Sunday, May 23, 2010
REACTOR ENTREVISTA COLECTIVO INFRACÇÕES (LUÍSA CODER & JOSÉ RUSSELL)
Para o colectivo Infracções, desde a sua criação em 1987, fazer design tem implicado um projecto crítico e político que tem sido desenvolvido com um raro sentido de exigência e coerência. Próximo de iniciar um novo ciclo de entrevistas, o Reactor publica a última entrevista do ciclo anterior e dificilmente poderia terminar de melhor maneira.
REACTOR: Há um post no Reactor intitulado “O estado do design”. O que é que este título lhe(s) sugere actualmente?
INFRACÇÕES: Em termos “globais”, parece-nos que a palavra “design” está a ser usurpada por uma “máquina de fazer mercado”. O design enquanto conceito, enquanto “modo de fazer pensando”, fica imerso num caldo de significados, e o que parece estar a emergir é o do design enquanto produto de Merchandising. Está portanto num “estado de degradação”.
Esta indefinição de conceito serve um pretenso design decidido no “conselho de administração” dos grandes grupos económicos. O “design original”, que é responsável por toda a produção de artefactos ao longo da história, o que muito antes da famosa “mão invisível” de Adam Smith já promovia a circulação social de bens e serviços numa troca baseada na utilidade e no prazer, esse está ameaçado.
Particularizando no plano nacional, lembremos que Portugal passou directamente de um estado “em vias de industrialização” para um estado pós-industrial , causando uma compreensível desorientação na adaptação repentina a um novo paradigma económico.
Durante a primeira metade do século XX , a pequena e média industria, para o fornecimento dos seus quadros técnicos apenas pôde contar com as escolas públicas de artes e ofícios, abandonadas ao seu estatuto social “oficialmente inferior” e assistindo ao desaparecimento das manufacturas tradicionais. Só praticamente no fim dos chamados “anos de ouro” da economia mundial (50/73) é que o design começou a ser ensinado como disciplina autónoma e apenas numa escola privada em Lisboa. O ensino Público em design, instituído como curso superior, teve de esperar pelo 25 de Abril. No entanto, que fique bem claro que até então, o “mau estado do design” não se devia à qualidade das referidas escolas de artes e ofícios, nem tão pouco às profissionalizantes (comerciais/industriais, politécnicas). O problema estava a montante, os profissionais saídos dessas escolas tinham uma “cultura global” muito superior à cultura média dos empresários nacionais que constituíam naturalmente os seus potenciais empregadores. Hoje, 30 anos depois, declarações provindas do próprio CPD dizem-nos: «…uma parte muito significativa dos empresários deste país (cerca de 80%) têm menos do 9.º ano de escolaridade obrigatória …» [1], não pode ser bom o “estado do design”.
Mas importa reflectir no 3º quarto do século XX:
Como sabemos só em 1974 é que o Estado português percebeu que não podia impedir por mais tempo a livre associação de indivíduos, e assim, finalmente pôde ser constituída a primeira associação portuguesa de design em 76. No entanto, o Estado levou mais dez anos a ouvir a célebre frase «Portugal precisa de design» e só se resolve a criar o Centro Português de Design em 85, para começar a devida actividade em 89 (mudando a tutela: da industria para a economia !!!). Tínhamos na altura Ronald Reagan nos Estados Unidos, Margaret Thatcher no Reino Unido e Cavaco Silva em Portugal, ou seja a ideologia neoliberal florescia. A conjuntura era propícia para que o governo de então criasse o CPD. As estruturas de poder de uma boa parte dos Estados do “primeiro mundo” apostaram em transformar os “Estado-Providência” (ou Well Fair State) em “Estado-Gestor”, sob o lema de uma New Public Management destinada a “emagrecer o Estado” com a instilação da competição e dos instrumentos da gestão empresarial nos serviços públicos, “racionalização” das despesas e revalorização do poder político central em detrimento de uma função pública reduzida ao papel de simples executante … o seu corpo doutrinal parte da concepção do desactualizado “homo economicus” (actor racional, separado do seu todo, que produz, consome e o seu único interesse é maximizar o seu lucro).
Portugal, que não tinha sequer consolidado o seu recente “semi-Eestado-providência”, recebeu esta onda de braços abertos e, aportuguesando o discurso pôs as superstruturas a trabalhar: As empresas que não fossem competitivas teriam fechar (viriam outras). Um país moderno não deveria ter agricultura (só intensiva) e deveria ser economicamente sustentado pelo sector terciário. Deveria ser fornecido de infra-estruturas rodoviárias de preferência auto-estradas para o transporte de mercadorias (sabe-se lá quais), e o mercado de capitais encarregar-se-ia do resto. Embora estivéssemos no reinado da “gestão de topo” e não do design, este servia a “estratégia” em curso, o dinheiro fresco da CEE criaria as infra-estruturas e o CPD criaria as “admiráveis novas empresas”. Hoje, com a terceira via continuando a tarefa de “queimar gorduras do Estado” vendendo empresas públicas a retalho, “captar investimento estrangeiro”, “maximizar os lucros dos accionistas”, “gestão por objectivos”, “critérios de avaliação” (contabilísticos), mais défice menos dívida externa, mais estádio menos futebol, constatamos, que a “estratégia” não resultou, e enquanto não tivermos uma economia saudável não poderemos ter um design “em bom estado”.
