginalização. "A novidade contrapõe-se ao velho, ao já conhecido; a marginalidade contrapõe-se ao poder oficializado ou instituído; a liberdade contrapõe-se à opressão, à repressão e à fossilização. São três momentos de um mesmo evoluir dialético." (Melo e Castro 1980)
Como guarda avançada da arte, a vanguarda não é mais do que, como Roland Barthes dirá: "forma de cantar a morte burguesa, porque a sua própria morte pertence ainda à burgesia".
Revestida de valores ideológicos, E. M. de Melo e Castro adverte que a vanguarda "não deve ser confundida com a utilização da 'novidade comercial', característica do consumismo ocidental, pois esse consumismo é um dos mais claros testemunhos de que o novo só encontra lugar como não-novo, isto é, precisamente quando o deixa de o ser. Então transforma-se rapidamente em objecto de consumo ou em objecto de poder." Diz-nos ainda que "Se existe uma ideologia artística (e Adorno diz que a arte é em si própria ideologia) e ela se manifesta a partir dos parâmetros referidos (novidade, marginalidade, liberdade) então diremos que a competência ideológica das vanguardas poéticas é a questionação do político conjuntural para se obter uma nova estruturação do social".
Sublinhamos a relação desta conjuntura com o papel desempenhado pelas publicações ditas independentes na consolidação do design crítico, experimental, laboratorial ou de vanguarda (a publicação como a guarda-avançada do design).
Ora o momento que hoje parecemos viver na publicação independente procura "Regressar à vanguarda e não repeti-la." (Hutchinson 2010). É também na vanguarda que se testam as aproximações entre arte e design, através da experimentação com meios e suportes pouco convencionais. E esta é de certo uma das questões mais interessantes no presente — negam-se as óbvias especializações funcionais, banalizam-se aproximações multi e inter-disciplinares, procuram-se os "entre-espaços", as sobreposições, mais do que os limites territoriais. Nas palavras de Bürger (apud Hutchinson 2010) "a vanguarda pode ser vista como o momento da autocrítica da arte, o momento em que a autonomia da arte é vista como dependência de instituições e estruturas sociais e, consequentemente, em que surge a necessidade de encontrar uma praxis que integre arte e vida. (…) O projecto de integração radical da arte e da vida só é possível com a transformação tanto da arte como da sociedade."


AUTOR

Colocadas à margem, as vanguardas obrigam a exercícios de individuação na história das ideias, dos conhecimentos, das literaturas, na história da filosofia também, e na das ciências. Porque a novidade só acontece perante o singular, perante aqueles que Michel Foucault apelida de os "fundadores de discursividade" (1983). E continua: "Estes autores têm isto de particular: não são apenas os autores das suas obras, dos seus livros. Produziram alguma coisa mais: a possibilidade e a regra de formação de outros textos. Neste sentido, eles são muito diferentes, por exemplo, de um autor de romances, que nunca é, no fundo, senão o autor do seu próprio texto. (…) eles estabeleceram uma possibilidade indefinida de discursos." Ao tornar possível analogias e diferenças, construímos uma teoria da evolução, feita simultaneamente por cooperação e competição.
Permitir a autoria leva-nos à consolidação de sistemas de valor. Segundo Foucault, o autor substitui o herói; hoje, o autor é uma estrela (que valida um circuito fechado apenas reconhecido entre pares), que possibilita a sobrevivência da obra, da sua manutenção para além da morte. A autoria permite pensar a condição de qualquer texto, simultaneamente a condição do espaço onde se dispersa e do tempo em que se desenrola: "(…) um nome de um autor não é simplesmente um elemento de um discurso (…); ele exerce relativamente aos discursos um certo papel: assegura uma função classificativa; um tal nome permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los, seleccioná-los, opô-los a outros textos. Além disso, o nome de autor faz com que os textos se relacionem entre si (…) sob o mesmo nome indica que se estabeleceu entre eles uma relação seja de homogeneidade, de filiação, de mútua autentificação, de explicação recíproca ou de utilização concomitante. (…) indica que esse discurso não é um discurso quotidiano, indiferente, um discurso flutuante e passageiro, imediatamente consumível, mas que se trata de um discurso que deve ser recebido de certa maneira, e que deve, numa determinada cultura, receber um certo estatuto." (Foucault 1983)
A função autor é, assim, característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade. Na origem, o discurso não era um produto ou bem; era fundamentalmente um acto, "colocado no campo bipolar do profano e do sagrado, do lícito e do ilícito, do religioso e do blasfemo." (Foucault 1983)
Em suma, o autor define-se pela constância do valor, pela definição de uma unidade estilística: "pelo que todas as diferenças são reduzidas pelos princípios da evolução, da maturação ou da influência. (…) o autor é uma espécie de foco de expressão, que sob formas mais ou menos acabadas, se manifesta da mesma maneira, e com o mesmo valor, nas obras, nos rascunhos, nas cartas, nos fragmentos, etc. (…) a função autor está ligada ao sistema jurídico e instituicional que encerra, determina, articula o universo dos discursos; não se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de civilização; não se define pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas através de uma série de operações específicas e complexas; não reenvia pura e simplesmente para um indivíduo real, podendo dar lugar a vários "eus" em simultâneo, a várias posições-sujeitos que classes diferentes de indivíduos podem ocupar." (Foucault 1983)


