O artificial ou a era do design total
Maria Teresa Cruz
Originalmente publicado em www.interact.com.pt
Uma das razões pelas quais o design se vem tornando uma questão fundamental na cultura contemporânea é, certamente, a do seu carácter expansivo, para não dizer mesmo, a do seu carácter imperativo. O reconhecimento deste facto traz consigo, não apenas desconfianças na relação do design com outros domínios e práticas culturais (como tradicionalmente foi acontecendo na sua relação com a arte e com a técnica), mas também, inquietações internas ao próprio domínio do design e dos seus operadores. Inquietações a respeito da sua natureza e especificidade.
A hipótese de que parto é a de que estamos a aproximar-nos de um momento de transformação radical da nossa cultura, que poderíamos designar como a entrada numa era do «design total». Tal não significa apenas o reconhecimento usual de que tudo ou quase tudo vai entrando na sofisticação de uma congeminação estética e funcional, como acontece, hoje em dia, com o mais insignificante objecto, utensílio, aparelho ou máquina. De facto, o reconhecimento do carácter crescentemente expansivo do design é, em geral, identificado com uma ascenção de quase todas as coisas a uma discursividade social e cultural. Mas, o que chamo «design total» é, inversamente, o processo pelo qual as as produções e realizações da cultura tendem apresentar-se como afectadas por uma quase inevitabilidade e imediaticidade próprias da natureza. A era do «design total» será, pois, a era onde tudo ou quase tudo parecerá ser o resultado de uma quase história natural, sendo ao mesmo tempo, contudo, inteiramente intencionado, inteiramente concebido e inteiramente desenhado. Ou seja, a cultura, no seu estado de «design total» é a cultura na era do apagamento da fronteira entre natural e arificial, o momento em que, aquilo que é inteiramente intencionado pelo homem, tenderá a apresentar-se como puramente natural.
Na verdade, esta hipótese vai ao encontro do próprio sentido da palavra «design», aparentada com a ideia de iludir enganar ou os obstáculos que se apresentam à acção do homem, já que «design» (quer como nome quer como verbo) significa não apenas intencionar, visar segundo um plano, mas também esboçar com sucesso uma simulação de algo sobre o qual possuímos um conjunto de intenções. É neste plano que a ideia de design mais intimamente se reune às noções de arte, de técnica (techne) e, ainda, de mecânica e de máquina, aproximáveis, todas elas de um pensamento artificioso que caracteriza o homem como artifex e ser de cultura. Nesta perspectiva as palavras, aparentemente exageradas de Vilém Flusser em Philosophy of Design , ganham pleno sentido: «This is the design that is the basis of all culture: to deceive nature by means of technology, to replace what is natural with what is artifiical and build a machine out of which there comes a god who is ourselves. In short: the design behind all culture has to be deceptive enough to turn mere mammals conditionel by nature into free artists»(1). A era do «design total» é a era da plena revelação deste carácter factício ou artificial da cultura, a era da crença quase absoluta no poder criativo do homem, o que significa, também, a era da libertação radical da potência da técnica e do domínio desta sobre a natureza. «Being a human being - como diz ainda Flusser - is a design against nature», e um tal pensamento parece conter cada vez maior plausibilidade.