Mas terminada a avaliação do “estado geral” das coisas, importa apurar os pontos positivos e sobretudo (tentar) apontar caminhos: Em primeiro lugar temos, finalmente, faculdades de design completamente integradas numa cultura académica e enraizadas no sistema Universitário. Uma Instituição de conhecimento, que soube ao longo da história libertar-se de outros poderes, ganhar autonomia perante outras instituições sociais, mas sobretudo ganhar legitimidade fundada no reconhecimento público da utilidade das suas práticas.
Como “nova” disciplina no sistema Universitário, o design deve, com a vocação holística que lhe é peculiar, não só contribuir colegialmente na elaboração dos seus estatutos, mas também exigir o seu cumprimento através de uma constante actividade crítica atenta às pressões externas (formais e informais). Muito concretamente, a pressão subtil que está na “ordem do dia”, é a “armadilha da autonomia financeira” (liberalização da Universidade), que leva à privatização do conhecimento, à perca de autonomia intelectual, além do mais, um modelo universitário contextualizado no mercado, faz perigar um dos seus objectivos primeiros – um serviço de interesse público, cidadania activa e construção de alternativas solidárias e de longo prazo.
«Não se exclui a utilidade para a própria universidade de uma interacção com o meio empresarial em termos de novos temas de pesquisa de aplicação tecnológica e de análises de impacto. O que é importante, é que a universidade esteja em condições de explorar este potencial sem que para isso possa ser exposta a uma posição de dependência ao nível da sobrevivência em relação aos contratos comerciais.». (SANTOS, Boaventura Sousa, [2004] – A Universidade do Século XXI: Para uma Reforma Democrática e Emancipatória da Universidade.)
Consideramos também que o designer, como actor social, tem sabido tirar partido do maior legado civilizacional do século XX, que é o conjunto da massificação do computador pessoal com a generalização da Internet. O acesso rápido a informação e respectiva triagem, a facilidade de edição, são instrumentos valiosos para um designer, mas também para qualquer cidadão que tenha acesso não só às “novas tecnologias”, mas também a um nível de educação que o torne capaz de usufruir plenamente desse instrumento potenciador de autonomia.
De facto, a democracia representativa que hoje vivemos, onde alguns poucos tomam decisões por muitos, e que é legitimada por uma opinião pública formada pelos média tradicionais (imprensa, rádio, televisão), começou a ser posta em causa. Alguns teóricos falam mesmo numa crise da democracia representativa, como reflexo da “entrada em cena” dos novos média (onde a Internet é determinante) que vieram potenciar a proliferação de focos de democracia participativa. Apesar da relativa quebra dos Novos Movimentos Sociais após o 11 de Setembro, nota-se hoje uma recuperação. Ela é visível nos inúmeros grupos de cidadãos unidos pelos mesmos interesses e aspirações. Comunicados, alertas, denúncias públicas, blogs temáticos ou de opinião livre e até de jornalismo “popular”que embora artesanal pode ser completamente independente. Sabemos que este clima um tanto ou quanto anárquico, incomoda o poder instituído, essa anarquia dificulta-lhe a possibilidade de controle, mas não é tanto a anarquia que ele teme, é a possibilidade de uma mudança em que todos os cidadãos sejam motivados a participar nas decisões comuns, ele teme uma democracia directa. Mas é exactamente uma nova era política de que o Mundo precisa, os cidadãos acreditam cada vez menos nos políticos que os representam, é preciso «moldar a sociedade de baixo para cima» (Ulrich Beck).
No contexto restrito do design português, notamos que é precisamente na vaga crescente dos novos média, que aparecem os primeiros blogs exclusivamente dedicados à disciplina, alinhando com um movimento global de revindicação de uma ética própria, elevando a sua responsabilidade social acima da sua função de servir o mercado. Não é por acaso que aparece uma segunda associação de âmbito nacional em 2003 (AND), e que se funda na constatação « após cerca de três décadas (…) com cerca de dez mil indivíduos formados (…) os designers possuem uma mão cheia de nada». Não é por acaso que só em 2005 é que a primeira associação (APD) se envolve, a sério, na reivindicação de uma classificação fiscal sob um código próprio.