AUTOR/COMUNIDADE

"O autor não está ausente neste livro. (…) Para isso colocar-nos-emos no único ponto de vista que nos é possível: o nosso." (Melo e Castro 1980)

O indivíduo, a sua expressão pessoal é fundamental nas vanguardas que, reconhecendo a sua origem militar, almejam o colectivo. De acordo com Melo e Castro, a utopia ou miragem do colectivo "começa por se manifestar na congregação de "grupos", e vai até à formulação de uma arte que deverá ser feita por todos, mas de facto ainda o não é".
O sistema social de distribuição e, com este, a consolidação da comunidade são, para Robert Drake (1992), mais importantes que os meios físicos de produção. Em última e radical instância, podemos afirmar que a publicação só se faz para construir essa noção de comunidade. Começa por ambicionar encontrar o leitor ideal e deste estende-se ao colectivo, ao reconhecimento dos seus pares. Esta consciência ou emoção colectiva, próxima dos movimentos literários Unanimistas (contra o individualismo e subjectivismo), promove a fusão entre o artista e o grupo de leitores. É esta espécie de empatia latente, não obrigatoriamente baseada na consensualidade do gosto, que leva a maior parte dos editores ao encontro do leitor ideal. A publicação é mais um elemento de socialização, mas também de socialismo. Perante a autoridade histórica da publicação dilui-se a ansiedade pela autoridade do artista, pela sua individualidade forçada, ao encontro agora, do valor do colectivo, da cooperação.


MANIFESTO

Mais pela acção do que pela obra, "o manifesto, aproxima-se de uma negação do objecto, aproximam-se da teoria. Ao negar a arte, é mais pelo grupo. Ser pelo manifesto e não pela interpretação. É continuar sem a arte: mais do que não-arte, é anti-arte." (Hutchinson 2010).
As forças artísticas em construção, tendencialmente politizadas, ao serem colocadas em tensão com os paradigmas antigos, investem na palavra escrita, na autoridade da sua estabilidade para a formulação de novas regras. Da página ao panfleto, expandimos o território até à publicação.


PUBLICAÇÃO-MANIFESTO

Encaramos a publicação como novo espaço para o manifesto, como extensão do território das práticas de vanguarda, como lugar de desenvolvimento das posturas críticas em design, onde pelas páginas do mesmo volume se adensam os argumentos. A publicação surge, deste modo como espaço prolongado para a manifestação das práticas críticas, como ensaio; ao apropriar-se dos circuitos típicos de distribuição/circulação, disponibiliza o discurso à discussão.
Menos pela obra e mais pelo grupo, o designer neste contexto procura o melhor dos dois mundos. Como figura tutelar, unitária coloca-se perante a superimposição de funções, uma vez que domina o mais amplo espectro das funções de produção (editor, designer, produtor gráfico) e igualmente as linguagens e os modos de produção.
Coloca-se a publicação como manifesto ou os livros como "cartas volumosas dirigidas a amigos" (esta ideia mais tarde convertida na máxima "os livros fazem amigos" serve também aqui como exemplo da lógica de migração das ideias—de Jean-Paul a Martin Heidegger a Peter Sloterdijk a Christopher Keller). Assim, para além de registo de uma posição também é registo de cumplicidades, forma uma comunidade, assume-se tendencialmente autofágico, de si para si. Se o manifesto sempre foi entendido como um modo de tornar pública uma posição, também é ferramenta para reconhecer pares ou parceiros de luta (o largo historial de manifestos assim o demonstra), um repto à colaboração.
Subjaz ainda uma outra visão romântica: o livro e a sua recepção formam uma linha condutora entre autor e leitor, construída por um jogo de tensões que desagua no entendimento da publicação como espaço de afecto ou de encontro.
A publicação é então um diálogo entre autor, editor, agentes de legitimação (críticos, coleccionadores, comissários), agentes de produção (editor, indústria gráfica, transportes e distribuição) e leitores. Hoje, todas estas figuras se podem resumir a um único personagem: o designer.


DESIGN

Não é então de estranhar que seja no design que a produção de publicações, hoje, mais se intensifica. Como território de acção preferencial, a página e o livro sempre foram espaços para a experimentação. Entre arte e técnica, vanguarda e valores comerciais, o design gere agora a sua posição híbrida como vantagem perante outras práticas criativas.


