Friday, December 30, 2011

DOIS MIL E ONZE




O artigo que o Ípsilon hoje publica, antevisão possível do panorama cultural português em 2012, questiona, sob o título d’”O ano de todos os perigos”: E se não houver IndieLisboa? E se o teatro e a dança independente se desprofissionalizarem? E se o cinema português acabar no “era uma vez”? E se Paulo Furtado só tiver o estrangeiro? E se a FNAC sair de Portugal? E se o Teatro Viriato deixar de ser do mundo para voltar a ser da província? E se a cultura portuguesa estiver condenada a ser “low-cost” para sempre?

O ano de 2011 torna crível qualquer cenário. Em ano de recessão e protesto, de disforia e inquietação, o contexto do design não deixou de reflectir a conjuntura, sinais positivos surgiram em paralelo a outros mais preocupantes.

Souto Moura ganhou o Pritzer e no dia em que recebeu o prémio das mãos do Presidente dos Estados Unidos disse que “Hoje, como ontem, a solução para a arquitectura portuguesa é emigrar.” À falta de melhores políticas, Passos Coelho pegou na deixa. Centenas de designers, na sua maioria recém-licenciados perceberam a ausência de alternativas e deixaram Portugal.

Os melhores livros (O Retorno de Dulce Maria Cardoso) e filmes (Sangue do Meu Sangue de João Canijo) que surgiram neste ano não deixavam de andar em torno desta pesada realidade de sempre, que há força de se repetir se torna condição ontológica da nossa identidade.

Entre pedido de ajuda externa e extinção do Ministério da Cultura, relegado a Secretaria dirigida por um pouco entusiasmante secretário de estado, a palavra mais ouvida nos últimos 12 meses sentiu-se em particular na produção dos estúdios de design. Olhando para o que foi produzido o ano não foi particularmente estimulante, notando-se uma menor visibilidade de João Faria e trabalhos interessantes dos suspeitos do costume, Martino&Jaña especialmente.

As conversas corporativas andaram ocupadas com a possibilidade de criação de uma Ordem dos Designers, ideia que, até prova em contrário, não me suscita grande entusiasmo. Ao mesmo tempo, por culpas várias, a crise do CPD acentuou-se, 2012 poderá marcar a sua extinção ou profunda remodelação.

Com o passar dos meses Guimarães 2012 foi confirmando as piores expectativas, desorganização, gestão duvidosa, pouca capacidade de envolvimento de criadores e programadores nacionais. Da anunciada Bienal de Viana do Castelo mais nada se ouviu. De destinos menos prováveis como Paredes e S. Tirso chegaram, enfim, boas surpresas.

Guta Moura Guedes assumiu algum protagonismo mediático na defesa da economia criativa e das potencialidades do design em tempos de crise. Mas terão sido mais as vozes que as nozes. Mostrando habilidade em entender os sinais dos tempos (e dos mercados) empresas como A Boca do Lobo consolidaram a sua presença internacional, através de projectos elitistas e extravagantes como o polémico cofre em ouro.

Na viragem para a segunda década do século, dois dos principais leitmotivs da década anterior – o design social e a crítica do design – perderam claramente força.

A crítica do design que havia sido impulsionada pela energia da blogosfera vinha mostrando sinais menor competência que se evidenciaram em 2011, através da degradação do Design Observer ou na anunciada extinção do MA em Design Writing and Criticism da London College of Communication.

Face à crise dos blogues de design, uma clara excepção: a energia manifestada por Mário Moura no seu Ressabiator.

Em ano de Experimentadesign, 2011 parece-me ter tido três protagonistas: Fernando Brízio consagrado na boa exposição Desenho Habitado; Jorge Silva responsável pela Coleção D  (um dos projectos editoriais do ano) e o já referido Mário Moura pela produção dentro e fora (nomeadamente o ciclo de conferências na Culturgest) do seu blogue.

Mais do que os estúdios de design, foram as escolas a contribuir para alguma actividade. O Politécnico de Tomar revelou a existência de massa crítica com uma óptima edição do ARTEC, de Coimbra e de Aveiro vieram, igualmente, boas intenções. No Porto, a ESAD prosseguiu uma programação ambiciosa, enquanto das Belas Artes eventos como a Feira de Publicação Independente ou a segunda edição do Close Up consolidavam méritos de jovens designers-editores-curadores como Ana Simões ou Márcia Novais.