Note-se também a divulgação de denúncias públicas quanto a práticas, no mínimo “pouco transparentes” como as que vieram recentemente a lume acerca do concurso para um site comemorativo do centenário da república…
Finalmente consideramos que o designer, para além do cumprimento das suas funções bem definidas nos estatutos das suas associações de classe, deve constituir-se como agente crítico autónomo em qualquer campo que se veja inserido. Deve, aumentar o seu capital simbólico através de uma prática diária de respeitabilidade, lembrar-se de que o respeito, só existe quando é mútuo, e não se proclama, pratica-se.
REACTOR: A palavra design identifica cada vez menos um campo disciplinar definido, passando a remeter para uma campo de criação híbrido e difuso. Corresponderá isto a um fracasso ou a triunfo do design sobre a cultura contemporânea?
INFRACÇÕES: Nós diríamos que o seu campo disciplinar parece nunca ter estado muito bem definido. O problema da falta de definição, acreditamos nós, tem que ver com o pequeno capital histórico relativo à sua autonomização profissional, ou melhor com a sua história social. A sua proto-história está mal assumida, e perde-se vagamente no declínio dos Arts & Crafts juntamente com o completo “esmagamento” das teorias de John Ruskin e William Morris (onde o profissional ainda podia dispor da sua autonomia: na sua oficina, atelier, tipografia), em favor da onda do maquinismo apoiada pelo liberalismo triunfante, e onde o Teylorismo “decreta” que a gestão do processo produtivo devia estar claramente separada da função do trabalhador. O gestor pensa e planeia, o trabalhador faz. O gestor descobre e especifica a melhor maneira de fazer, o trabalhador executa, e só. O eis designer, perde o seu laboratório e é remetido à condição de trabalhador por conta de outrem, a executor passivo no processo. Tinha de se submeter ao sistema. E foi esta a condição do designer praticamente até ao fim da “era industrial”, com algumas particularidades (dignas de estudo…). Para aumentar a confusão, surgem as técnicas da propaganda, do marketing e publicidade, como aplicação (geralmente matreira) dos estudos behavioristas. Surgem novas profissões (e negócios), que precisam da componente estética, a expansão urbana obriga a uma comunicação universalista, a televisão leva a “paisagem de interiores” para o domínio público, finalmente, no “mundo virtual” nota-se uma clara confusão entre o que é o engenho da programação, e até a perícia de execução de programas, com a sua componente de comunicação, que não vive sem a estética.
No entanto, o nível de confusão parece estar mais no reconhecimento público do que, propriamente no actor. E a realidade actual poderia ser outra se a Instituição Bauhaus não tivesse sido interrompida. Teria certamente servido de “farol” a um modelo de ensino que unificava a arquitectura com as várias outras artes, sem distinção entre maiores e menores, juntava a técnica com a experimentação prática de ideias, juntava a prática com a teoria, investigava, reflectia, produzia conhecimento e várias especialidades de agentes sociais úteis para a realidade do seu tempo. Um designer saído dessa escola, seria reconhecido. Podemos dizer que o design também foi vítima do nazismo.
Carácter “híbrido e difuso”, faz-nos lembrar alguns textos apologéticos nos primeiros cadernos de design [2] em que, para nos sentirmos bons designers, além dos predicados habituais teríamos de ser bons gestores (capacidade de liderança e visão de futuro), bons economistas não esquecendo a vertente financeira, ter visão ampla do marketing e publicidade, nunca esquecer os estudos de mercado (nunca percebemos se teríamos fazer esse trabalho ou convencer o cliente a desembolsar esse custo extra), «charneira de todas as técnicas e engenharias», bons comunicadores… É caso para dizer, com tantos predicados para quê falar em multidisciplinaridade? Lancemos a nossa própria empresa, e já agora, com a nossa capacidade de persuasão arranjemos o capital, não esquecendo de incluir no projecto/pedido de financiamento, as consultadorias da NASA, FMI e OMC, quanto à mão de obra, bio-robots. Tudo fácil… Continuamos a afirmar, o carácter difuso está no reconhecimento do termo e não na actividade enquanto tal. O designer sabe delimitar o campo de ideias onde se sente apto a tomar o compromisso da respectiva materialização. Desde o momento em que a palavra design entra na moda, esta torna-se atractiva para quem queira aproveitar-se do seu poder simbólico. Já aconteceu muito antes, quando qualquer produto de “banha da cobra” se auto denominava científico. Quanto ao hibridismo, trata-se de uma tendência normal em muitas disciplinas onde se constata uma inter relação forte (no sentido de precisarem uma da outra), essa tendência vem desde os anos 60 depois de um biólogo alemão ter publicado a “Teoria Geral de Sistemas” teoria essa que foi “absorvida” por muitas outras disciplinas nomeadamente nas ciências sociais. Em traços gerais ela diz-nos que, num sistema global (constituído por subsistemas interligados em teia), as respectivas propriedades não podem ser descritas significativamente a partir dos seus elementos separados, para a compreensão dos sistemas é necessário estudá-los globalmente, envolvendo todas as interdependências das suas partes. Lá se vai o método cartesiano.