PUBLICAÇÃO

Como lugar privilegiado para o conhecimento, para a construção de sentido, o livro é um espaço discursivo por excelência. Esta relação directa com o conhecimento acabaria por encontrar viabilidade nas práticas artísticas que começaram a encontrar na publicação, a possibilidade de expansão da obra de arte e um boicote ao sistema mercantilista da arte: "O dealbar da arte conceptual prenunciou a Idade de Ouro das publicações de arte, precisamente porque começava a olhar para o livro como um objecto de arte an sich ou, mais importante ainda, como uma exposição ou objecto de pleno direito." (Roelstraete 2006)

Numa época de revivalismo ou recuperação da arte conceptual nada mais natural do que assistirmos ao recuperar da publicação como cúmplice das práticas de vanguarda. A publicação assume-se como meio de documentação e como território de ruptura, a crónica do designer como autor anunciado. Ao encontrar a publicação como fruto do binómio informação/transmissão, deixamos o livro como único meio possível e expandimos o modelo possível da publicação — conferências, performances, exposições, tudo parece hoje concorrer para a consolidação do gesto de publicar. Mais importante que o modelo, subsiste um sentido de comunidade: "Because if you're going to say something, you might as well be heard, otherwise you are talking to yourself." (And 1992)


AUTOFAGIA/OUROBOROS

O Ouroboros ou Uroborus é um símbolo antigo que apresenta uma serpente ou um dragão que engole a sua própria cauda, formando um círculo perfeito. Representa frequentemente auto-reflexão, como qualquer coisa que se recria ao infinito, em eterno retorno.
Se a única preocupação da publicação reside na construção de uma rede ou circuito de comunicação entre pares, então podemos estar a correr o risco de criar um sistema autofágico (em grande medida, sabemos que a maioria das publicações artísticas ou em design são "consumidas" pelos próprios artistas, constituindo um dos principais sistemas de valor ou autoridade entre o meio). "Design work is exchanged intra-professionaly, through publishing, lectures, promotional material, other written forms. Publication may lead to speaking engagements, workshops, teaching invitations and competion panels—all of which in turn further promote certain aesthetic positions. At the same time, a historical canon is perpetually generated, a canon that will influence the next generation of designers by indicating what work is of value, what is worth saving, what is excluded." (Michael Rock apud Giampietro 2006)



EVOLUÇÃO DAS ESPÉCIES


"Tem-se geralmente a ideia de que o homem é lobo do homem e nesta concepção se têm assentado doutrinas políticas, sociais e pedagógicas sem que se tenha tentado averiguar se essa hostilidade será natural ou produto de circunstâncias puramente exteriores e até mesmo se o aspecto contrário, o da união, da colaboração, da cooperação não lhe será superior; as observações superficiais do que se passa ou parece passar-se na vida quotidiana, o desconhecimento na maneira de viver dos povos que estão fora dos nossos hábitos sociais e não apresentam nenhuma das características de violência que com tanta facilidade se atribuem aos homens, uma superficial e irreflectida adopção da doutrina darwinista da "luta pela vida", a impressão mais funda que o acto desagradável deixa sempre em comparação com o tom de quase indiferença do que nos ajudou e foi benéfico, tudo contribuiu para que se firmasse o preconceito da maldade humana e para que sobre ele construíssem os seus edifícios, práticos ou teóricos, todos os que nisso podiam ter algum interessse (…)" (Silva 1942)

Através das palavras de Agostinho da Silva, "Potlach" reune-se à filosofia, biologia, organização social e por último surge como possível metáfora às lógicas da publicação.
Ao encarar a publicação como uma espécie, regulamos a mesma aos princípios da evolução e da sobrevivência. Dito por outras palavras, quais as estratégias de subsistência de um projecto editorial.
Como alegoria à selecção natural das ideias e das formas, a publicação pode também ser entendida como uma questão editorial inconsciente, a pertença a uma herança cultural comum (quando se edita reclama-se uma infíma porção dessa linhagem ou legado).
Se cada livro tendencialmente é uma espécie (com o seu ecossistema próprio) traduzem-se cadeias alimentares, sistemas de referenciação que se consomem. Livros como forças culturais, que às vezes cooperam, outras vezes fazem braço de ferro numa competição pela existência/sobrevivência. Uma outra via para a selecção natural das espécies/espécimes. Se aquilo que distingue a espécie humana é a cultura, então a transmissão cultural é análoga à transmissão genética, uma vez que, embora basicamente conservadora, pode dar origem a uma nova forma de evolução (Dawkins 1976). Estará a publicação independente sob as leis das mesmas forças evolutivas? Se sim, falta-nos concerteza a história da sua geneologia (via Darwin ou Kropotkin).