Numa perspectiva de confiança humanista na docilidade instumental do conhecimento técnico-científico, que alimentou grande parte da aventura moderna, era possível pensar ainda, como Vico, que conhecemos ou compreendemos melhor aquilo que precisamente fazemos ou realizamos nós mesmos (verum ipsum factum, dizia Vico) (2). Mas, a acelaração do progresso técnico, sobretudo a partir do século XIX, assim como alguns dos seus efeitos problemáticos sobre a vida, touxe consigo a impressão quase generalizada de que a técnica corresponde a uma espécie de processo autónomo, processo pelo qual seríamos arrastados e cuja natureza escaparia na verdade aos desígnios e finalidades estabelecidos pelo homem, algo que alguns filósofos acabarão por descrever como a realização impensada de uma potência libertada pela metafísica ocidental, mas não controlável ou pilotável pela sua ética, pela sua moral, ou por qualquer outra filosofia prática. Neste seu movimento, a técnica estaria assim mais próxima desse outro do humano que é a natureza, quer como algo que mantém para nós enigmas essenciais, quer como algo que representa para o humano uma ameaça tão importante como foi ancestralmente a da própria natureza. Na verdade, grande parte da reflexão sobre alguns importantes domínios da tecno-ciência contemporânea tem sido feita sob o signo do fim do humano, ou do que alguns designam como o «trans-humano» ou o «pós-humano», nomeadamente diante das novas possibilidades de manipulação e design da vida, em concorrência com a própria natureza (3). Ainda que esta perspectiva seja abraçada por alguns com entusiasmo, senão mesmo com euforia, não é possível iludir, no mínimo uma inquietação justificada: aquilo que estamos em vias de realizar e de alcançar como novas conquistas e nova etapa da cultura humana apresenta-se-nos como imensamente estranho ou incomensurável com a própria ideia de humano, contradizendo o princípio de Vico, ou ainda a velha máxima de Terêncio: «nada do que é humano me é estranho». Na era do «design total» um estranho paradoxo parece pois instalar-se : a dominação artificiosa dos mistérios da natureza não torna necessariamente o mundo mais humano ou mais familiar, como obra nossa, mas sim, de novo, estranho e inquietante (senão mesmo mágico), quase tão inapreensível e inapelável como uma nova natureza. O humano, que nos habituámos a pensar como um processo continuado de incrustração continuada da cultura na natureza, parece debater-se hoje com a imposição cultural ou artificial de uma nova natureza.
Na verdade, foi sempre nesta concorrência entre natureza e cultura que esteve fixado o pensamento da antropologia moderna. Aquilo a que chamamos «natureza humana» constitui-se, não sobre um conjunto de atributos essenciais conferidos pela história natural, mas sobre uma ferida ontológica : aquela que precisamente une e separa «natureza» e «humano». Toda a antropologia confirma, de facto, que o homem é essencialmente artifício e invenção em concorrência com a própria inventividade e o próprio desígnio da natureza. É a natureza, dizem-nos desde há muito, que o homem teve necessariamente que transcender, em alguma medida, para surgir como homem. O problema do humano é assim o problema do nosso lugar e da nossa acção no seio de todas as coisas existentes. E a resposta a este problema veio, desde logo, por meio de um conjunto de gestos que visavam e implicavam em si a natureza, operando transformações decisivas no seu seio, e aprofundavam a cisão do homem relativamente a ela. São esses gestos que dão figura ao humano e, simultanemente, transfiguram a natureza. O gesto técnico surge pois como decisivo, desde tempos imemoriais, para uma determinação do humano e da sua relação à natureza. E, por isso, foi desde cedo evidente, para uma antropologia filosófica, que o crescente desenvolvimento da técnica poderia vir a revelá-la como uma «segunda natureza».
O olhar da moderna paleontologia confirma esta visão, transformando-a mesmo numa espécie de narrativa fundadora: a narrativa de um homem que surge, verdadeiramente, quando surge a oposição do polegar relativamente aos outros dedos da mão, isto é, quando surge a capacidade de preensão e manipulação do mundo à sua volta, concomitante, por sua vez, ao surgimento da própria capacidade simbólica. Antes mesmo que esta mão e esta racionalidade simbólica iniciem uma história de radical transformação da natureza, esta sofre, por esta simples ocorrência, uma transfiguração fundamental, ainda que inicialmente invisível: a transfiguração de coisa que nos faz face em coisa manipulável, ou como dirá um dia Heidegger, de coisa vorhanden em coisa Zuhanden. Para o olhar dos modernos não há pois invenção do humano sem reinvenção da natureza e, por isso, todo o mistério da originação do humano aparece como indissociável da oposição do artifício e do desígnio [design] humanos a uma plenitude dada da natureza.