«qualquer estimulo em qualquer unidade do sistema afectará todas as demais unidades, devido ao relacionamento existente entre elas.» (Miller, James G. , (1965), Living Systems: Basic Concepts, Behavioral Science)
Neste contexto, temos também que interpretar certos termos construídos e encará-los como códigos linguísticos “grupotemporais”. Não podemos validar igualmente, por exemplo ciências realmente híbridas como a biorrobótica ou biologia sintética, e a engenharia financeira. Esta última, tem um sentido claramente metafórico [3], e provoca “estados de alma” diferentes nos diferentes campos sociais. Se enche de orgulho certos economistas, políticos, advogados, etc., ao cidadão atento e lúcido só recorda os tristemente célebres “activos tóxicos”, depois, juntam-se “nos cafés” e elaboram anedotas (diz-se um engenheiro financeiro ou um financeiro engenheiro?) para indignação dos primeiros que “cozinharam a cama onde se deitam”. Enquanto não houver anedotas (populares) sobre os designers, podemos estar descansados.
Concluindo a resposta, embora não gostemos de pôr as coisa em termos de “vitórias e derrotas”, consideramos que o design está numa “onda de triunfo” sobre a cultura contemporânea, na medida em que se vê constituírem-se grupos de designer conscientes dos “novos” velhos problemas da sustentabilidade de um planeta habitável. Eles vêm juntar-se a uma pequena vanguarda que sabe, à muito tempo, que o paradigma civilizacional está num impasse. Esperemos que esta onda não seja uma onda da moda.
REACTOR: Há um conceito estruturante do pensamento projectual do Walter Gropius que é o conceito de “design total”, a ideia é, em síntese, a de que ao designer compete a definição intencional das modalidades de relação social, o design seria, assim, uma disciplina de definição politica. Não lhe(s) parece que este “exercício político” do projecto é tão mais eficaz quanto mais imperceptível for e, neste sentido, o carácter difuso do design não poderá ser um sinal da sua eficácia?
INFRACÇÕES: A difusão do design enquanto disciplina lúcida, envolvida nos problemas sociais e ambientais, empenhada em resolver os inúmeros problemas que se põem no mundo actual, tem toda a vantagem em difundir-se, em ser difusa. Ser vantajoso para o design e para o mundo traduziria a sua eficácia.
Mas a resposta só se completa se “discutirmos” as duas questões que lhe estão subjacentes:
A primeira: deve ou não haver intencionalidade política no exercício do design.
Em caso afirmativo põe-se a segunda: este exercício político deverá ser aberto ou de qualquer forma dissimulado, subtil? Poderíamos responder sim ou não à primeira, e nunca dissimulado à segunda. Contudo ficaria muito do nosso pensamento sujeito a interpretações múltiplas.
Teremos que esclarecer alguns pontos da nossa mundivisão:
Em primeiro lugar descodifiquemos o que se entende por político. Sabemos que a palavra tem tido ao longo da história uma progressão semântica que a conota cada vez mais com sentido pejorativo, pelo menos no sentimento popular e mesmo no chamado Mainstream. Note-se que é nesta massa de cidadãos que se busca a legitimidade moral e ética. Dito isto, se entendêssemos a palavra no sentido arcaico, aristotélico, onde se busca a felicidade humana (individual e colectiva), por meio do conhecimento e da mediação de conflitos com base num pacto social estruturado pela ética, então responderíamos que sim, que o design (enquanto disciplina [4]) deveria assumir uma acção política. Mas não é esse o nosso entendimento e consideramo-lo mesmo bastante ingénuo. Parece não restarem dúvidas, de que na actualidade se lhe dá um significado maquiavélico, «arte de conquistar, manter e exercer o poder», não se trata de censo comum, no campo académico é consensual a concepção weberiana «pretensão do monopólio da legítima coerção física, com vista ao cumprimento das leis». Portanto, neste sentido consideramos que o design (enquanto instituição académica) deve até manter uma autonomia em relação às outras organizações sociais, sejam elas políticas, confessionais, patronais, laborais (associações de designers incluído), etc.. Quanto à relação com o Estado (ainda no sentido weberiano), no caso português, com o nosso Estado Nação, o design na pessoa da sua academia, deve, ou deveria reivindicar mais autonomia financeira (dinheiro público sim), com vista a garantir um bom desempenho social, mantendo total independência administrativa, estatutária, pedagógica, intelectual e política claro. Portanto a resposta é não, o design deve pôr-se acima da política.