INDEPENDENTE


Independência é a desassociação de um ser em relação a outro, do qual dependia ou era por ele dominado. É o estado de quem ou do que tem liberdade ou autonomia. Engloba estruturas que se colocam à margem das estruturas convencionais, de larga escala, das grandes corporações e das estruturas complexas. As estruturas independentes são normalmente estruturas locais, de pequena escala, com tendência para assumir discursos e ideologias mais experimentais.
No entanto, hoje, a suposta independência exige a construção de uma comunidade, de uma rede de colaboração. A independência exige a inter-dependência.
A autonomia implica pensar estratégias de produção viáveis. "By any means necessary: Photocopier Artists' Books and the Politics of Accessible Printing Technologies" é um conjunto de pequenos manifestos de editores e artistas que colocam na fotocópia a possibilidade de consolidação de sistemas editoriais independentes. Max Schumann (1992) apresenta "By any means necessary" como uma publicação preocupada essencialmente com questões sociais, económicas e políticas. Para este editor, todas as publicações independentes de artista são políticas uma vez que lidam obrigatoriamente com produção e circulação e, neste sentido, com a regulação das ideias à margem da cultura capitalista dominante.
Deste excerto concluímos que autonomia constrói-se com o reconhecimento dos factores sociais, económicos e políticos que viabilizam a sustentabilidade dos projectos. Neste jogo gere-se sempre um equilíbrio subliminar entre estruturas menores e mainstream (que implicam quase sempre complexas estruturas hierárquicas). Esta expressão pessoal, própria, é na maior parte dos casos reprimida pelas normas e convenções de uma cultura dominante e repressiva, autoritária, que se refugia no peso das suas estruturas para desmobilizar a acção individual: "(…) the elite quickly developed strategies to limit access for the common people to this printing channel. The elite spread the myth that to be really effective, a writer had to go through the rituals of the educational system, and then to be blessed by being recognized by the publishing factory, which became increasingly massive and impersonal. Self Publishing was labelled "vanity press". The presses that offered this service were seen as cons, scams. Writers who used this service were though of as untalented fools who got conned. The individual who believed in this myth of the power of corporate media system to bestow access to communications, and to bestom validity through acceptance, was frozen out of any real position for subversive change." (Moore 1992)
Ao contrariar por todos os meios possíveis estas acções para a inacção, as publicações independentes procuram reconstruir estruturas que viabilizem a expressão própria, que longe de permitir tudo indiferenciavelmente, obrigam a compromissos sociais, políticos e económicos.
É esta expressão alternativa que constrói e dá forma a novos tipos de cultura, contra um determinismo autoritário das estruturas convencionais.



À MARGEM/MARGINAL

A independência obriga muitas vezes à marginalidade: "Outra característica que podemos retirar dessa condenação platónica assumida e vivida por um homem de vanguarda (…) é a marginalidade: poetas para fora da cidade! O poeta está condenado a ser um marginal: marginal em relação à vida social; marginal em relação à vida política; marginal em relação ao poder instituído. Mas isso não quer dizer que ele acate essa condenação passivamente." (Melo e Castro 1980)

As publicações ditas independentes (próprias, marginais ou à margem, underground, alternativas, D.I.Y) assumem-se como alternativa a um mercado saturado de publicações que mais não são que cartões de visita, portfolios ou aglutinações obsessivas de tipologias e suportes gráficos.
Também contrariam o sistema hierárquico, autoritário, praticamente impenetrável das estruturas pesadas e imóveis das editoras ditas comerciais.


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P1(ou) P2: p1(ou) p2
P=Paralelo
p=parte

A versão paralela do paralelo: economia, autonomia da arte, fordismo, toyotismo, just-in-time e A/OMEL, especialização funcional, circulação, mãos na massa...


ECONOMIA


"Um negócio que apenas se preocupe com dinheiro é um mau negócio." (Henry Ford)

Agora o exercício passa por circunscrever os movimentos paralelos da produção de uma publicação com as estruturas e estratégias económicas e industriais — os valores paralelos entre a economia capitalista (macro-escala) e as estratégias independentes (micro-escala). Ou seja, a forma como estes vectores paralelos admitem e exigem movimentos ou posições tangenciais — como é que das estruturas de macro-escala extraímos estratégias alternativas, como é que o mainstream aglutina opções underground ou subversivas.
Um projecto editorial independente pressupõe o estabelecimento de estratégias tangentes ou cruzadas com a economia materialista ou capitalista — uma economia paralela. Existe sempre uma lógica económica nas relações afectivas, cúmplices que reúnem os diferentes agentes na produção e recepção do livro. As micro-economias "piscam o olho" às macro-economias, seguem-lhe as opções, procuram-lhe os lapsos, os nichos que constróem as possibilidades. A grande diferença passa então pela escala financeira — um circuito de publicação independente procura a sobrevivência básica, a subsistência pelo mínimo sem ambicionar o lucro ou a acumulação de bens materiais, que definem as lógicas capitalistas.



ECONOMIA/AUTONOMIA DO ARTISTA

A economia da arte exprime por um lado, um conjunto de estratégias, paralelas ou tangenciais às economias comuns, que permitem ao artista prescindir dos apoios convencionais, paternalistas do estado, criando as suas próprias estratégias de sobrevivência. São estes planos que colocam o artista perante a possibilidade de autonomia criativa, levando a adoptar inúmeras vezes, posturas mais críticas ou experimentais. Com textos paralelos, constróem-se economias paralelas. Tudo isto nos leva inevitavelmente ao difícil exercício de relação entre arte e economia e a uma reflexão sobre as políticas culturais. Implica uma tomada de posição do artista, uma posição idealista que o leva, muitas vezes, a conceitos como colectivismo, colaboração, comunidade. Num equilíbrio de tempos, implica igualmente a construção de consensos entre burocracia (necessária para a construção de um sistema, de uma organização) e trabalho artístico (muitas vezes, pouco compatível com estratégias racionais de organização da informação). Obriga a pensar em todos os factores para uma sustentabilidade que providencie a independência. Implica a gestão do tempo, dos recursos, da produção criativa no geral.
Nesta pesquisa, analisam-se e adaptam-se modelos das estruturas capitalistas.
A arte, hoje, constrói um discurso económico que mais do que paralelo é já tangencial às economias capitalistas, fordistas. Na omnipresente crise, é a economia que procura na arte formas alternativas:
"By helping to overthrow the conventions bound up with the old domestic world, and also to overcome the inflexibilities of the industrial order — bureaucratic hierarchies and standardized production — the artistic critique opened up an opportunity for capitalism to base itself on new, more individualized and 'authentic' goods" (Boltanski & Chiapello apud Gielen 2010)