A oposição entre natural e artificial é assim o operador de todo um conjunto de passagens e de transgressões que nos revelam o homem como um ser arrancado à sua mera verdade física e biológica, sem contudo a poder verdadeiramente abandonar. O homem é assim um ser de fronteira e a transformação criativa do mundo, por acção deliberada do homem, consiste na inscrição em todas as coisas dessa mesma fronteira entre natural e artificial: a exibição na pedra ou na madeira de uma forma intencionada, a imposição às águas de um rio de um curso deliberado, etc... O modo de ser daquilo a que chamamos «mundo» ou «humano» parece pois, desde sempre, indissociável de uma mesma ferida [partilha ?] ontológica, inscrita no coração das coisas, que repete a própria cesura do homem. Esta cesura representa a todo o momento o que permite ao homem a transcendência do que lhe aparece como dado, mas também o peso desse dado sobre a invenção de outros possíveis, isto é, o peso da criatura sobre o gesto criador.
A acreditarmos nas descrições e previsões actuais acerca das possibilidades de acção e de intervenção do homem sobre todas as coisas, nomeadamente sobre a vida e sobre si mesmo, dir-se-á estar em constituição uma nova ontologia em que tal cesura se apagaria: uma ontologia do artificial, isto é, um modo de ser inteiramente intencionado pelo homem. O apagamento da cesura do natural e do artificial faria com que tudo não fosse senão testemunho do homem, num certo sentido, portanto, "demasiadamente humano" para ser ainda do homem e por isso, talvez, trans-humano ou pós-humano. A ontologia do artificial requer uma onturgia que o próprio humano não parece suportar e que recai então sobre a técnica, como se esta se emancipasse da própria esfera do humano e da cesura que nela a inscreve.
A possibilidade de um universo artificial parece depender assim, inteiramente, da hipótese de um estatuto autónomo e ontúrgico da tecno-ciência moderna. Uma tal possibilidade assenta, por sua vez, num pressuposto propriamente metafísico, o qual, em outros momentos, foi da máxima importância para a ontologia, para a cosmologia, para a teologia cristã e mesmo para a própria história natural - o príncipio de «plenitude», conforme relembra, Hermínio Martins. Segundo o princípio metafísico da plenitude, tudo o que é possível é, foi, ou será actual, isto é, realizado. Princípio transferido agora para a técnica, como «Princípio de Plenitude Tecnológica», diz Hermínio Martins (4). Compreende-se, assim, esse sentimento fundamental do nosso tempo: o sentimento de que a técnica é algo que nos empurra, nos conduz como um destino (e não como um desígnio), algo que se substitui à própria história ou a toda a teleologia, algo perante o qual todos os debates, nomeadamente éticos ou simplesmente metodológicos, acerca da imposição de determinadas finalidades ou de determinados usos à técnica parecem, no mínimo, extremamente frágeis (5).
A assunção deste «Princípio de Plenitude Tecnológica» parece estar a ser enunciado, de facto, pelos programas da tecno-ciência actual: programas radicais de substituição de realidades naturais em vários domínios (biológico, químico e geoquímico), capazes de manter a adequação de um meio ambiente crescentemente depauperado ; programas de hibridação, sobretudo no domínio da diversidade biológica ; e, ainda, como metodologia de simulação, ou como virtualização, programas crescentemente abrangentes de informacionalização dos fenómenos naturais. Como diz Hermínio Martins: uma «prodigiosa fertilidade de produção de novos seres, não só físicos, químicos, biológicos, mas híbridos, de várias ordens e graus de hibricidade, em que tudo se pode combinar e articular, superando as barreiras dentro dos taxa biológicos, dos cinco reinos dos seres vivos (na classificação de Lynn Margulis que já entrou para os manuais), ou de reinos da natureza; hibricidade realizável em grande parte pelo prisma da informação em, que todos os seres vivos se encaram como sistemas de processamento de informação, comensuráveis pelo código genético, e mais geralmente pela aritmética binária e a digitalização, que torna possível a sua manipulação e portanto a sua miscigenação sem limites, em princípio»(6) . Uma verdadeira onturgia(7), portanto, a qual, em última análise, não teria senão paralelo na própria «criatividade cósmica endógena» (8) do «Big Bang», aquela que fez acidentalmente nascer a própria história natural. Paralelo, anunciado afinal, pela ideia do artificial como «segunda natureza», ele próprio resultante dessa espécie de acidente metafísico que é o da libertação sem precedentes da inventividade, autonomia e poetência da técnica, na modernidade. Se o escândalo primordial foi o de arrancarmos ao acidente que é natureza