Mesmo arriscando-me a ser juiz em causa própria, diria que outros destaques do ano passam, necessariamente, pela abertura da Galeria Quadra, espaço de referência para a programação de design, onde se exibiram já três excelentes exposições (Isidro Ferrer, David Carson e Maria Gambina) e para um conjunto de novos eventos produzidos pela ESAD em particular o Books Make Friends e a maratona de excelentes apresentações do World Graphics Day, talvez o evento nacional do ano.

Num ano marcado por uma certa euforia em torno da edição, tendência que vinha de anos anteriores, foram acontecendo feiras em Lisboa e Porto e surgiu, finalmente, uma revista de design, a Pli Arte&Design cujo segundo número será lançado no início de Janeiro.

Para além da já referida Coleção D, cujo volume dedicado a Pedro Falcão será publicado em breve, referencia também para a Coleção Arquitectos Portugueses que a QuidNovi publicou com o Público.

O ano permitiu ainda ver algumas boas conferências como a de Gillo Dorfles no IADE (em Outubro) ou George Hardie a fechar o ano na ESAD, mas sem a mesma energia de anos anteriores (sente-se a falta dos Personal Views).

O próximo ano promete ser ainda marcado por alguma dinâmica editorial e curatorial. Ao protagonismo de alguns curadores portugueses (Miguel Amado na TATE e a notícia, a fechar o ano, de Pedro Gadanho no MoMA) associar-se-á no início do ano o primeiro curso de Curadoria Contemporânea promovido pela ESAD em colaboração com Serralves e a Experimentadesign do qual se esperam bons resultados.

O ano promete arrancar forte com a conferência de Charlotte Cheetham do Manystuff  no próximo dia 13 na ESAD.

Que seja o prenúncio de um ano de forte reacção à crise!


Monday, December 12, 2011

George Hardie

Na próxima quarta-feira a minha short list dos designers que queria muito ver fica mais reduzida com a conferência de George Hardie na ESAD.

 Os seus trabalhos mais conhecidos datam dos anos 70, no contexto da sua colaboração com o NTA Studios e os Hipgnosis.

 Entre o final dos anos 60 e o início dos anos 80 (o colectivo dissolveu-se em 1983) Hardie colaborou em inúmeras ocasiões com o grupo Hipgnosis que combinando ilustração, fotografia e um interessante uso da tipografia criaram algumas importantes capas de discos para bandas como os Pink Floyd, T.Rex, Alan Parsons Project, Peter Gabriel e XTC.

 A conferência de Hardie será ainda uma ocasião privilegiada para confirmar em que me medida os processos e lógicas dos anos 70 estão (ou não) absolutamente actuais.

Wednesday, June 15, 2011




Nos últimos tempos quase não tenho lido blogues e, como se vem constatando, à exepção de um texto publicado no Foroalfa, não tenho escrito em blogues. O último post do Reactor data de 23 de Abril.

A responsabilidade, entre outras, terá a ver com um certo impulso do analógico. Na verdade tenho escrito muito para publicações impressas e tenho desenvolvido um diálogo e reflexão crescentes sobre o objecto impresso e o actual programa que parece orientar a energia editorial. Esse diálogo tem sido explorado com publicações nacionais e internacionais, como a Pangrama , Oficina do Cego, Punkto, Drawing Room Confessions, Patterns of Creative Aggression, mas também como uma série de interlocutores individuais, como os meus colegas no Mestrado em Design Susana Edwards e Andrew Howard ou, num registo mais pontual, com Paulo T. Silva, Brad Freeman, Steven McCarthy, Roger Sabin ou Mário Moura.


Contudo, uma das principais causas da menor energia entregue ao Reactor, resulta da grande energia com que nos últimos meses me entreguei a um novo projecto: a revista Pli. Com lançamento já marcado para dia 30, no MUDE, é um publicação trimestral, de registo crítico, sobre os cruzamentos disciplinares entre arte e design contemporâneos, i.e., uma certa prática crítica que parece caracterizar uma certa contemporaneidade.

Resultado do trabalho de uma pequena equipa, eu e Sérgio Afonso assumimos a editoria, João Martino e Inês Melo a Direcção de Arte, com a ajuda pontual mas preciosa de Márcia Novais e Marta Ramos, acredito que aquela revista de design, que nos corredores, nos cafés ou nas salas de aula, nos queixávamos de não existir em Portugal, está a surgir.

A partir de agora, fica também o compromisso, de voltar a fazer do Reactor um espaço regular de produção e diálogo de ideias sobre design.

