Saturday, April 23, 2011

A EVOLUÇÃO DE ABRIL








Em 1930, pouco antes de chegar ao poder, Salazar declarava que «Dizem que os reis não têm memória. Parece que os povos têm muito menos ainda». Terrível ironia, se houve traço definidor da estratégia desenvolvida pela ditadura salazarista, ela passou pela intencional gestão do dito e do não-dito, pela difusão da veracidade e pela ocultação da verdade, numa palavra, pela construção de uma memória através da gestão política do arquivo social. A esse silêncio chamava Marcelo Caetano, pleonasticamente, de «seriedade e honestidade», em contraste (meramente formal) com o «teatro» do congénere regime fascista italiano.


Num texto brilhante – O Fascismo Nunca Existiu - Eduardo Lourenço considera que «impensado enquanto presente», durante cerca de meio século de crua existência, o Fascismo passou a «impensável enquanto passado». Se, na perspectiva de Eduardo Lourenço aqui próxima da de José Gil (a da não-inscrição) o Fascismo nunca existiu, justifica-se perguntar se a Revolução que o vence alguma vez existiu e, a ter existido, que tipo de existência (de inscrição) assume no nosso presente.



A série de colagens realizadas por Ana Hatherly em 1977, intituladas As Ruas de Lisboa, ajudam-nos a pensar aquela questão. São trabalhos de explicita exuberância formal, mosaico de grande intensidade cromática e textural resultante da colagem de fragmentos diversos de cartazes políticos, culturais, espectáculos de circo e publicidade descolados das ruas de Lisboa no pós-25 de Abril. Se cada composição contem inúmeros fragmentos micro-narrativos, nenhuma narrativa chega a ser ali construída. Pelo contrário, o que neles se destaca é uma certa dissonância discursiva que guarda a memória possível de uma mensagem da qual só sobreviveram fragmentos. O que ficou da revolução estaria inscrito (ou não-inscrito) naqueles pedaços de papel, retirados do seu contexto, órfãos de um sentido que eventualmente chegaram a ter. Entre o fragmento do cartaz anunciando o congresso da Juventude Comunista e o cartaz de um espectáculo de circo há agora uma olhar que os equaliza, indistingue e indefine. Eles fazem parte da mesma memória difusa do que aconteceu memória sem força nem sentido para se tornar actuante e a qual resta tornar actual - na forma mais trágica de a situar no passado - comemorando-a no dia certo.

A memória é evolutiva, logo susceptível de ser manipulada. Talvez por isso, hoje não se comemore sequer uma revolução mas apenas uma certa evolução.




WORLD GRAPHICS DAY

O dia 27 de Abril, data da criação da Icograda - International Council of Graphic Design Associations, é comemorado internacionalmente como o World Graphics Day.

Apesar da desconfiança com que me relaciono como datas como uma esta, acredito que o dia 27 de Abril pode ser uma ocasião, mais do que de celebração inconsequente de uma disciplina ou profissão, para se gerar um forum de debate e crítica de ideias. Venho defendendo a necessidade do design, em tempos de crise, conseguir produzir um discurso e uma prática fortes, resiliente e ideológico.


Dia 27, a partir das 16 h, no magnífico espaço do Cine-Teatro Constantino Nery em Matosinhos, juntar-se-ão a mim: Alva; Andrew Howard; António Modesto; Aurelindo Jaime Ceia; Bolos Quentes; Carlos Guerreiro; Dorindo Carvalho; Eduardo Aires; Emanuel Barbosa; Ivone Ralha; Francisco Providência; Joana & Mariana; João Alves Marrucho; João Faria; João Vinagre; Jorge dos Reis; José Brandão; Jorge Silva; Manuel Granja; Martino & Jaña; Moda Lisboa; Nada; Nuno Coelho; Pedro Falcão; Ricardo Mealha; Rui Silva; Valdemar Lamego; Vera Tavares.

O principal objectivo quando comecei a trabalhar na curadoria do Esad World Graphics Day passava por criar o referido espaço de produção e debate de ideias, acreditando que, para além da qualidade do trabalho mostrado, da reunião de dezenas de designers algo, com força, poderá nascer. Expectativas, as melhores!

Sunday, April 03, 2011

FUTUROS POSSÍVEIS*


Observando o presente, é fácil constatarmos o regresso de um certo quadro de referências que caracterizou a década de 1970. Na recente manifestação de dia 12 de Março, que juntou cerca de 200 mil pessoas só em Lisboa, foi possível ver cartazes recuperando o grito lançado pelo movimento Punk nos anos 1970: No future!

Se por “futuro” entendermos uma ideia, que resulte de um largo consenso, capaz de clarificar e dar sentido ao presente de uma sociedade, então parece inevitável, por dramático que isso seja, admitirmos esta actual ausência de futuro, o que torna urgente que nos mobilizemos num novo projecto: a construção social do futuro. O design joga aqui um papel determinante.

Desde 2001, data da realização do I Fórum Social Mundial que nos fomos familiarizando com o slogan “Um outro mundo é possível”. Este e outros fora, organizados ao longo da última década associavam-se a iniciativas de cidadania, tornadas mais consequentes e mobilizadoras pelas possibilidades de comunicação oferecidas pelas redes sociais, criando um importante movimento não apenas de resistência mas igualmente de resiliência ao modelo de organização social e político (categorias subsumidas, nos últimos tempos, pelo económico) dominante. O design foi marcando presença em muitos desses fora. Na cimeira de Davos, em 2009, por exemplo, o programa do Fórum Económico Mundial reservou espaço para uma mesa de trabalho coordenada por Alice Rawsthorn, sobre o contributo do design para a construção de uma nova ordem mundial.

Observando a crescente responsabilização social que tem orientado os discursos e as práticas do design, devemos reconhecer uma mobilização desta disciplina para se afirmar como uma prática crítica, impondo um olhar, que saindo para fora das paredes dos ateliês de design, se confronta intencionalmente com a realidade, considerando-a enquanto “campo de possibilidades” e procurando projectar alternativas que, de forma positiva e sustentável, permitam ultrapassar determinados problemas presentes. Tomás Maldonado defendia, nos anos 1970, a importância de acreditarmos na “esperança projectual”: projectar significa propor, de forma metódica, alternativas susceptíveis de superar o que é criticável no presente. O desconforto, o inconformismo ou a indignação perante o que existe á nossa volta deve suscitar nos designers o impulso para projectar a sua superação.

Falar em design, deve pressupor falar numa prática profissional colectivamente enquadrada e, ainda, identificar uma agenda social que esclareça acerca das intenções e dos processos que orientam o contributo do design na construção social do futuro. O debate em torno desta agenda, a consciência do seu carácter fulcral, está ainda no início. Tal debate deve, nos próximos tempos, envolver designers, associações de design, escolas, instituições e empresas, sem esquecer os cidadãos – razão de ser te todo o projecto – para, no rumo por ele gerado, encontrarmos um sentido que nos permita afirmar um design que em vez de esgotar a sua energia em experiências diversas de inovação difusa se revele capaz de propor ideias novas sobre a sociedade, a economia, o bem-estar, se revele, enfim, capaz de projectar, neste presente, futuros possíveis.


* Este texto foi publicado no nº 1 do suplemento D com o qual irei colaborar, produzido pela Experimentadesign, integrado na revista Fora de Série do Diário Ecónómico de dia 01 de Abril.

PERFIL

REACTOR é um blogue sobre cultura do design de José Bártolo (CV). Facebook. e-mail: reactor.blog@gmail.com