a possibilidade do artifício, o escândalo de hoje parece ser o de acidentarmos pelo artifício uma nova natureza, sobretudo, o escândalo de o de o fazermos (e por certo será com acidentes), no domínio da vida (essa que foi, dizem-nos, uma quase improbabilidade) . Na verdade, este acidente, ou estes acidentes (possivelmente em cadeia) não têm propriamente hora marcada, embora, pela futurologia que caracteriza os diagnósticos do presente, eles possam estar já a acontecer. Em todo o caso, é pelo menos indesmentível que o artifical tem vindo a invadir a textura e a nomenclatura do existente. Há muito que a extensão e a profundidade da dominação física, química, biofísica e bioquímica da matéria permitiu, por exemplo, a emergência de novas substâncias isoladas e, sobretudo, de novas sínteses, inexistentes enquanto tais na natureza (por exemplo, o famoso plástico, certo tipo de substâncias químicas enquanto elementos isolados ou associadas em novos compostos, como acontece em inúmeros fármacos, etc..) com as quais o mercado invadiu, aliás, o nosso quotidiano. Anunciados, incialmente, com ruidoso entusiasmo, os novos produtos sintéticos, são hoje dominantes em todas as áreas do consumo, apesar da sua prodigiosa composição (sintética) ser agora remetida para minúsculas legendas de embalagem, temerosas das das nostalgias do «100% natural». Os termos «artifical» e «sintético», cuja afinidade importa interrogar, não têm parado de marcar presença à nossa volta, nomeadamente no universo do digital, onde readquirem, por sua vez, uma nova euforia: falamos de sintetizadores de som, de imagens de síntese e, até mesmo, de Inteligência Artificial, de Realidade Artificial e de Vida Artificial, sugerindo estas últimas possibilidades, de facto, a perspectiva de um pan-arteficialismo de novo tipo.
Ora, diante da possibilidade de tudo se poder converter em artifical, a distinção entre natural e artificial deixa verdadeiramente de ter sentido e revela-se alias como uma má oposição. Uma ontologia centrada sobre a distinção entre natural e artifical, falha o essencial desta nova situação: ou seja, o facto de ela própria oferecer uma condição comum a todas as coisas, tão radicalmente comum quanto a da própria natureza, pois também ela atravessa o orgânico e o não orgânico, o humano e o não-humano e, ainda, o real e o informacional. Em todos estes domínios parece viável a emergência de novas sintetizações e resintetizações tecnobiológicas, tecnoquímicas e tecnofísicas. Assim sendo, é numa nova ontologia que nos encontramos lançados ou, como anunciava desde há muito a antropologia filosófica, «nova natureza», de facto, numa nova condição comun de partida. Em suma, trata-se de numa nova queda na physis, a que é preciso de novo arrancar o humano, e não, como pensamos ainda preservá-lo.
Esta queda na natureza manifesta-se, aliás, pelo facto de a técnica permanecer de olhos postos nas qualidades, nas formas e nas ocorrências da natureza. Mais do que uma transcendência da natureza o que a técnica nos propõe, com enorme sistematicidade, é a sua imitação radical, isto é, uma imitação que, desta vez, pretende dispensar toda a mediação. Por isso domina, mesmo nos programas mais ousados das ciências que visam biologicamente ou informacionalmente a vida, uma terminologia efectivamente ligada à mimesis: «clonagem», «replicação», «simulação». Independentemente das novas realidades e até dos novos seres que possamos ver surgir destes programas, trata-se de uma criatividade cujo fundamento é, ainda, o da imitação, pelo menos formal, de processos e movimentos da vida. As sínteses que caracterizam as ocorrências espontâneas ou as produções verdadeiramente originárias da natureza, são aqui, porém, o efeito ilusório de um exaustivo mapeamento analítico, complementado de minuciosos procedimentos construtivistas e composicionais: a clonagem é possível graças ao mapeamento exaustivo do genoma humano; as estruturas rizomáticas das redes tecnológicas da informação, têm por base uma realidade discontínua de pontos; e tal como a sequência de frames é o que permite a montagem cinematográfica e essa extraordinária ilusão de vida que é o cinema; as unidades lógico-matemáticas são o que permitem as novas simulações das imagens digitais. O ponto de partida de todo o efeito de síntese tecnológica é o descontínuo e o cálculo do descontínuo, ou o que designamos hoje como a informação e processamento da informação, em condições de extrema aceleração. Os efeitos simulacrais mais ousados que se esperam actualmente dos sistemas de realidade virtual parecem depender na sua maior parte de uma aceleração ainda maior deste processamento, e por isso, se investe já, hoje, na possibilidade matemática de uma nova geração de computadores.