Saturday, April 23, 2011

A EVOLUÇÃO DE ABRIL








Em 1930, pouco antes de chegar ao poder, Salazar declarava que «Dizem que os reis não têm memória. Parece que os povos têm muito menos ainda». Terrível ironia, se houve traço definidor da estratégia desenvolvida pela ditadura salazarista, ela passou pela intencional gestão do dito e do não-dito, pela difusão da veracidade e pela ocultação da verdade, numa palavra, pela construção de uma memória através da gestão política do arquivo social. A esse silêncio chamava Marcelo Caetano, pleonasticamente, de «seriedade e honestidade», em contraste (meramente formal) com o «teatro» do congénere regime fascista italiano.


Num texto brilhante – O Fascismo Nunca Existiu - Eduardo Lourenço considera que «impensado enquanto presente», durante cerca de meio século de crua existência, o Fascismo passou a «impensável enquanto passado». Se, na perspectiva de Eduardo Lourenço aqui próxima da de José Gil (a da não-inscrição) o Fascismo nunca existiu, justifica-se perguntar se a Revolução que o vence alguma vez existiu e, a ter existido, que tipo de existência (de inscrição) assume no nosso presente.



A série de colagens realizadas por Ana Hatherly em 1977, intituladas As Ruas de Lisboa, ajudam-nos a pensar aquela questão. São trabalhos de explicita exuberância formal, mosaico de grande intensidade cromática e textural resultante da colagem de fragmentos diversos de cartazes políticos, culturais, espectáculos de circo e publicidade descolados das ruas de Lisboa no pós-25 de Abril. Se cada composição contem inúmeros fragmentos micro-narrativos, nenhuma narrativa chega a ser ali construída. Pelo contrário, o que neles se destaca é uma certa dissonância discursiva que guarda a memória possível de uma mensagem da qual só sobreviveram fragmentos. O que ficou da revolução estaria inscrito (ou não-inscrito) naqueles pedaços de papel, retirados do seu contexto, órfãos de um sentido que eventualmente chegaram a ter. Entre o fragmento do cartaz anunciando o congresso da Juventude Comunista e o cartaz de um espectáculo de circo há agora uma olhar que os equaliza, indistingue e indefine. Eles fazem parte da mesma memória difusa do que aconteceu memória sem força nem sentido para se tornar actuante e a qual resta tornar actual - na forma mais trágica de a situar no passado - comemorando-a no dia certo.

A memória é evolutiva, logo susceptível de ser manipulada. Talvez por isso, hoje não se comemore sequer uma revolução mas apenas uma certa evolução.




WORLD GRAPHICS DAY

O dia 27 de Abril, data da criação da Icograda - International Council of Graphic Design Associations, é comemorado internacionalmente como o World Graphics Day.

Apesar da desconfiança com que me relaciono como datas como uma esta, acredito que o dia 27 de Abril pode ser uma ocasião, mais do que de celebração inconsequente de uma disciplina ou profissão, para se gerar um forum de debate e crítica de ideias. Venho defendendo a necessidade do design, em tempos de crise, conseguir produzir um discurso e uma prática fortes, resiliente e ideológico.


Dia 27, a partir das 16 h, no magnífico espaço do Cine-Teatro Constantino Nery em Matosinhos, juntar-se-ão a mim: Alva; Andrew Howard; António Modesto; Aurelindo Jaime Ceia; Bolos Quentes; Carlos Guerreiro; Dorindo Carvalho; Eduardo Aires; Emanuel Barbosa; Ivone Ralha; Francisco Providência; Joana & Mariana; João Alves Marrucho; João Faria; João Vinagre; Jorge dos Reis; José Brandão; Jorge Silva; Manuel Granja; Martino & Jaña; Moda Lisboa; Nada; Nuno Coelho; Pedro Falcão; Ricardo Mealha; Rui Silva; Valdemar Lamego; Vera Tavares.

O principal objectivo quando comecei a trabalhar na curadoria do Esad World Graphics Day passava por criar o referido espaço de produção e debate de ideias, acreditando que, para além da qualidade do trabalho mostrado, da reunião de dezenas de designers algo, com força, poderá nascer. Expectativas, as melhores!

Sunday, April 03, 2011

FUTUROS POSSÍVEIS*


Observando o presente, é fácil constatarmos o regresso de um certo quadro de referências que caracterizou a década de 1970. Na recente manifestação de dia 12 de Março, que juntou cerca de 200 mil pessoas só em Lisboa, foi possível ver cartazes recuperando o grito lançado pelo movimento Punk nos anos 1970: No future!