Apesar desta negativa impõe-se esclarecimento à segunda questão, relembremos: «Não lhe parece que este “exercício político” do projecto é tão mais eficaz quanto mais imperceptível for?»
Ao negarmos o exercício político não lhe impedimos o exercício social, muito pelo contrário, libertamo-lo da luta pelo poder. Colocamo-lo num nível paritário com outros poderes. Ele deve buscar a sua legitimação exactamente no exercício social público e eficaz. Além disso ele deve promover o discurso ideológico, não político, um discurso aberto, que não dissimula intenções. Para isso deve incentivar a reflectir sobre a linguagem para compreendê-la, a identificar o discurso do outro, do livro, dos mass média. Incentivar à tomada de posição, à critica, ao argumento, à construção de um discurso próprio, à não reprodução dos discursos alheios. Essa deve ser a sua pedagogia, melhor do que ensinar é ajudar a pensar, explorar a capacidade do indivíduo em reflectir sobre o impacto social do produto da sua actividade futura (ou presente), sobre a sua responsabilidade no processo, e também, sobre o seu poder no processo.
A escola como espaço aberto ao confronto de ideias será o filtro difusor dos vários focos que necessariamente criará.
REACTOR: Se lhe pedisse uma definição de design…
INFRACÇÕES: Qualquer definição é difícil e para o design acrescenta-se a responsabilidade.
Sabemos que não há uma confluência de perspectivas no respectivo campo.
Já é clássica a discussão entre professores em que se discorre se o aluno deve ser formado “para a realidade do mercado” ou sob um plano ideal e ético.
Alguns antagonismos revelam-se nas múltiplas definições que conhecemos.
Muitas delas denotam uma maior preocupação com a auto regulação (programática) do que em esclarecer o público (o universo de agentes sociais).
Na redundante explicação do mesmo conceito (prática de projecto), na recorrência de frases padrão (solução de um problema), alem de não conseguirem uma “marca distintiva”, denunciam a intenção de demarcar estatuto. Esta demarcação seria positiva se não denunciasse também uma (implícita) dependência em relação à indústria, ou ao chamado “Mercado”. Uma das escolhas paradigmáticas é a «interdisciplinaridade», que como o nome indica liga as várias disciplinas, mas não é pertença de nenhuma. Sabemos que, qualquer processo complexo tem que ser partilhado pelos vários saberes, quando se diz que o design tem uma vocação interdisciplinar, (implicitamente) o designer parece reivindicar, «eu quero estar presente e ser co-responsável no processo complexo», tem todo o direito, mas deve fazê-lo abertamente e deve começar por denunciar todo o processo de proletarização de que foi vítima por parte dos poderes oficiais, e perdurou pelo menos até meados do século XX.
Para introdução da nossa primeira proposta de definição, escolhemos um clássico que mantém a força de quem soube perceber o seu tempo, enfrentar os paradigmas estabelecidos e acreditar no que fazia. «O designer é uma nova espécie de artista, um criador capaz de entender todas as formas de necessidades: não por ser um prodígio, mas porque sabe como abordar as necessidades dos homens de acordo com um método bem definido.» (Gropius)
Actividade (humana [5]), intelectual, metodológica, projectual, (breve descrição do que é o projecto), que consiste em todo o processo técnico e de criação estética necessário à produção de um artefacto (algo criado, modificado ou usado pelo homem – objecto, utensílio, componente, sinal, código, mensagem[6]), terminando com o acompanhamento da sua materialização e verificação empírica do seu objectivo.
O designer é o técnico formado (desejavelmente vocacionado) para a actividade.
Pela grande variedade de objectos, existem diversas especializações, como (….), as especializações têm vindo a acompanhar a evolução do mercado e das tecnologias, pelo que têm tendência a multiplicar-se. A competência destes técnicos, no desvendar e tentar resolver as múltiplas necessidades humanas, fez deles profissionais de muita utilidade para as indústrias de bens e serviços, sequentemente estas constituíram a sua maior fonte de oferta de emprego.
Para introdução da segunda proposta, escolhemos a definição de Bruno Munari, pela sua dimensão poética: «Cada ser humano é um designer. Alguns também ganham a vida através do design – em todos os campos que existem pausa e ponderação entre o conceber e uma acção, a forma a dar aos meios que nos permitem realizá-la, é uma estimativa dos seus feitos.» (Munari)
«filosofia aplicada» (Infracções)
REACTOR: O design sempre se caracterizou pela inexistência de um consenso programático, hoje talvez mais evidente devido à falência dos verdadeiros projectos colectivos, a teoria do design sempre oscilou entre uma interpretação do designer enquanto um “agente social” e uma interpretação do designer enquanto um “agente do mercado”, parece-lhe haver sentido nesta distinção?