Se há uma nova ontologia do artifical ela é assim, por ora, uma ontologia fraca, na medida em que procede ainda por análise e recomposição do existente, imitando os efeitos sintéticos da natureza mas não, verdadeiramente, os seus procedimentos, estando talvez ainda longe do que alguns tomam como uma «auto-poiesis». A sua potência manifesta-se, contudo, na forma como os seus procedimentos parecem atravessar e baralhar todos domínios, ameaçando dissolver, não apenas a fronteira entre o que é natural e o que é fabricado pelo homem, mas também as distinções precisas que estabelecemos no seio da natureza: a distinção entre seres orgânicos e não orgânicos, entre seres animados e inanimados, entre seres inteligentes e não inteligentes, entre seres que sentem e seres que não sentem, etc... Estas séries compõem, no seio do existente, linhagens e hierarquias bem distintas de atributos e possibilidades. O que chamamos «homem» tem sido pensado como um cruzamento preciso de alguns destes atributos, organizando à sua volta uma certa cosmogonia. O limite inferior desta cosmogonia era o dos animais e o seu imite superior o de Deus. Mas se a distinção entre Deus e o homem e entre o homem e o animal são distinções fundantes de toda a nossa cultura, é também verdade que o homem se pensou, necessariamente, a partir delas, como sendo, quer uma «espécie de animal», quer, também, uma «espécie de Deus» ou um «quase Deus» (9). Na verdade o homem é o único ser que atravessa toda a extensão desta cosmogonia, desde o seu limiar inferior até ao seu limiar superior e, por isso, a possibilidade de um pós-humano afecta não apenas uma visão do homem mas, necessariamente, a visão de tudo à sua volta. Nesta travessia, só as coisas, as coisas inertes e inanimadas, pareciam constiutir a verdadeira alteridade do humano.
Ora, após muitos milhares de anos de confronto decisivo com os animais e alguns milénios também de confronto com os Deuses, o confronto humano de hoje parece ser sobretudo um confronto com as coisas. Como diz Mario Perniola num ensaio que intitula O Sexappeal do inorgânico (segundo uma expressão de W. Benjamin): «agora é a coisa que atrai toda a nossa atenção, (...) que se converteu ao mesmo tempo em centro de todas as inquietações e em promessa de felicidade» (10) . No limite, estaríamos diante de um devir coisa do mundo, que os modernos precisamente denunciaram por várias formas, como uma «reificação», o que queria geralmente dizer, alienação do humano. A visão tecnológica de hoje prossegue esta imagem como uma alienação dos atributos do humano, que poderiam agora ser redistribuídos pelas coisas. Tudo não seriam senão coisas, mas elas poderiam chamar a si uma infinidade de atributos que, em princípio, lhes são estranhos: organicidade, vida, movimento, inteligência, sensibilidade. A possibilidade de um devir coisa do humano, e de um devir humano da coisa, contém por inerência uma nova cosmogonia. Ao distribuir indistintamente os atributos do homem, esta nova cosmogonia surge ainda dominada pela ideia do humano, mas deixa de poder concebê-lo como a figura organizadora e central dessa hierarquia vertical que nos situava num ponto da escala entre a vida e a sua transcendência divina. A nova cosmogonia lança tudo na horizontalidade, distribuindo o homem aos pedaços pelas coisas. Coisas quase vivas, quase humanas, e até quase mágicas, como Deuses. Num mundo de coisas, o design torna-se a disciplina conceptora por excelência, distribuindo agora, para além de formas e funcionalidades, capacidades, qualidades e finalidades. A ficção científica há muito que se entretém a fabricar uma nova etologia imaginária de seres artificiais (robots, andróides, cyborgs) que não são verdadeiramente classificáveis como espécies, mas sim como coisas, através dos seus modelos, gamas, patentes, séries de fabricação, etc...
