ÁGUAS CALMAS
Escrevi o meu primeiro texto sobre design há cerca de 20 anos. Na altura, no final da década de 1980, o meu interesse crítico foi despertado pelo genérico de um programa de televisão, “Outras Músicas” apresentado por José Duarte na RTP2. Naquele genérico, o ecrã era tratado como uma superfície bidimensional na qual se sobrepunham diversos planos, entrecruzando-se narrativas, numa acumulação de layers que a música e o design gráfico (James Houff nos Estados Unidos, Brody e 8vo no Reino Unido ou por Mevis&van Deursen na Holanda, numa estética que a Emigre difundiu) da altura igualmente exploravam. Aqueles segundos de motion graphics eram produzidos pela Latina Europa, equipa de criativos igualmente responsável pela produção do Lusitânia Expresso cuja influência na geração-vídeo do final de 80 início de 90 foi determinante.
Em suporte papel surgia-nos, pouco depois, a revista Belém, cujo primeiro número aparece na Primavera de 1997, desenhada por Carlos Guerreiro para o Centro Cultural de Belém. Se exceptuarmos a Contemporânea de José Pacheco nos anos 1920, poucas terão sido as revistas feitas em Portugal tão actualizadas com as linguagens estéticas mais experimentais do seu tempo (a Belém é contemporânea das revistas Emigre, Fuse, Speak, e XLR8R), num momento em que as novas ferramentas digitais possibilitam novas abordagens gráficas e tipográficas e em que o pensamento cibercultural desafiava a exploração criativa do analógico para similar efeitos digitais de rizomâncias e hipernarrativas dentro do plano bidimensional.
No momento em que escrevo o meu primeiro texto para o PNETDesign, tento lembrar-me de algum trabalho que me desperte hoje um entusiasmo idêntico ao que senti ao ver, pela primeira vez, o genérico do Outras Músicas ou ao folhear o primeiro número da Belém. Embora tenha consciência que, por uma certa profissionalização do olhar, nestes 20 anos, tenha ganho eventualmente maior rigor de análise à custa da perda de uma inocência do ponto de vista que suscitava um prazer e entusiasmo que hoje raramente experiencio, também tenho consciência que o design português navega em águas calmas sem que nada de verdadeiramente desafiante o agite. Se as águas são calmas, são igualmente mais navegáveis, há mais espaço, outra largura e outra profundidade.
As últimas duas décadas possibilitaram um exponencial crescimento do ensino do design, há hoje mais e melhor formação. As escolas de design, e em boa medida o ensino privado (IADE, ESAD), contribuíram para uma maior formação ética e cultural e desenvolveram em diversos casos uma acção dinamizadora fundamental (de que o maior exemplo será o ciclo Personal Views na ESAD). O ensino do design enfrenta hoje desafios sérios, de adequação a Bolonha, de relação com um mercado saturado de designers, de motivação dos under-18 que, cada vez mais, chegam às faculdades com um amplo domínio das ferramentas técnicas. O debate neste campo, urgente, ainda mal começou. Aguarda-se com interesse a apresentação dos relatórios do recente Congresso Europeu do Ensino Superior de Design que a Culturgest acolheu em Novembro do ano passado.
O crescimento do ensino, está na origem de um renovado interesse pela história do design português, que vem motivando, nos últimos anos, a produção de dissertações de mestrado ou doutoramento sobre a geração dos Humoristas, sobre os anos 1920 mas também sobre Kradolfer, Sebastião Rodrigues, Victor Palla, Eduardo Anahory ou António Garcia a quem, brevemente, o MUDE vai dedicar uma exposição. Por outro lado, a explosão dos blogues no início da década permitiu que um pensamento crítico pudesse deixar de estar circunscrito ao contexto académico e chegasse a um público alargado. Primeiro surgiu o DesignerX, logo depois o The Ressabiator de Mário Moura. Pontualmente, o design conseguiu chegar ao jornais de referência através de entrevistas, recensões ou artigos de opinião (Mário Moura, Frederico Duarte, Eduardo Côrte-Real e eu próprio) e à televisão à boleia da energia mediática de Guta Moura Guedes. Estes sinais positivos, mais do que fazer esquecer, evidenciam uma cultura do design portuguesa espartilhada, com poucos espaços de exposição, sem grande dinâmica curatorial ou editorial, com um provincianismo e clientelismo que, volta e meia, revela escândalos como o do centenário da República.