INFRACÇÕES: Será que os projectos colectivos faliram, ou foram “privatizados” ? [7] Lembramo-nos da última grande depressão na Argentina, por volta de 2003, muitas das fábricas falidas foram adquiridas e autogeridas pelos seus trabalhadores com imenso sucesso. O sucesso durou enquanto a “saudável concorrência” não arranjou maneira de lhes cortar o fornecimento de matéria prima. E a economia social, remetida para um lugar periférico durante o século XX ? Ela está a recuperar nestes tempos de crise.
Quanto aos designers destas gerações recentes, as notícias que nos chegam é que são conscientes dos problemas sociais e empenhados na sua resolução, as inúmeras declarações e manifestos são prova disso. É verdade que a Internet veio potenciar o aparecimento de um bom número de pequenos projectos colectivos, mas eles não se formariam se não houvesse uma apetência individual. Estamos esperançados que surja uma onda de profissionais que se recusem a ser meros “agentes do mercado”, que sejam críticos e que nos digam o que é realmente o mercado, que não venham com a velha cartilha dos “mercados muito sensíveis”. Se a faculdade souber ultrapassar as divergências e elaborar um só programa estatutário, a acção dos profissionais fará o resto, e o design, poderá vir a obter o estatuto social (e poder simbólico) a que tem direito, e assim, exercer uma pressão política equivalente à de outras disciplinas que há muito lidam de muito perto com o poder de facto. Depois, é bom que não estrague tudo.
Muito concretamente quanto ao sentido que há na distinção de papéis, mais uma vez temos que apelar para a clarificação de palavras/conceito. Se o mercado for uma natural acção social de troca de bens e serviços, com função de uma regular distribuição de recursos e suprimento de faltas, remunerando justamente o esforço [8] dos agentes envolvidos e contribuindo para uma constante melhoria da sociedade, então, não há sentido nessa distinção porque um agente do mercado será também um agente social.
Mas nós sabemos que o conceito de “mercado” que hoje, no «advento duma modernidade liberal alargada» [9] se fala, não é nada disso, portanto temos que fazer essa distinção. Mas que não fiquem dúvidas, a escolha de enveredar por um ou outro caminho, é uma opção puramente individual. Se o colectivo Academia escolher ser agente do “mercado”, ela perderá pelo menos, a liberdade intelectual.
REACTOR: Perante o relativismo dos valores (e, em particular, dos valores do design após a crise do projecto moderno) não será importante os designers mostrarem que existe uma diferença profunda entre a “ética individual” e a “ética disciplinar”? Quero dizer, os valores que orientam o design não podem ser relativos aos valores que guiam o comportamento dos seus profissionais…
INFRACÇÕES: Sem dúvida que não podem. As estruturas que “guardam” o teor ideológico do design devem agir colectivamente, e usar a função crítica para com qualquer carisma individual que se possa impor no campo. Quando a crítica for essencialmente positiva não haverá nada a temer, pode até daí advir um melhoramento no ideal.
REACTOR: Historicamente, o design foi sendo pensado como uma disciplina de “dimensão utópica”. Ainda há espaço para utopias no mundo contemporâneo?
INFRACÇÕES: Sim há espaço. O mundo contemporâneo precisa de muitas utopias com múltiplos suportes ideológicos. Será bom que elas se estruturem socialmente sem crescerem demasiado, como diria Leopold Kohr, «Se uma sociedade cresce acima do seu tamanho óptimo, os problemas vão eventualmente acabar por ultrapassar o crescimento das faculdades humanas que são necessárias para lidar com eles». É urgente procurar a verdadeira democracia, não vemos outro caminho se não pela divisão do poder em múltiplas utopias autónomas.
As utopias literárias têm um espaço importante, mas não só com elas se faz a história. O caminhar positivo da história fez-se com “utopistas”, gente capaz de perceber que pode existir um mundo mais justo e lógico do que o que se lhe apresenta, gente capaz de projectar de forma crítica e imaginativa uma ordem social e moral alternativa e exequível, e gente empenhada numa acção reformadora do corpo social, que «não deixa de se ater à materialidade, isto é, às condições putativas de concretização social de uma nova situação humana». (Silva, Jorge Miguel Bastos da, (2004), Utopias de Cordel e textos afins, Antologia.)
Por hipótese absurda, se fossemos todos como a senhora Thatcher e gritássemos em uníssono “there is no alternative”, então não haveria espaço para utopias, e só faltava vir o outro oportunista decretar o fim da história [10]. Não parece haver dúvidas, por mais que as superstruturas e os meios de comunicação corporativizados repitam esse refrão (“TINA”), haverá sempre gente que sabe que há alternativa. Será uma minoria, pode não saber como, pode até não exteriorizar essa convicção, mas estará pronta a aderir a qualquer movimento social que lhe aponte o caminho.