Se por “futuro” entendermos uma ideia, que resulte de um largo consenso, capaz de clarificar e dar sentido ao presente de uma sociedade, então parece inevitável, por dramático que isso seja, admitirmos esta actual ausência de futuro, o que torna urgente que nos mobilizemos num novo projecto: a construção social do futuro. O design joga aqui um papel determinante.

Desde 2001, data da realização do I Fórum Social Mundial que nos fomos familiarizando com o slogan “Um outro mundo é possível”. Este e outros fora, organizados ao longo da última década associavam-se a iniciativas de cidadania, tornadas mais consequentes e mobilizadoras pelas possibilidades de comunicação oferecidas pelas redes sociais, criando um importante movimento não apenas de resistência mas igualmente de resiliência ao modelo de organização social e político (categorias subsumidas, nos últimos tempos, pelo económico) dominante. O design foi marcando presença em muitos desses fora. Na cimeira de Davos, em 2009, por exemplo, o programa do Fórum Económico Mundial reservou espaço para uma mesa de trabalho coordenada por Alice Rawsthorn, sobre o contributo do design para a construção de uma nova ordem mundial.

Observando a crescente responsabilização social que tem orientado os discursos e as práticas do design, devemos reconhecer uma mobilização desta disciplina para se afirmar como uma prática crítica, impondo um olhar, que saindo para fora das paredes dos ateliês de design, se confronta intencionalmente com a realidade, considerando-a enquanto “campo de possibilidades” e procurando projectar alternativas que, de forma positiva e sustentável, permitam ultrapassar determinados problemas presentes. Tomás Maldonado defendia, nos anos 1970, a importância de acreditarmos na “esperança projectual”: projectar significa propor, de forma metódica, alternativas susceptíveis de superar o que é criticável no presente. O desconforto, o inconformismo ou a indignação perante o que existe á nossa volta deve suscitar nos designers o impulso para projectar a sua superação.

Falar em design, deve pressupor falar numa prática profissional colectivamente enquadrada e, ainda, identificar uma agenda social que esclareça acerca das intenções e dos processos que orientam o contributo do design na construção social do futuro. O debate em torno desta agenda, a consciência do seu carácter fulcral, está ainda no início. Tal debate deve, nos próximos tempos, envolver designers, associações de design, escolas, instituições e empresas, sem esquecer os cidadãos – razão de ser te todo o projecto – para, no rumo por ele gerado, encontrarmos um sentido que nos permita afirmar um design que em vez de esgotar a sua energia em experiências diversas de inovação difusa se revele capaz de propor ideias novas sobre a sociedade, a economia, o bem-estar, se revele, enfim, capaz de projectar, neste presente, futuros possíveis.


* Este texto foi publicado no nº 1 do suplemento D com o qual irei colaborar, produzido pela Experimentadesign, integrado na revista Fora de Série do Diário Ecónómico de dia 01 de Abril.

Monday, February 21, 2011




A MINHA GERAÇÃO


“O Desejo”, artigo de opinião de Guta Moura Guedes publicado no Público da passada quinta-feira, é um texto que reúne diversas qualidades - ideias lúcidas, boas intenções, uma certa dose de esperança – eventualmente prejudicadas por um discurso demasiado genérico e pouco argumentativo na defesa da cultura “como um vector de agregação, de mobilização, de coesão social e também como um vector de requalificação.” Face ao “desejo nacional” de “sair daqui” – “sair desta crise e do contexto onde colectivamente nos colocámos” – Guta Moura Guedes apela, mesmo não sendo muito explícita nesse apelo, às possíveis formas de emancipação, individual e colectiva, promovidas pelos agentes culturais (onde incluo os designers, críticos de design, professores de design). Da minha parte, seria ainda mais explícito nesse apelo, desde logo por não se tratar de um simples apelo mas sim de uma responsabilidade que cabe aos agentes culturais (expressão tendencialmente abstracta mas menos abstracizante que “cultura”) e que parece estar a ser esquecida face a uma súbita (?) onda auto-condescendente e desresponsabilizadora.

O imenso palco dado – pelas redes sociais e media convencionais – às criticas ou, mais frequentemente, lamentos da “geração à rasca”, da “geração nem nem” ou da “geração parva” (várias gerações pareceram rever-se na canção dos Deolinda) criou uma ilusão de activismo à elas associado, ao ponto de, rapidamente, se estabelecerem ligações (a nossa cultura é especialista nessas sinapses livres) entre a revolução na Tunísia ou no Egipto e a anunciada manifestação “Geração à rasca” marcada para o próximo dia 12.