Nos últimos 20 anos, assistimos a uma forte renovação em duas áreas da criação gráfica: a tipografia e a ilustração. Na tipografia a geração que sucede a Mário Feliciano e João Bicker onde se incluem Dino dos Santos, Hugo d’Alte, Ricardo Santos, Vítor Quelhas, Rui Abreu ou Bárbara Alves desenvolve um trabalho extraordinário; o mesmo sucede na ilustração onde André Letria, André Carrilho, Gémeo Luís, Cristiana Couceiro e tantos outros se destacam.
Igualmente relevante é o trabalho de estúdios que têm habilmente trabalhados para clientes culturais, são os casos de SilvaDesigners!, Francisco Providência, Rui Mendonça, Barbara Says, R2, Drop, Martino&Jana, Studio Andrew Howard, Pedro Falcão ou, mais recente, Ruben Dias e os Alva. Sobretudo nos trabalhos dos SilvaDesigners! Para o Teatro S. Luiz, da Drop de João Faria para o TNSJ ou nos últimos trabalhos dos Martino&Jaña para o Centro Cultural Vila Flor encontramos um certo regresso, muito actual, a uma linguagem analógica, com a exploração de letras não tipográficas, por vezes caligráficas, com uma influência da pintura e utilização da ilustração ou da fotografia em combinação com o lettering muito orgânica de forma a criar uma narrativa.
Alguns sinais positivos surgem-nos, igualmente, no empenho que alguns designers dedicam ao design social: o trabalho de Joana Bértholo e Glória Costa no Social Design Site; o projecto de Miguel Neiva de criação de um código identificador das cores para Daltónicos ou alguns projectos, de cariz político, de Nuno Coelho.
Se este rápido olhar sobre o design de comunicação português nos suscita uma reacção positiva, contínuo a sentir que há águas seguras onde se desenvolve bom trabalho mas cujos desafios e capacidade de desafiar parecem necessitar de estímulos. Não há hoje em Portugal uma “cena alternativa”, como ainda há pouco tempo se identificava no Porto e, antes, em Braga e Coimbra e como, há muito, já não se reconhece em Lisboa. Os alunos mais irreverentes das escolas de design (e as escolas de design são, hoje, pouco irreverentes) cedo partem para Berlim, Amesterdão ou Londres e os que ficam parecem contagiados por um ambiente entrópico.
Há 20 anos, quando escrevi o meu primeiro texto de crítica de design, o horizonte parecia reservar um campo amplo de possibilidades utópicas, hoje o futuro parece mais previsível. Reencontrar a utopia é o desafio que hoje se nos coloca.
Uma versão deste texto foi originalmente publicada no novo PNETDESIGN.
12 comments:
É sem duvida uma questão de gosto, mas a inclusão do Rui Mendonça na mesma lista que a Drop, a R2, Silva Designers, Barabara Says parece despropositada. É um designer mediano ou mesmo fraco, cujo trabalho tem um alcance reduzido, limitado ao porto, às belas artes e esad.
Luis S. Silva
Neste caso concreto não se trata de uma questão de gosto, pois não há uma análise de trabalhos; apenas cito alguns designers (reconhecendo as diferenças, até geracionais, que separam os nomes referidos)que, numa base regular, trabalham com clientes culturais. O recente trabalho de Rui Mendonça para a exposição do Soares dos Reis comprova, a meu ver, o sentido objectivo da referência.
Não conheço o trabalho para a exposição Soares dos Reis, mas poucas vezes vi trabalho dele que justificasse atenção. Tem Pouca atenção ao pormenor tipográfico. Combina mal fontes.
Luis S. Silva
A inovação não compensa. É-se pilhado por ateliers, marketeers e gigantes do mercado, mais calmos mas com mais fluxo de trabalho e com clientes com mais visibilidade. Os ensaios e a "irreverência" são hoje, para mim, apenas trabalhos de casa diários e não, pelo menos não tanto quanto há uns anos atrás, matéria de publicação intensiva nos blogues.