FORDISMO E TOYOTISMO


Idealizado pelo empresário Henry Ford, fundador da Ford Motor Company, o Fordismo é um modelo de produção em massa que revolucionou a indústria automobilística. A partir de 1914 e influenciado por Frederick Taylor, introduzem-se princípios de padronização e simplificação que confluem na primeira linha de montagem automatizada. O domínio dos vários ciclos de produção e das várias necessidades e recursos são também característicos deste modelo.
Esta segmentação do trabalho leva à especialização (aprofunda-se o que se trabalha, desconhece-se tudo o resto) e inevitavelmente à estagnação do operário (anula-se qualquer tipo de movimento — é o trabalho que chega ao trabalhador e não o contrário como é comum nas estratégias anteriores e também nas independentes, onde o funcionário é acima de tudo um empreendedor).
As primeiras crises nas petrolíferas, durante a década de 70 e a evolução dos japoneses na indústria automobilística, colocam o Fordismo em crise, progressivamente substituindo este pela chamada Produção Enxuta ou Sistema Toyota de Produção.
Este novo sistema baseia-se em três princípios. Princípio de Intensificação: intensifica-se o controlo da acção do trabalhador, o emprego imediato dos equipamentos e da matéria-prima e a rápida disposição do produto no mercado. Princípio de Economia: reduz o volume de stock da matéria-prima em transformação. Princípio de Produtividade: aumenta a capacidade de produção do homem no mesmo período por meio da especialização e da linha de montagem; o operário ganha mais e o empresário tem maior produção.
A produção em massa de Taylor e Ford, reduzia os custos unitários dos produtos através da produção em larga escala, especialização e divisão do trabalho, operando com stocks e lotes de produção elevados e, no geral, não ambicionava a qualidade do produto.
Já no sistema "Just-in-Time" (um dos métodos preferenciais do Toyotismo), os lotes de produção são mais pequenos, permitindo uma maior variedade de produtos. Os trabalhadores são multifuncionais, qualificados, sabem operar mais que uma única máquina e é grande a preocupação com a qualidade do produto. Procura-se espelhar os novos valores sociais que vão de encontro ao consumidor, iniciando princípios de personalização (com gostos e necessidades distintos). Esta postura só é possível através de um sistema de produção que privilegia o múltiplo e as pequenas quantidades em vez da massificação e do standart.
Para além da produção propriamente dita, este sistema ainda se preocupa com os desperdícios e propõe-se a eliminar: superprodução (a maior fonte de desperdício), tempo de espera (dos materiais que aguardam em filas de espera para serem processados), transporte, processamento (retirando algumas operações do processo), stock, defeitos (que implica o desperdício de materiais, mão-de-obra, movimentação de materiais defeituosos e outros).
São estas características que aproximam este sistema ao contexto da publicação independente e aos modelos de workshop propostos (como o Samizdat na FBAUL/Lisboa ou 2nd Circulation na H-da/Darmstadt). Mesmo em contextos de reprodução ou seriação, privilegia-se então a possibilidade de acção.



JUST IN TIME E A/OMEL


Como pilar matriz do Toyotismo, e ao colocar a tónica da produção no tempo, Just in time é um sistema de administração da produção que determina que nada deve ser produzido, transportado ou comprado antes da hora exata. Ao entender a produção como um Todo, este sistema relaciona-se com a produção por demanda (como o print-on-demand), onde num primeiro momento de venda do produto, se compra a matéria prima, se fabrica e termina o objecto. Esta estratégia obriga à constituição de uma rede de fornecimento de serviços e matéria prima, muitas vezes aliando estratégias globais com locais (glocalização). Corressponde a uma agilização de todos os agentes envolvidos, na procura das melhores soluções, aquilo que nomeámos de A/OMEL (agilizar / optimizar meios e estruturas locais).
Como técnica de produção originária dos EUA, no início do século XX por Henry Ford, nunca foi posta em prática. Será no Japão, perante a grave crise económica provocada pela destruição da II Guerra Mundial, que encontramos as condições para a sua aplicação.



ESPECIALIZAÇÃO FUNCIONAL


"Instead of a craftsman he must now become a "hand," responsible for nothing but carrying out the orders of his foreman. In his leisure hours an intelligent citizen (perhaps), with a capacity for understanding politics, or a turn for scientific knowledge, or what not, but in his working hours not even a machine, but an average portion of that great and almost miraculous machine - the factory; (…)" (Morris 1902)

A especialização funcional corresponde a uma separação de tarefas num determinado sistema. Esta especialização permite alcançar níveis de produção inatingíveis de outra forma. Também reduz as competências dos indivíduos em sobreviver fora do sistema. A especialização leva progressivamente a um aperfeiçoar da competência específica e por outro lado, a uma ignorância genérica nas restantes capacidades/contextos.