A canção dos Deolinda e, em particular, a sua letra é bem menos interessante do que o fenómeno que ela gerou. A dimensão da explosão não é necessariamente proporcional à dimensão do rastilho, e isso é bom. O texto de Rui Tavares publicado no Público de 02 de Fevereiro é um exemplo de instrumentalização ideológica de uma canção, e é positivo saber que ainda há quem se empenhe em fazer política assim. Mas a bola de neve que entretanto se gerou, essa parece-me pouco interessante, errática e inconsequente. A contestação tem sido bem mais passiva do que activa, bem mais negativa que positiva. Tem, com frequência, assumindo o tom da censura mais do que o tom da crítica. A análise critica do que existe pressupõe que a “situação real” não esgota as possibilidades da existência (o que é, não é, necessariamente, o que pode vir a ser) e que, portanto, há alternativas susceptíveis de superar o que é criticável no que existe; já a censura encontra um auto-comprazimento da declaração do que é censurável, não a motivando nenhum passo seguinte.

Entre muitos da minha geração e da geração seguinte, encontro essa vontade crítica de emancipação, essa consciência crítica de que há diferentes formas e graus de subjectividade, diferentes formas e graus de cidadania e de que a cidadania representativa não esgota as possibilidades de um agir civil autónomo. Na última década fomos tendo sinais da afirmação de um novo modelo de equilíbrio entre formas de regulação e formas de emancipação. Fomos tendo exemplos das consequências da crise da cidadania representativa e da passagem para formas de cidadania directa. Também o artista e o designer se tornaram entrepreneurs, empreendendo novas formas de negociação entre a sociedade e o projecto. A canção dos Deolinda não representa, em relação a essa revolução Pro-Am um retrocesso, mas talvez represente, em todo o caso, a tentação de assobiar para o lado.

Wednesday, February 02, 2011

SENTIMENTAL JOURNEY


Já, em mais de uma ocasião, fizemos referência à profunda transformação que se verifica em Portugal no campo das artes gráficas (o design – colocado entre aspas – ainda estava para chegar) a partir de meados da década de 1920. Nos anos 1930, como fizemos notar neste outro texto, a primeira geração do design português estava já consolidada. É nessa década que, encorajados pelo crescimento das encomendas institucionais, são criados os primeiros estúdios de design e publicidade casos do Atelier Arta de Artur Soares e Jorge Barradas, do Atelier Íbis de Bernardo e Ofélia Marques e Sarah Afonso, da agencia ETP de José Rocha, do Estúdio MR de Manuel Rodrigues onde irá colaborar Sebastião Rodrigues o nome central da segunda geração e o elemento de continuidade, a par de Victor Palla, Fernando Azevedo e Sena da Silva, para o design novo de onde emergem Paulo Guilherme, António Garcia, Armando Alves, Gentilhomem ou José Brandão este último nascido já no final da década de 1940.

O trabalho, na sua grande maioria profundamente desconhecido, da primeira geração, bem como o enquadramento cultural que então se vivia, vem-me interessando particularmente. Nos últimos meses, procurei fazer um levantamento dos mais importantes designers profissionais que então trabalhavam, procurei localizar onde se situavam os seus estúdios e quais os clientes para quem trabalhavam. O fim deste trabalho ainda vem longe mas, confesso-o, tem sido apaixonante. Esta pesquisa deu, no entanto, lugar a um outro projecto o de percorrer o mapa, reconstituído, dos locais onde funcionaram estúdios de design nos anos 1940 e 50 em Lisboa e fazer o levantamento actual do que ali existe. Em muitos casos os edifícios permanecem intactos, como o prédio de rendimento no nº 29 da Rua Barata Salgueiro onde no 3º esquerdo funcionou o atelier de Jorge Barradas. Muitos são os lugares a procurar, sítios onde trabalharam Eduardo Anahory (Travessa do Cabral, 51, 1º), Paulo Ferreira (Avenida de Berna, 50, 4º direito), Manuel Lapa (Travessa das Mercês, 34, 2º) ou TOM (Travessa da Água da Flor, nº 1). Uma viagem pela história; uma viagem sentimental.
TEORIA: MODO DE USAR



“trabalhar do lado do desejo contra todos os efeitos do poder”

Eduardo Prado Coelho



De que falamos quando falamos de Teoria? E, indo directo à questão, o que fazemos quando fazemos Teoria? Adrian Shaughnessy, no seu Graphic Design: A User’s Manual, esclarece-nos na entrada “Theory” que “We associate theory with the experimental end of graphic design. Yet paradoxically, the most dramatic and longlasting theorizing of graphic design hás not been done by intellectually inclined designers and educators, inflamed by writings of French post-Modern philosophers.”