Depois do Maio de 68, apesar dos postulados de morte das ideologias, têm surgido movimentos “filhos” das utopias modernas. Insurgiram-se contra o "culto da grandeza", o industrialismo desenfreado, o consumo excessivo, o crescimento sem sentido, o centralismo, a dominação pelas grandes empresas, contra uma civilização construída sobre recursos não renováveis. Vários agentes utópicos denunciaram « A ideologia da sociedade industrial»(Marcuse, 1964), apresentaram alternativas a um falso “progresso”, contrário à autonomia e à qualidade de vida, alternativas alinhadas pela Tese de Gaia: a “tecnologia intermédia”e “economia ecológica” de Ernst Schumacher, autor de “Small Is Beautiful” (1973) que descreve uma economia não-violenta , criadora de auto-suficiência local, e estabilizadora de fluxos migratórios. Em “ Only One Earth” René Dubos e Barbara Ward (1972) e outros. criaram o clima de opinião de que acabar com a pobreza é factor determinante para salvar o equilíbrio Natural do “sistema Terra”.
Foi a comunidade científica, preocupada com o relatório fornecido ao Clube de Roma pelos Meadows, que se reuniu em Estocolmo/72, com o propósito de tentar organizar as relações de Homem e Meio Ambiente. Só depois a ONU se vê obrigada a criar uma comissão Mundial para o “desenvolvimento sustentado”. A partir desta data têm-se repetido com periodicidade os fóruns eco/sociais Mundiais, sempre com uma componente oficial e outra informal composta pelos “malfadados” ecologistas e outros radicais “alter-globalização”. Nas nossas palavras são esses “malfadados” os agentes utópicos, e os outros vão entremeando reuniões de altos representantes com jantares faustosos, promessas vãs e grande aparato noticiário.
Nunca é de mais repetir que a utopia não é um estado irrealizável, como tem vindo a ser produzido, pela indústria cultural, reproduzido por uma cultura de massa, e legitimado por vários dicionários. «Muito pelo contrário, a acepção que nos dá o dicionário básico da língua inglesa, das Imprensas Universitárias de Oxford, está muito mais próximo da realidade filosófica – a utopia como algo difícil, mas realizável – em linha com a ideia apresentada pelo próprio Tomás Moro». (Tamames, Ramón, (1997), A Reconquista do Paraíso, Para Além da Utopia.)
Não podemos deixar de referir a importância das descobertas científicas na modernidade (conceito alargado). Também a ciência é, no seu estado puro, utópica, enquanto não instrumentalizada, foi responsável por evidentes melhorias na qualidade de vida humana, e é responsável pelo aumento do número de anos em esperança de vida no primeiro mundo. Se a esperança de vida não é igualmente melhorada no resto do mundo, não é seguramente por culpa da ciência. Não há razão para que o design não assuma uma “dimensão utópica”, isso depende da sua estrutura académica, basta que ela trabalhe no sentido de criar artefactos para o Homem, para as suas necessidades reais, para o seu conforto, para o seu prazer, para a sua felicidade. O primeiro passo nesse sentido seria o decreto da morte do Deus Mercado.
Na mesma linha de pensamento, lembramos a importância utópica da sociologia, consolidada como ciência apenas no século XX. Não só pelo legado reflexivo, para o qual também contribuíram alguns designers, lembremos Papanek, mas também pela sua vertente de “descodificação do mundo”, na desconstrução da falácia, no questionamento do senso comum, na denuncia da demagogia e sobre tudo na «luta contra as formas de poder, que são ao mesmo tempo objecto e instrumento, do saber, da “verdade”, da “consciência”, do discurso» (Foucault, Michel, Microfísica do Poder). Contudo, na sua componente prospectiva e de informação estatística, tem sido muito útil ao poder hegemónico e, algumas correntes e sociólogos também foram instrumentalizados.
Apesar de tudo, podemos dizer que no século XX, algumas pretensões utópicas foram em parte satisfeitas num contexto de “mundo ocidental”, referimo-nos a um relativo “Well Fair State” ou “Eestado-Providência” que ganhou solidez no norte europeu. A base de política económica deste Estado é o keynesianismo, portanto, intervenção do estado na economia, restringindo os abusos do mercado, promovendo a concertação laboral, regulando a acção redistributiva com vista a assegurar, uma segurança social, uma igualdade de oportunidades, e um mínimo de subsistência a todo o cidadão nacional. Com mais ou menos concorrência com a economia privada, mais ou menos direitos assumidos e garantidos, aproximaram-se do que era reivindicado pelo socialismo “clássico” do século XIX (incluindo socialismo utópico). O estereótipo do ultra liberal norte-americano denuncia peremptoriamente estes Estados como comunistas. Curiosamente, o maior “porta bandeira” desta política económica foi Franklin Roosevelt, que salvou a América da depressão causada pelos desmandos capitalistas e consequente estoiro da bolsa em 1929. O "New Deal" criou milhões de postos de trabalho (período áureo para o design americano), estruturou a segurança social e um programa de reformas que se consolidaram num conceito de “Estado Justo”. Sabe-se também que em 1935, quando o problema começava a estar resolvido, os sectores empresarial e banca, subiram o tom de oposição ao “New Deal” e que Roosevelt não cedeu durante os seus três mandatos.