DIY (Do it Yourself)

Oposto às lógicas de especialização funcional, o Do It Yourself surge frequentemente associado aos movimentos punk e anarquistas underground. Esta posição empreendedora coloca nas mãos dos autores todas as tarefas de produção, dotando-os de autoridade e autonomia. Permite negar as consensuais estratégias de viabilidade económica e de vastos mínimos de produção exigidos pelos sistemas capitalistas. Neste sentido, assume-se como um circuito de produção paralelo.
A viabilidade destas posições é muitas vezes colocada em prática pela aproximação simplificada e descomprometida aos meios: "Society appropriates those technologies that will reinforce its cultural ideology. (…) For these fanzines were not only a rejection of the dominate professional culture and a statement of D.I.Y., but importantly the encoding process of Xerox was used to create a coding in language that would cement the binding of interpersonal relationships within the "group" that exhibited members alienation from the values of the dominate culture." (Willats 1992)



CIRCULAÇÃO


"The definition of artistic activity occurs, first of all, in the field of distribution." (Marcel Broodthaers apud Price 2002)

O contexto da publicação existe muito para além do valor artefactual do livro. Michel Foucault em "O que é um autor?" defende que "Talvez seja tempo de estudar os discursos não somente pelo seu valor expressivo ou pelas suas transformações formais, mas nas modalidades da sua existência: os modos de circulação, de valorização, de atribuição, de apropriação dos discursos variam com cada cultura e modificam-se no interior de cada uma: a maneira como se articulam sobre relações sociais decifra-se de forma mais directa, parece-me, no jogo da função autor e nas suas modificações do que nos temas ou conceitos que empregam."
É no movimento de distribuição, a cadeia de intermediários que leva o produto até ao consumidor, que se encontram as alternativas e tangentes aos circuitos comerciais e se reconhece o leitor ideal.
Tudo isto pressupõe uma capacidade de mobilidade elevada — as publicações viajam em maior quantidade e em maior velocidade.
Isto implica o claro reconhecimento de abundância da informação, que turva as nossas capacidades de recepção e leitura da obra. Ora é ainda o livro ou códice que melhor consegue individualizar o ecossistema de leitura como espaço autónomo, que exige uma relação directa íntima entre autor e leitor (Marshall McLuhan defende que o livro foi o primeiro sistema de individuação para a comunicação e conhecimento). Um manifesto ou publicação online obrigatoriamente impõe a convivência próxima, estrutural com outros textos (o hiperlink assim o exige).
É então a leitura que constrói uma primeira elite e com esta a construção de sistemas de autoridade, que fixa um limite para o pensamento (quem domina a palavra escrita, domina a memória e a história).



MÃOS NA MASSA


"We are driven at last, then, to this conclusion; that pleasure and interest in the work itself are necessary to the production of a work of art however humble; that this pleasure and interest can only be present when the workman is free in his work, i.e., is conscious of producing a piece of goods suitable to his own needs as a healthy man; that the present system of industrial production does not allow of the existence of such free workmen consciously producing wares for themselves and their neighbours, and forbids the general public to ask for wares made by such men; that, therefore, since neither the producers nor the users of wares are free to make or ask for wares according to their wills, we cannot under our present system of production have the reality of the architectural arts which I have been urging you to strive for, but must put up with pretending to have them; which seems to me a rather sorry proceeding." (Morris 1901)

Ao entender o prazer da produção e da acessibilidade dos meios como força motriz para a criação, assume-se a importância da matéria como experiência, forma, mensagem e linguagem. Não é difícil constatar que a expressão gráfica é contaminada pelos meios de produção — as fanzines em fotocópia, as novas publicações nos processos mimeográficos, parecem filiar-se numa mesma geneologia linguística.
Logo, mais do que uma tecnologia, as matérias desenvolvidas derivam na construção de uma linguagem, numa espécie de linhagem subliminar entre produções e autores distintos. Permitem a ligação simples entre autor e leitor — acesso à matéria e meios, permite também acesso à audiência: "Photocopying remains the most immediate printing process, in terms of physical access and price, for making small editioned artists' publication quickly. Thus, photocopier books raise questions about access — access to printing technology, and access to audiences." (Schumann 1992). É então o acesso que legitima uma outra forma de poder e de controlo. Permite uma relação quase directa entre produtor e consumidor, entre autor e leitor.
Não será difícil ligar esta aproximação às ideias do Materialismo, que advoga que a única coisa que de facto existe é a matéria, e todos os fenómenos, incluindo os que provém da consciência são resultado das interacções matéricas. A tudo isto acresce ainda a influência das teorias de Marx e Engels na definição do materialismo, e as ligações desta às estratégias laborais, mercadoria e valor (com as inevitáveis ligações aos processos de produção do capitalismo e consumo e a todas as outras que se opõem às primeiras).