Esta passagem, na sua brevidade, introduz diversos aspectos relevantes: por um lado o reconhecimento, em jeito de quase-queixume, de que são os outros (os franceses e, como se isso não chegasse, para mais filósofos e dos pós-modernos!) a fazer teoria do design (e não os nossos, designers profissionais e professores de design com tendências intelectuais); e por outro lado, em jeito de quase-definição, a associção entre teoria e “experimental end of graphic design”. Sinteticamente, Shaugnessy alinha, deste modo, por uma perspectiva disciplinar do design, no contexto da qual se sugere uma compreensão prática da teoria, na qual a teoria seria, antes de mais, experimentação.

Deixando de lados algumas simplificações, eventualmente erróneas, que encontramos no discurso de Shaughnessy, interessa-nos evidenciar a relevância desta ideia de experimentação, como um possível modo de usar a teoria no desenvolvimento de um processo de design.

Para se compreender a ideia, deve-se reconhecer, propedêuticamente, que os modos de pensar e fazer design na contemporaneidade se alteraram. Em 2007, a Tate Modern reuniu um conjunto notável de curadores, críticos, designers e artistas sob o mote das disrupting narratives . Aquela noção, irremediavelmente entrelaçada a uma série de outras como pós-produção, hibridização, remixologia, participação e performatividade, procurava identificar novos processos de vanguarda na arte e design contemporâneos.

Partindo daquilo que as narrativas disruptivas poderão localizar, podemos perceber como as transformações do contexto social da prática do design dão lugar a novas práticas de vanguarda, isto é, a novas formas de os designers se assumirem como produtores sociais. A análise, como ela é aqui introduzida, não é orientada para a questão, do domínio da história do design, de saber se a atenção prestada pelos criadores culturais ao retorno complexo que resulta do seu envolvimento social poderá transformar as categorias formais do design (um pouco à semelhança da análise feita por Andrew Blauvelt ); interessam-nos mais as formas como os designers participam na mediação de novos significados sociais, ou seja, interessa-nos actualizar o papel sociopolítico do designer, indissociando-o do que podemos designar por acção no interior do actual “campo expandido” do design.

É sabido que, na sequência da publicação em 1998 da Esthétique Relationnelle de Nicolas Bourriaud fomos assistindo à rápida e disseminada afirmação de uma lógica de criação baseada no corpo relacional, geralmente associada a uma valorização do processo (Bruce Mau afirma, de resto, no seu Incomplete Manifesto que “process is more important than outcome” ), do contexto, da obra aberta, da autoria colectiva (agora designada de co-design ) e de uma certa tensão identitária entre design-arte, obra em movimento e acontecimento social.

Antes de Bourriaud, autores como Kathy Acker, ligados ao campo da teoria crítica, haviam definido as bases de uma teoria legitimadora das práticas de vanguarda do design contemporâneo agora associadas a diversas linguagens disruptivas: “the languages of flux”; “the languages of wonder materiality and play”; “the sexual and emotives languages”; “languages of intensity”; “language that forgets itself”, etc.

Este corpo discursivo, no sentido de Acker, este corpo relacional, no sentido de Bourriaud, tende a ser trabalhado como um medium processual operador da passagem de uma relação de contemplação para uma relação de utilização (política, social, científica etc.) das obras; o corpo relacional é assim lugar de afirmação de uma acção política (no sentido da “política directa” ou “sub-política” de Ulrich Beck) na medida em que se considera que “having reflections and critical thoughts is to get active, posing questions is to come to life.” .

Como afirma Rick Poynor, “Relational aesthetics is at root a political idea—Bourriaud describes how the relationship between people is “symbolised by goods or replaced by them, and signposted by logos.” Clearly, this is a world shaped by design. Today, he suggests, we are presented with the “illusion of an interactive democracy in more or less truncated channels of communication.” Thus, you can write your opinion on the wall at Tate Britain, but it has no influence on the selection process for the prize, or the jury’s decision about the winner. Participation is an illusion. The system, controlled by the curators, continues much as it always did.”

O que está em causa passa, no essencial, por saber, no quadro da actual acção “sub-política” qual o papel do designer? Qual o seu “estatuto produtivo”? E em que medida o crescente recurso às práticas participativas permite o consistente desempenho desse papel produtivo do designer.