A oposição entre organismo e mecanismo, na qual o pensamento moderno tendeu a fixar-se, desde a invenção dos primeiros mecanismos automáticos, foi o primeiro pólo aglutinador da comparação entre os homens e as coisas. O organismo, realidade a que a biologia moderna deu um lugar central, importava, antes demais, como grande imagem da vida, da sua organização e da sua complexidade, e como possibilidade de esclarecimento do seu mistério. Mas, o que começou a tornar-se verdadeiramente obsediante, nomeadamente entre o séc. XVII e e séc. XIX, foi a possibilidade de compreender e controlar a fronteira entre vida e não vida, como mostram as miragens literárias de criação de seres artificiais, as ficções sobre os vampiros (seres que não estão nem verdadeiramente vivos nem verdadeiramente mortos) e, finalmente, o desejo de animar as imagens, com o cinema. A oposição fundante desta nova cosmogonia é a oposição entre animado e inanimado. Dominada a passagem entre um e outro, abrir-se-ía à coisa a travessia de todos os reinos: do natural, do humano e do sobrenatural. A possibilidade de redesenhar a vida, desde o mais elementar movimento (kinesis) que a expressa, até ao mais inefável ânimo que a sustem, é a miragem da enorme galeria de seres fantásticos que estranhamente povoam o imaginário da entrada na era da técnica moderna, e de que são especimens inesquecíveis o Frankenstein de Mary Shelley e a Eva Futura de Villier.
Mais do que os meandros biológicos da vida, em que ainda hoje se embrenham as discussões sobre o corpo «orgânico» ou «pós-orgânico», são os meandros metafísicos da vida que estão em causa, nesta nova comparação entre o ser humano e a coisa. Aliás, as imagens prospectivas de uma «vida articial» parecem dispensar crescentemente a ideia de um corpo, e mais ainda de uma carne. As coisas cobiçam os atributos do humano manifestando precisamente uma pretensão ao que nele há de mais intangível - a sua alma, ou aquilo que pensámos sob a sua égide . O mundo artificial do mecanismo, centrado sobre as compatibilidades e incompatibilidades entre a coisa e o corpo, está a dar decisivamente lugar a uma nova miragem: a tecnologia do animismo, da coisa que pensa, da coisa que sente, da coisa que simula as mais elevadas capacidades da vida humana. Esta tecnologia, de vocação «psicadélica» promete, através de uma inteligência artificial e de uma sensibilidade artificial, animar um mundo imaterial, para o qual poderíamos fazer transitar muitas das nossas experiências e acrescentar-lhes ainda um menu à la carte. As ficções destas novas animações inquietam e seduzem inevitavelmente o mundo animado do cinema, como por exemplo, o universo de Cronenberg em «Videodrome» ou em «Existenz». Por mais imateriais que sejam os suportes deste novo mundo de coisas animadas, elas não deixam por isso de ser coisas e de ser coisas que manifestam antes de mais o seu modo moderno de ser coisa - o da sua disponibilidade para a manipulação, que o virtual tecnológico aparentemente vem acentuar, através de um certo programa anunciado por termos como «interactividade», «conectividade», «hibridação». Uma tal disponibilização do ser confirma precisamente um certo estado moderno da coisa e a sua radical generalização. Coisas disponibilizáveis e armazenáveis são, também hoje, o conhecimento, as emoções e as impressões que encontram nas inúmeras espécies de ligação tecnológica uma espécie de dispensador universal de experiências. Por isso o design se aplica já hoje a desenhar essas experiências, às quais, como coisas, virão a corresponder registos de patentes.