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Conclusão para um (re)começo do texto paralelo
À estrutura deste texto remete-se uma metáfora à publicação própria ou independente, como a construção de um sistema vasto, complexo, recombinável, infinito, que aguarda por conclusões.
Identificamos unidades que concorrem para um todo, sistemas que não se permitem ficar satisfeitos com o bom cumprimento de um dos níveis de produção e que sabem só sobreviver, se mantiverem uma obsessão inaudita pelo controlo de todas as fases de criação, materialização, distribuição e recepção da obra.
Continuaremos em busca deste plano paralelo.


Referências bibliográficas:

AND, Miekel (1992) in Max Schumann (ed.) By any Means Necessary: Photocopier Artists' Books and the Politics of Accessible Printing Technologies. Printed Matter: Nova Iorque

BARTHES, Roland (1975). The Pleasure of the Text. Hill and Wang: Nova Iorque

DAWKINS, Richard (1976). "Memes: the new replicators" in The selfish gene. Oxford University Press: Oxford, Nova Iorque. 1989

DRAKE, Robert (1992). in Max Schumann (ed.) By any Means Necessary: Photocopier Artists' Books and the Politics of Accessible Printing Technologies. Printed Matter: Nova Iorque

FOUCAULT, Michel (1983). O que é um autor?. Vega: Lisboa. 1992

GIAMPIETRO, Rob (2006). “Tense Relations” in Stuart Bailey e Peter Bilak, Dot Dot
Dot 12, Ed. Dot Dot Dot: Nova Iorque, The Hague

GIELEN, Pascal (2010). The Murmuring of the Artistic Multitude, Global Art, Memory and Post-Fordism. Valiz: Amsterdão

HENRY, Dana (1992) in Max Schumann (ed.) By any Means Necessary: Photocopier Artists' Books and the Politics of Accessible Printing Technologies. Printed Matter: Nova Iorque

HUTCHINSON, Mark (2010). "Pela Vanguarda: Notas sobre Arte, Capitalismo e Revolução" in Isabel Carvalho, Lígia Paz, Pedro Nora (eds.) A Economia do Artista. Braço de Ferro: Porto

INTERNACIONAL LETRISTA SITUACIONISTA (1954). POTLACHT #1. 22 junho 1954, disponível em

MELO E CASTRO, E. M. de (1980). As Vanguardas na Poesia Portuguesa do Século Vinte. Biblioteca Breve: Lisboa

MOORE, Frank (1992). "Cultural Subversion" in Max Schumann (ed.) "By any Means Necessary: Photocopier Artists' Books and the Politics of Accessible Printing Technologies". Printed Matter: Nova Iorque

MORRIS, William (1901). Art and Its Producers, and The Arts and Crafts of To-day: Two Addresses Delivered Before the National Association for the Advancement of Art. Longmans & Co.: London, 1901. disponível em

MURPHY, Andrew (2008) "Ghosted Publics - the 'unacknowledged collective' in the contemporary transformation of the circulation of ideas" in Nat Muller and Alessandro Ludovico (eds.), The Mag.net reader 3. arteleku/London/OpenMute: San Sebastian. disponível em

PEREC, George (1974). Species of Spaces and other pieces. Penguin Classics: Londres. 2008

PRICE, Set (2002). Dispersion disponível em

ROELSTRAETE, Dieter (2006). "Os Livros de Arte Hoje: Sete teses do ponto de vista do Cúmplice" in Roger Willems e Mark Manders (eds.), Os Livros Fazem Amigos. Roma Publications, Culturgest: Amsterdão, Lisboa

SCHUMANN, Max (1992) in Max Schumann (ed.) By any Means Necessary: Photocopier Artists' Books and the Politics of Accessible Printing Technologies. Printed Matter: Nova Iorque

SILVA, Agostinho da (1942). As Cooperativas. Iniciação: Cadernos de Informação Cultural. edição do autor: Lisboa. disponivel em

WILLATS, Stephen (1992). "Xerox as an agent of social change" in Max Schumann (ed.) By any Means Necessary: Photocopier Artists' Books and the Politics of Accessible Printing Technologies. Printed Matter: Nova Iorque

Wednesday, July 21, 2010

ÉTICA COOL



Consegui, neste início de semana, ler duas recentes publicações nas quais colaborei: o segundo número da Pangrama e o catálogo do projecto Close-Up coordenado por Márcia Novais. As duas publicações partilham vários pontos em comum: são publicações independentes; são publicações independentes que procuram reflectir sobre a edição independente em Portugal; são publicações independentes que procuram catalisar a edição independente em Portugal; são publicações que resultam do empenho de pequenas equipas de jovens estudantes ou recém-licenciados da FBAUP; são duas publicações “cool” e, como exalta João Alves Marrucho no seu “Testemunho” (pp. 61-63 do Close-Up): “a gente cool é a única que é preciosa.”.

McLuahn fez da palavra “cool” um conceito que permite identificar e pensar processos de comunicação (de mediação) dinâmicos, interactivos, abertos e participativos. Há, nestes dois projectos, uma intenção e um sentido “cool” que caracteriza algum do trabalho de uma nova geração de designers (já aqui falámos disso).

