A EVOLUÇÃO DE ABRIL
Em 1930, pouco antes de chegar ao poder, Salazar declarava que «Dizem que os reis não têm memória. Parece que os povos têm muito menos ainda». Terrível ironia, se houve traço definidor da estratégia desenvolvida pela ditadura salazarista, ela passou pela intencional gestão do dito e do não-dito, pela difusão da veracidade e pela ocultação da verdade, numa palavra, pela construção de uma memória através da gestão política do arquivo social. A esse silêncio chamava Marcelo Caetano, pleonasticamente, de «seriedade e honestidade», em contraste (meramente formal) com o «teatro» do congénere regime fascista italiano.
Num texto brilhante – O Fascismo Nunca Existiu - Eduardo Lourenço considera que «impensado enquanto presente», durante cerca de meio século de crua existência, o Fascismo passou a «impensável enquanto passado». Se, na perspectiva de Eduardo Lourenço aqui próxima da de José Gil (a da não-inscrição) o Fascismo nunca existiu, justifica-se perguntar se a Revolução que o vence alguma vez existiu e, a ter existido, que tipo de existência (de inscrição) assume no nosso presente.
A série de colagens realizadas por Ana Hatherly em 1977, intituladas As Ruas de Lisboa, ajudam-nos a pensar aquela questão. São trabalhos de explicita exuberância formal, mosaico de grande intensidade cromática e textural resultante da colagem de fragmentos diversos de cartazes políticos, culturais, espectáculos de circo e publicidade descolados das ruas de Lisboa no pós-25 de Abril. Se cada composição contem inúmeros fragmentos micro-narrativos, nenhuma narrativa chega a ser ali construída. Pelo contrário, o que neles se destaca é uma certa dissonância discursiva que guarda a memória possível de uma mensagem da qual só sobreviveram fragmentos. O que ficou da revolução estaria inscrito (ou não-inscrito) naqueles pedaços de papel, retirados do seu contexto, órfãos de um sentido que eventualmente chegaram a ter. Entre o fragmento do cartaz anunciando o congresso da Juventude Comunista e o cartaz de um espectáculo de circo há agora uma olhar que os equaliza, indistingue e indefine. Eles fazem parte da mesma memória difusa do que aconteceu memória sem força nem sentido para se tornar actuante e a qual resta tornar actual - na forma mais trágica de a situar no passado - comemorando-a no dia certo.
A memória é evolutiva, logo susceptível de ser manipulada. Talvez por isso, hoje não se comemore sequer uma revolução mas apenas uma certa evolução.
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