Em O Autor Como Produtor, Benjamin recorre a Brecht para defender a ideia de que a produção cultural deve gerar trabalhos que “não devem ser tanto vivências pessoais (ter carácter de obra) mas antes ser orientados para a utilização (transformação) de certas instâncias e instituições” sublinhando a diferença entre “o simples fornecer de um aparelho de produção e a sua transformação”. O objectivo é tornar “os leitores ou espectadores em colaboradores” desse processo de transformação social.

Na introdução a Forms of Inquiry, esforço exemplar de procurar mapear estes processos de vanguarda do design gráfico contemporâneo, Zak Kyes e Mark Owens explicam os pressupostos do projecto nos seguintes termos: “Forms of Inquiry emerges from a desire to draw attention to a number of recent developments in the field of graphic design that highlight its increasingly fertile relationship with architecture. Broadly, this involves a loose network of fellow-travellers whose work mobilises graphic design as a specifically critical activity.” . Os actuais processos de vanguarda são assim caracterizados por estas duas ideias-chave, hibridização e criticalidade, acrescentando-se que “it involves work that is motivated by a shared impulse to reframe the circumstances surrounding contemporary graphic design practice by using intuitive modes of investigation to probe the boundaries of the discipline and to explore the mutual Exchange and shared lineage between graphic design” e outras áreas, métodos e estratégias de produção de conhecimento.

Sobretudo na segunda secção da obra, intitulada “Modes of Production”, onde se analisa a “matrix of new critical positions” (através da exploração de novas relações entre o designer e o seu público; da exploração de novos processos de edição; novas estratégias curatoriais; diferentes explorações da especificidade contextual e novos posicionamentos perante a envolvência política dos projectos), os pontos de proximidade com as debatidas e as posições defendidas em Disrupting Narratives são evidentes.

O que se identifica, em projectos tão diversos como os, analisados em Forms of Inquiry,Paul Elliman, Karel Martens & David Bennewith, Dexter Sinister, TASK ou Manuel Reader, aos quais se associam aqueles, citados em Disrupting Narratives e ainda, por exemplo, shared spaces de Ben Hamilton-Baillie ou o Bubble Project de Ji Lee, é que os métodos utilizados para renovar a participação activa do design na política são consistentes com as convenções da vanguarda modernista: confronto com as estruturas sociais vigentes e transformação das contradições do quotidiano na matéria-prima de criação projectual. Contudo, nestes projectos contemporâneos assistimos à definição de novas estratégias (partilhando mais afinidades com as vanguardas radicais dos anos 1970 do que com as vanguardas históricas do início do Século XX), visando tornar os projectos mais colaborativos, estratégias que indiciam uma intenção, politicamente pragmática, de converter, cooptar e criticar as instituições a partir de dentro, e já não de uma forma distanciada. Ao modelo institucional vigente, a acção de vanguarda não opõe agora uma utopia alternativa, de transformação global da sociedade, mas antes uma acção distópica que procura produzir, localmente, transformações efectivas na organização social.

Como se lê em Forms of Inquiry, “By its very nature, graphic design is primarily concerned with giving shape to ideas and information provided by others. Indeed, the process of negotiation that underpins day-to-day design pratice provides many of its challenges and satisfactions (not to mention its frustations and disappointments). But what happens when the designer assumes the role of editor, publisher and distributor outside the constraints of the familiar client/designer relationship?” , questões respondidas nestes termos: “Through a variety of interventions, including self-initiated publishing projects, local DIY outreach initiatives, one-off events and small-scale retail operations these designers consolidate the discrete functions of design production and expand the category of activities that might be said to constitute a graphic design practice. In the process, they open up both the physical bounds of graphic design’s working-in-the-world and the possible functions of the design studio itself.” . Se os vários processos descritos para caracterizar as actuais práticas de vanguarda são, no essencial, processos que encontramos largamente explorados pelas vanguardas históricas do início do Século XX, o que há de diferenciador nestes trabalhos contemporâneos é o modo como eles são gerados no interior de estruturas de retaguarda, como eles operam de forma integrada e, como aludimos, contribuem para a inovação social adaptando-se ao funcionamento de estruturas mainstream.