O catálogo Close-Up é um agradável objecto gráfico (bem paginado, bem impresso, com bom papel) desenvolvido por Catarina Graça, Márcia Novais, Rita Brito e Rita Ferreira. Para além da apresentação dos projectos selccionados para a exposição, inclui um conjunto de ensaios da autoria de Maria José Goulão, Susana Lourenço Marques, Chris Drapper, Heitor Alvelos, João Alves Marrucho, Anselmo Canha e Miguel Carvalhais. Eu contribui com um ensaio intitulado “Teoria: Modo de Usar” onde faço a introdução à questão da “usabilidade” da teoria do design.

O “segundo número zero” (sic) da Pangrama, projecto da editora Gume, vive do dialogo entre a força dos textos e a força das ilustrações. Na capa não nos surge nenhuma informação verbal, são as ilustrações de José Cardoso que nos convidam a entrar. Lá dentro, um editorial lança o tema: Ética no design. A lista de colaboradores e a qualidade dos textos é muito boa (Heitor Alvelos, Lucas Serra, Joana Baptista Costa&Mariana Leão, Jonas de Andrade e Rita Andrade). O meu texto chama-se “O bom, o mau e o vilão” e surge acompanhado de uma óptima ilustração de Júlio Dolbeth.

Entre os textos que valem mesmo a pena ler, encontramos a seguinte passagem do artigo de Joana&Mariana: “Ética, depois da Universidade passa a ser uma palavra mais pesada, por vezes balofa”. A solução talvez esteja em pesar (ou pensar) menos a palavra e pesar (ou pensar) mais a acção. A solução talvez esteja em ser (agir) “cool”, ou não fossem estes dois projectos bons exemplos para o que pode ser uma ética cool.

Thursday, July 08, 2010




As lições morais de Esopo são narradas sob a forma de fábulas. Sendo consensual a clareza narrativa, a argúcia argumentativa e a validade, dir-se-ia, universal daqueles episódios há algo nas fábulas de Esopo que não se adequa ao nosso tempo. Mas do que se trata afinal? A resposta está no facto do simbólico não ser traduzido para o doméstico. Dito de outra forma, faltam nomes. Poucos querem saber de uma lição moral narrada por um corvo e uma raposa, muitos estão ávidos de participar de um circo onde se arrase com o José ou a Maria.

Recentemente, durante a visita à exposição
Revolution 99-09, o comentário final da pessoa que me acompanhava foi “faltam aqui nomes”. Num dos últimos textos de Mário Moura, alguns leitores caíram-lhe em cima com um lapidar “ou dizes nomes ou calas-te!”.

As fábulas de Esopo transmitem-nos princípios mas, claramente, a nossa época não quer saber de princípios, quando muito toma-os como elementos acessórios para poder dizer mal deste ou (mais raramente) bem daquele.

E no entanto, o debate mais urgente no design português é um debate de ideias, de princípios, de valores. Chamar os bois pelos nomes, tarefa corajosa e seguramente saudável, não substitui uma reflexão mais profunda na qual, abstraindo-nos dos nomes, sejamos capazes de uma tarefa crítica através da troca de argumentos – sobre o ensino do design, a sua empregabilidade, a sua institucionalização, os seus valores, a sua agenda. O desafio estará na necessidade de reaprendermos a discutir ideias e em termos vontade e responsabilidade em o fazer. Por outras palavras, em estarmos pelo menos tão interessados em querer saber "quem disse isso?" como em procurar reflectir sobre "isso que foi dito".

Thursday, July 01, 2010



OZ MAGAZINE






Entre os livros que vou levar para ferias encontra-se o, já velhinho,
Underground: The London Alternative Press 1966-74 da autoria de Nigel Fountain (Routledge, 1988). O livro é particularmente cuidadoso na forma como reconstrói o contexto da edição idependente britânica desse período mostrando a teia de relações entre economia, cultura, política e sociedade. Entre as publicações a que Fountain dá mais destaque encontra-se a OZ uma revista sobre a qual, já há uns anos, aqui falei.

A OZ MAGAZINE nasceu em Sydney em 1963 passando depois a ser editado em Londres, onde foi publicada entre 1967 e 1973 marcando a cultura psicadélica de então.

A edição australiana, influência pelo espírito satírico de Lenny Bruce não era no entanto particularmente inovadora do ponto de vista gráfico.

Quando em 1966, dois dos editores da OZ, Richard Neville e Martin Sharp se mudam para Londres e se envolvem com alguns circulos da contra-cultura britânica a revista assume um papel importante dentro da Underground Press.

Desde o primeiro número londrino (que define a identidade gráfica e editorial da publicação) com o tema “Striptease Teológico”, a OZ passa a ser um espaço de livre expressão e experimentação contando com editores convidados, inúmeros colaboradores e uma enérgica vontade de experimentação (explorando novos formatos e técnicas de impressão) dentro do espírito psicadélico do final da década de 1960.

Foi também através da OZ que o genial Burney Bubbles publicou alguns dos seus trabalhos. O estúdio onde a revista era produzida foi várias vezes alvo de rusgas por parte da Obscene Publications Squad da Polícia Londrina o que, à semelhança de muitas outras publicações visadas, contribuia para o seu fenómeno de culto.


















PERFIL

REACTOR é um blogue sobre cultura do design de José Bártolo (CV). Facebook. e-mail: reactor.blog@gmail.com