Um lugar onde as coisas podem não ter fim (1)
Três ideias sobre ROMA Publications
JOSÉ MANUEL BÁRTOLO
Originalmente publicado em www.artecapital.net
1. A Galeria 1 da Culturgest acolhe, numa área de aproximadamente 700 metros quadrados, a exposição ROMA Publications (2). Trata-se de um acontecimento digno de nota por, pelo menos, duas razões: pelo interesse do projecto ROMA Publications e pela pertinência das questões que subtilmente tal projecto coloca; pelo carácter excepcional que as exposições de design gráfico têm em Portugal. Concentremo-nos na primeira, as razões da segunda ficarão para um outro texto.
ROMA é um acrónimo criado a partir das duas primeiras letras dos nomes próprios de Robert Willems e Mark Manders que em 1998 criaram oficialmente um projecto editorial sui generis na medida em que o trabalho de edição funciona como espaço de ancoragem de ideias, pessoas e projectos que partilham afinidades. Se à primeira leitura, uma certa arborescência do projecto ROMA o parece indefinir, sob um olhar mais atento há um sentido que deixa revelar uma espécie de espaço imaginário, fisicamente esquivo, que funciona como lugar ad quem e ad quo da ROMA, esse espaço é o design concebido como horizonte de comunicação utópica e, neste sentido, espaço que se procura manter imune às regras do mercado da arte e do design.
O modo a partir do qual, habitualmente, procuramos compreender alguma coisa corresponde a um processo de definição. Estabelecendo identidades e diferenças, forçamo-nos por reduzir a complexidade das coisas à (pelo menos aparentemente) simplicidade de uma definição. Tal definição, se apressada, torna-se relativamente ao projecto ROMA não apenas difícil como desaconselhável. Três exemplos: 1) Difícil e desaconselhável é a anulação das especificidades do projecto de Mark Manders e Roger Willems integrando-o, sem mais, na (in)definição do design holandês. Se por um lado existe uma espécie de dutch touch que perpassa por muita da produção gráfica holandesa, por outro lado essa cultura de design corresponde mais à coexistência de diferentes linguagens e de diferentes perspectivas sobre o design e, muito menos, a efeitos de replicação do mesmo. É indiscutível que o projecto ROMA herda tesouros da cultura do design holandês - que em traços gerais podemos caracterizar reconhecendo a existência de: a) uma fortíssima tradição projectual recente à qual podemos associar os nomes de Wim Crouwell (3), Berry van Gerwen ou Michiel Uilen; b) a existência de uma “cultura pública” de design gráfico, pensemos nas identidades corporativas desenhadas pelo Dumbar Studio, na riqueza dos cartazes de espectáculos (uma série deles desenhados pelos estúdios Mevis & Van Deursen ou AAP Designers fazem já parte da história do design gráfico), na profusão de elementos de comunicação urbana (flyers, stickers, tags), nos inúmeros eventos públicos como os organizados pela Mediametic; c) a existência de apoios e instituições protectoras do design editorial como a CPNB (Foundation for the collective promotion of the Dutch book), bem como a existência de inúmeros museus e galerias com lógicas de funcionamento e processos de fidelização de públicos muito interessantes; d) a existência de uma “cultura crítica” responsável pela teorização da prática, garante do seu enriquecimento e dinamização, pensemos, por exemplo, em autores como Max Bruinsma ou Mieke Gerritzen – mas sabe pôr a herança a render, sabe, a um tempo, honrá-la e relacionar-se com ela com a criatividade e o pragmatismo do deserdado. 