Conclui-se que em Portugal mostrar inovação é quase inconsequente. A investigação e dedicação à criação de novas linguagens quase só vale a pena quando se é contratado para executar um trabalho e se sabe que o cliente vai fazer uso dela.
Concordo com o Luis S. Silva. O Rui Mendonça é o único nome que não faz nenhum sentido nessa lista de nomes. Todos os outros nomes estão num nível de conceito e técnica que estão a anos de luz do trabalho do Rui Mendonça. Fui ver a apresentação nas Belas Artes do doutoramento dele e é escandaloso como foi oferecido. Fazer uma colecção de cartazes com umas notas ao lado! Francamente, qualquer tese de mestrado é melhor que aquilo.
Há designers que de vez em quando fazem um mau trabalho; outros que de vez em quando fazem um bom. O Rui Mendonça pertence ao segundo grupo.
O trabalho que o tornou mais conhecido foi o design da Universidade do Porto. Durante largos anos este trabalho foi desenvolvido em concorrência com a própria escola onde dá aulas, estrangulando ou desencorajando todos os projectos de design que a escola procurava desenvolver em parceria com a Universidade. A escola desde há anos está numa situação financeira difícil, pelo que estes projectos poderiam ter sido uma tábua de salvação, não fosse o facto de haver um “colega” com a pata sempre em cima do osso. Num texto onde se refere o clientelismo, o design da Universidade devia ser um exemplo pela negativa.
Já agora, uma lista rápida de 30 ilustradores que poderiam aparecer antes do sobrevalorizado e insípido Gemeo Luis (irmão do supracitado Rui Mendonça):
André Carrilho
André Cruz
André Lemos
João Fazenda
Cristiana Couceiro
Jorge Colombo
Vasco Colombo
António Jorge Gonçalves
Miguel Rocha
Filipe Abranches
José Feitor
João Maio Pinto
Júlio Dolbeth
Jorge Mateus
Pedro Nora
Daniel Lima
Alex Gozblau
Paulo Patrício
Esgar Acelerado
Rui Ricardo
Marco Mendes
José Cardoso
Rita Carvalho
Miguel Carneiro
Marta Madureira
Pedro Zamith
Marta Monteiro
Francisco Eduardo
Cristina Sampaio
Pedro Brito
A esta lista, acrescentar o André Ruivo.
Infelizmente, também este tipo de "crítica" sobre o design português começa a ser tipicamente morna e previsível. Escrever sobre o panorama actual restringindo-se à nomeação e à apresentação de listas possíveis parece-me sempre despropositado. O problema não está nos nomes que figuram a lista mas no facto desta existir da lista e vincular esta ideia de legitimação da prática do design.
Há mais design para lá das lista, e certamente se podem ver outras águas e outros peixes mas talvez seja tarefa para outro tipo de pescador, ou talvez também a crítica de design esteja a precisar de águas menos calmas.
A ideia do último comentário é correcta: a questão não está em retirar um nome ou acrescentar um nome de um designer português. Em muitos dos meus textos procuro reflectir sobre o design português sem envolver nomes. Personalizar torna sempre a discussão mais acesa mas, igualmente, mais superficial (e fulanizada).
Se concordo que a crítica necessita de um agitar de águas? Claro que sim! Também por isso insisto em escrever num blogue onde a troca de argumentos pode ser feita inclusivamente debaixo do anonimato.
e sobre o papel mais político ou politizado do design (apenas falou do caso do clientelismo mas não falou de outras movimentações como as associações, o cpd, e tudo o restante dentro da área mais política).
não consigo entender duas simples coisas:
- qual o verdadeiro intuito do exercicio constante de reunir fontes e nomes, se são sempre os mesmos e com a mesma finalidade?
- o gritante despropósito, na presença repetitiva de por exemplo o frederico duarte ou da joana bértolo, que à semelhança do rui mendonça, tem tido uma produção banal e comparável a qualquer aluno de mestrado que ronda a nossa terra e nunca merece "honras" de destaque.
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