Na verdade, se tudo não são senão coisas, a ontologia só pode regressar, como diz Wilèm Flusser, à distinção primordial entre coisa e não coisa (11), debate por ora aparentemente fixado na oposição entre «real» e «virtual» (tecnológico). Mas muitas outras distinções, aparentemente modestas e até banais, poderão também revelar-se como distinções de valor para um princípio de orientação neste mundo de coisas. A distinção entre coisas prestáveis e imprestáveis (paralela à do útil e do inútil), a distinção entre coisas e dejectos, a distinção entre coisas duras e moles (ou entre hardware e software), a distinção entre programas e coisas programadas e, também, entre programas e metaprogramas (ainda mais invisívieis) ou, ainda, a distinção fundamental entre jogo e não jogo, distinção que o simples gesto já não permite fazer, quando, por exemplo, se trata apenas de carregar num botão - o qual pode ser o de uma máquiina fotográfico, o on ou o off de uma televisão, o comando de um brinquedo electrónico, ou o disparador de uma arma controlada por um sistema informático.
O redescobrir de uma nova cultura, nesta nova physis do artificial, só pode pois ser modesto, embora extremamento atento e acutilante, pronto a distinguir e a discernir, de novo o que pode, ou não pode, promover nela o humano. Nenhuma reinvenção do humano será arrancada à pura imaginação criativa, à pura vontade de demiurgia, mas sim a muitos gestos, pequenos e grandes em que, a todo o momento, implicamos um destino. Tal aventura já começou e espera de cada um de nós um heroismo modesto. A cultura do «design total», enquanto nova physis, deve suscitar assim uma nova capacidade quase elementar de nos movermos e nos orientarmos por entre as coisas, de que talvez possamos esperar então, um dia, uma reinvenção do humano. Uma nova animalidade, talvez, ou, pelo menos, num certo sentido, uma nova ferocidade, que implica sabermos, atender e proteger de facto, na urgência e no desprovimento, o que é verdadeiramente essencial. De novo, como primordialmente acontecia no seio da natureza, o humano parece ser uma frágil condição, sem verdadeiras garantias. Neste sentido, a nova cosmogonia horizontal em que estamos lançados só encontra de facto paralelo nessa situação absolutamente primeva da história humana, quando não estava ainda garantida a supremacia do homem sobre os os outros seres, nem inventada a supremacia de nenhum Deus sobre os homens. É neste sentido que uma tal condição merece, sem dúvida, o nome de uma nova natureza. Das novas coisas, não tenhamos a ilusão de serem meros objectos, sobre os quais temos ainda a confortável distância da representação ou da instrumentalidade ; e dos novos designers não acreditemos de imediato que sejam novos deuses ou artifexes supremos.
..NOTAS
(1) Vilém Flusser, «About the word design», in The shape of Things. Philosophy of Design (1993), London, Reaktion Books, 1997, p. 19
(2) Cf Hemínio Martins, «Dois Princípios Filosóficos e a Técnica», Cadernos do Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens (no prelo)
(3) V. Flusser, «About the word design» in op.cit., p. 19
(4) Cf. Hermínio Martins, idem.
(5) O princípio de plenitude tecnológica corresponderia assim ao culminar nihilista da própria metafísica, perante o qualquer imperativo da vontade só poderia surgir hoje, segundo Hermínio Martins, como «nontade», e isto, não como contrário da vontade (inércia, accidie, indecisão ou abulia) mas com liberdade de não fazer tudo o que é possível fazer, como «não-fazer consciente, deliberado, reflectido»: como «nontade da vontade» (Cf. Hermínio Martins, idem)
(6) Cf Hermínio Martins, idem.
(7) Cf Hermínio Martins, idem.
(8) Cf Hermínio Martins, idem.
(9) Veja-se Mario Perniola, «Sentimentos e coisas», in Il Sex Appeal dell'Inorganico (1994): «O jogo das semelhanças e das diversidades, das afinidades e das divergências, das correspondências e das disparidades, que regeu a comparação com Deus e o homem, e entre o homem e o animal conclui-se por um empate: o homem é quase Deus e quase animal; Deus e o animal são quase homens».
(10) Mario Perniola, op.cit., p. 12.
(11) Cf. Wilèm Flusser, Dinge und Undinge (1993)
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