2) Difícil e desaconselhável é, também, procurar pensar o projecto ROMA Publications “apenas” como um projecto editorial e, tarefa ainda mais desaconselhável, como um entre muitos projectos editoriais de pequena dimensão e espírito independente existentes na Holanda. É verdade que, sem dificuldade, podemos encontrar outros projectos editoriais que, confundindo-se um pouco com a actividade dos seus dinamizadores, ganham uma dimensão quase rizomática, isso acontece com editoras de maior dimensão como a 010 Publishers (que reflecte o dinamismo e os interessses de Hans Oldewarris e Peter de Winter) ou a Em. Querido’s e acontece, de um modo mais evidente, com editoras menores e ateliers de design (e até mesmo escolas como Jan van Eyck Akademie) com forte dinâmica editorial como Veenman Publishers ou a [Z]OO Producties. No entanto os mínimos denominadores comuns que possamos identificar nos vários projectos serão sempre desviantes relativamente à efectiva compreensão daquilo que autenticamente mobiliza cada um deles. 3) Difícil se torna, finalmente, uma definição disciplinar que limite o campo de trabalho da ROMA. A exposição presente na Culturgest é, a este título, claríssima. Ali coexistem a presença de vídeos, desenhos, esculturas, fotografias, instalações, intervenções site-specific, livros e jornais. Cada obra é desafiante, porque nela se representa um jogo marcado por tensividades entre o papel do autor e do espectador; entre o estatuto da cópia e do original; entre a interdição e a permissão; entre a rigidez ideológica e a abertura utópica. ROMA é assim espaço de encenação de uma forma de comunicação que partindo de referências canónicas sobre a obra de arte, sobre o artista e as lógicas de exposição, as repensa a partir do envolvimento de referências de design (entendido, à maneira de ULM como acção socialmente eficaz), assim se constrói o território que é ROMA e as suas premissas críticas: da tensão entre autor/espectador resulta a intenção de gerar um projecto colectivo, a obra dá-se a aberturas relativamente ao receptor que assim a pode continuar seja fisicamente seja conceptualmente; da tensão entre original/cópia, promove-se a valorização do que é reproduzido, apelando ao reconhecimento de uma aura que individualiza a cópia e a torna única, o que envolve, necessariamente, a acção do receptor-autor; à tensão entre interdição e permissão, defende-se um envolvimento responsável, esquissando-se formas de responsabilidade que, por vezes, se parecem com formas de intimidade; à tensão entre rigidez ideológica e abertura utópica, propõe-se uma ética comunicativa, participada, perspectiva sob a qual a democracia e a amizade se tendem a aproximar.
2. Para a exposição da Culturgest a ROMA Publications concebeu um livro, o seu título: “Books make friends/Os livros fazem amigos”. Poderá ser considerado o catálogo da exposição na medida em que nele encontramos a apresentação dos 90 livros publicados pela editora, bem como referências aos trabalhos não-editoriais expostos e textos (de Miguel Wandschneider, de Christoph Keller e um último e excelente de Dieter Roelstraete) sobre o projecto. No entanto, este livro é subsumido pela exposição, tornando-se dela constitutivo. Coisa estranha num catálogo que, tradicionalmente, tende a explorar distanciamentos sobre a exposição de modo a permitir a sua inteligibilidade.
Desta forma “Os livros fazem amigos” constitui-se não tanto como catálogo que nos remete para a exposição, mas como um fragmento da própria exposição, um de entre noventa. Esta numeração dos livros, por sua vez, cedo se revela despistante para o espectador: por um lado porque cada livro fez parte de uma tiragem que permite a multiplicação do mesmo; por outro lado porque aos livros se chega e dos livros se parte, pela Galeria da Culturgest há folhas, fotografias, esculturas cujo sentido se constrói tecendo ligações de alguns desses objectos para determinados livros e de determinados livros para certos objectos.