A passagem do designer da posição de autor para a posição de colaborador na construção do conhecimento social implica, porém, diversas modificações do próprio modo de se entender a prática do design:

Em primeiro lugar, actualizando-se a prática do design numa sociedade plural e multicultural, o design não pode ser conduzido por uma teoria comum (uma certa definição de good design) mas exige antes uma “prática de tradução” que torne as diferentes acções mutuamente inteligíveis e permita aos actores sociais dialogarem sobre as opressões a que resistem e as aspirações que os animam. É por via da tradução e do que, segundo a expressão de Boaventura Sousa Santos, podemos designar de “hermenêutica diatópica” que uma necessidade, uma aspiração, uma prática numa dada cultura pode ser tornada compreensível e inteligível para outra cultura;

Em segundo lugar, exige uma transformação do quadro epistemológico do design, a passagem de um modelo de peritagem para um modelo de conhecimento edificante, passagem através da qual o designer deixa de ser reconhecido como “perito” ou “especialista” a quem compete dar resposta à necessidade de um cliente ou consumidor (esquema produtor/consumidor) para passar a ser reconhecido como um “agente social crítico” que colabora activamente, e no exercício das suas competências, com os seus parceiros não-designers na procura de uma transformação efectiva de determinados aspectos da realidade. Designer e não-designer funcionam, dentro deste modelo, como “parceiros epistémicos” na construção política e social, devendo o designer assumir uma “objectividade forte” , para usar a expressão de Sandra Harding, que não convida à neutralidade, objectividade que permite dar conta eficazmente das diferentes e porventura contraditórias perspectivas, posições, motivações, que se confrontam numa dada situação social, que permite, numa palavra, ao designer o exercício da mediação.;

Em terceiro lugar exige uma alteração da própria estratégia de acção, o que pode ser formulado falando de uma passagem da acção conformista para a acção emancipatória. A ideia, já mencionada, de design relacional – num sentido próximo da “estética relacional" de Bourriaud – recupera o propósito e a prática da transformação social emancipatória. O já referido Bubble Project é disso um, muito simples e directo, exemplo; a emancipação, assume aqui a forma de uma recepção activa, influenciada pela reivindicação que dela fez Umberto Eco no seu “A Guerrilha Semiológica”: perante o carácter ditatorial dos mass media contemporâneos, o nosso protagonismo como emissores é marcadamente limitado. Mas se não temos controlo sobre a construção da mensagem podemos assumir um maior controlo sobre a sua recepção, podemo-nos tornar receptores críticos e activos e, dessa forma, localmente subverter as mensagens globais. Os designers do Bubble Project não são “produtores de conteúdos” são “instauradores de discursividade”, para usar a expressão de Foucault, catalisadores.

Num texto intitulado “Work&Run”, publicado no Reactor, e cuja redacção antecede a escrita no presente ensaio para o catálogo do Close Up, encontramos uma referência ao trabalho de uma selecção de young studios apresentado no número de Maio da revista Graphic. Em muitos aspectos, a descrição que aí fazemos, adequa-se a vários projectos seleccionados para este Close Up: Mais do que as características formais dos objectos produzidos, o que se destaca no trabalho da maioria destes “young designers” é a forma de os produzir: é na exploração do processo que reside a sua energia. E o processo tem como objecto o próprio design e as suas múltiplas possibilidades de mediação e catalisação social. Auto-edição, práticas colaborativas, projectos curatoriais fazem parte das práticas deste self-referential design onde a circulação de pessoas e ideias, a recepcção e a remistura são parte importante do processo criativo. A produção de conteúdos, e sua consequente calibração para comunicação pública, são cada vez mais obra de todos e de qualquer um, por tentativa e erro, por wiki-aproximação.

O estúdio catalão Bendita Gloria criado pelos designers alba Rossel e Santi Fuster, um dos
nomes seleccionados pela Graphic, comentava na sua página no Facebook, que adoram dar workshops. Os seus projectos, mesmo quando não resultam formalmente de um workshop, surgem na sequência de um processo experimental e participativo que habitualmente caracteriza um workshop.

Cada projecto é, assim, pensado como um laboratório, literalmente: um lugar onde se fazem experiências, onde se colocam hipóteses. É o próprio design como laboratório social que, no fundo, é experimentado.

Numa entrevista recente à 40fakes, Santi Fuster deixava esta curiosa afirmação: “En la universidad oímos alguna vez “… en un contexto profesional es inviable”. Este tipo de comentario nos hizo pensar que tal vez no nos interesaba el contexto profesional del que nos hablaban.”. Criar o próprio contexto de produção revela-se um aspecto determinante de processos e projectos de design contemporâneo. A experimentação que Shaugnessy evocava, o modo de usar a teoria ou, se se quiser, uma experiência do design enquanto modo de pensamento culturalmente activo torna-se assim uma marca indelével no projecto contemporâneo.


Nota: Este texto foi escrito para o catálogo da 1ª edição do Close-Up, agora de "portas abertas" para a sua 2ª edição.

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REACTOR é um blogue sobre cultura do design de José Bártolo (CV). Facebook. e-mail: reactor.blog@gmail.com