A partir de um processo de possível duplicação continua do sentido dos objectos expostos, apresentados como “duplos” - como a escultura de Mark Manders “Chair/Staged Android (reduced to 88%)” que sabemos ser uma reconstrução a 88% de uma peça entretanto destruída, como na extraordinária “Paralell Encyclopedia” de Batia Sutter que se constitui como uma espécie de projecto taxinómico de exploração de semelhanças entre disemelhantes ou, ainda, como o lindíssimo “Short sad text (based on the borders of 14 countries)” onde vemos uma de duas peças de Oksana Pasaiko ao mesmo tempo que sabemos ter sido a outra peça largada numa casa de banho pública em Oslo – a partir, também, de um processo de construção de alteronímias – o exemplo simbolicamente flagrante é dado pelas quatro séries de fotografias da autoria de Marije Langelar, autor fictício que representa a união de dois autores representados na exposição – a partir destes processos o visitante da exposição é, assim, convidado a encontrar afinidades electivas entre o que está presente e o que está ausente e nesse jogo é o próprio espectador que entra (consciente ou inconscientemente) no processo de autoria.
O projecto ROMA Publications alicerça-se em posições que embora subtilmente apresentadas se tendem a revelar muito claras: a afirmação de uma autoria colectiva associada às obras de arte e de design. As obras não são terminadas no momento em que um determinado autor as liberta, elas dão-se a ser continuadas e permanentemente modificadas. O museu ao impor regras artificiais de conservação (como a vitrina que protege o sabão de “Short sad text”) apenas consegue fixar um momento da vida da obra, agarrar uma determinada cristalização, na certeza de que a existência autónoma da coisa não pode ser prevista nem controlada, o que ela é apenas pode ser aproximadamente construído pela nossa imaginação (como quando imaginamos diferenças entre o sabão exposto na Culturgest e aquele que foi deixado na casa de banho de Oslo) mas esse exercício não nos aproxima do “estado actual” do objecto mas antes nos confronta com uma imagem que, uma vez materializada, se tornará uma outra obra.
3. ROMA Publications é uma exposição sobre livros e uma exposição cheia de livros, democraticamente dispostos de várias formas, horizontalmente, verticalmente, abertos, fechados, que podemos olhar e tocar. Há livros de diferentes cores e tamanhos, há livros que nos atraem pelo apelo visual das capas e há livros sem capa como se alguém as tivesse tomado para si tornando-as parte – quem sabe? – de um outro livro, há livros que são só uma imagem e há livros que são só texto, elegantes manchas tipográficas a partir de tipos de letra familiares (Helvética, Times, Futura), há livros em devir-música e há muita coisa – ideias, memórias, desejos, mãos, dedos e olhos – em devir-livro. ROMA Publications é uma exposição sobre livros, dissemos. Nela se conta de novo a história da bela adormecida, ou melhor, da beleza que aguarda ser despertada em alguns livros. O seu príncipe, já o sabemos, é o leitor e o beijo corresponde a uma particular tarefa interpretativa a partir da qual a relação entre o leitor e o livro se consuma. Ler corresponde, na expressão de Hamann, a salvar o livro da morte: retira-se da morte o que se reconhece vivo, o que se vivifica. A exposição ROMA Publications lança, secreta mas insinuadoramente, ao visitante esse chamamento para que ele não se limite a olhar o que está exposto mas que procure ver. Que procure naqueles caminhos os seus caminhos, que encontre por entre pequenos pensamentos tristes os seus próprios pequenos pensamentos, que descubra, naqueles (como noutros) livros, lugares. Lugares onde as coisas podem não ter fim.
NOTAS
(1) O título deste artigo remete para uma frase citada por Christoph Keller numa carta dirigida a Roger Willems que se encontra reproduzida em “Os livros fazem amigos”. A frase original é: “um lugar onde as coisas não podem chegar ao fim”.
(2) A exposição foi comissariada por Miguel Wandschneider, Mark Manders e Roger Willems e corresponde, em grande medida, a uma “expansão” da exposição de Roma Publications que em Abril teve lugar no S.M.A.K de Ghent.
(3) O designer holandês Wim Crouwell esteve em Portugal em Junho, tendo proferido uma palestra na ESAD de Matosinhos integrada no excelente ciclo “Personal Views” comissariado por Andrew Howard e que já trouxe a Portugal nomes decisivos para a compreensão do design gráfico como Ken Garland, Katherine Mccoy, Steven Heller ou Hamish Muir.
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