Resumidamente, é isto que as cartilhas de história oficial nos relatam. Howard Zinn, autor da “História do Povo dos E. U. de 1492 - presente”, diz-nos mais qualquer coisa, a respeito deste assunto. Vamos transcrever parte de declaração sua, por altura da crise do subprime (3/2/2008):
«…As políticas sem precedentes do New Deal – Segurança Social, seguro de desemprego, criação de emprego, salário mínimo, habitação subsidiada – não foram simplesmente o resultado do progressismo de FDR. A administração Roosevelt, na tomada de posse, enfrentou uma nação em turbulência. No último ano da administração Hoover havia-se experimentado a rebelião do Bonus Army – milhares de veteranos da Primeira Guerra Mundial a descerem sobre Washington para exigir ajuda do Congresso pois as suas famílias passavam fome. Havia perturbações dos desempregados em Detroit, Chicago, Boston, New York, Seattle.
Em 1934, princípio da presidência Roosevelt, desencadearam-se greves por todo o país, incluindo uma greve geral em Minneapolis, uma greve geral em San Francisco, centenas de milhares em greve nas fábricas têxteis do Sul. Conselhos de desempregados formaram-se por todo o país. Pessoas desesperadas estavam a entrar em acção por si próprias, desafiando a polícia a repor a mobília de moradores despejados, e criando organizações de auto-ajuda com centenas de milhares de membros. Sem uma crise nacional – privação económica e rebelião – não é provável que a administração Roosevelt tivesse instituído reformas arrojadas como fez […] O Partido Democrático só rompeu o seu conservadorismo histórico, as suas concessões aos ricos, a sua predilecção pela guerra, quando encontrou rebelião dos de baixo, como nos anos 30 e 60. Não deveríamos esperar que uma vitória na cabina eleitoral em Novembro comece a demover o país dos seus dois males fundamentais: a cobiça capitalista e o militarismo […] Historicamente, o governo, esteja nas mãos de Republicanos ou de Democratas, conservadores ou liberais, fracassou nas suas responsabilidades, até ser forçado pela acção directa: greves brancas (sit-ins) e viagens em autocarro pelo sul do país (Freedom Rides) pelos direitos do povo negro, greves e boicotes pelos direitos dos trabalhadores, motins e deserções de soldados a fim de parar a guerra. Votar é fácil e marginalmente útil, mas é um fraco substituto da democracia, a qual exige a acção directa dos cidadãos interessados.»
Onde queremos chegar com este discurso? À afirmação de que sempre houve tensões utópicas e que se romperam periodicamente, tanto por acção organizada como por acção social espontânea quando o “peso é demasiado” [11] . Por exemplo, a tensão Norte/Sul de que se fala agora, é uma tensão que sempre existiu entre uma minoria beneficiária da maior parte dos recursos disponíveis e mandatária do monopólio da violência, física e simbólica, e uma maioria composta por aqueles que se esforçam no dia a dia para viver condignamente e aqueles que se esforçam diariamente para conseguir um mínimo vital. Uns dirão que esta ideia faz parte das “defuntas metanarrativas”, mas todos sabemos que ela é mais do que uma ideia, é um dado de facto. E nós “primeiro mundo”, 20% da população do Planeta, que usufruímos e gastamos 80% dos seus recursos, que poluímos 5 vezes mais que os restantes habitantes, aparentemente estamos muito contentes com as nossas “democracias” representativas caminhando dia a dia para um liberalismo global. É verdade que o liberalismo já se constituiu como utopia em tempos absolutistas… baseado na liberdade individual ele tem progredido no sentido de subjugar o indivíduo à liberdade de uma outra “pessoa colectiva” a “sociedade anónima de responsabilidade limitada”. São praticamente estas “pessoas” que governam o Mundo actual, a sua responsabilidade limita-se ao cumprimento dos compromissos financeiros (em princípio), a responsabilidade social fica dividida entre o indivíduo e o Estado cobrador de impostos. Torna-se difícil exigir responsabilidades a uma entidade anónima, e muito mais com regras criadas por ela. Foi esta “entidade anónima” que foi adaptando o Estado às “exigências dos mercados”, perdendo a mão quando a ambição é maior que o controle, mas logo recorrendo ao “Leviatã” quando a mão de obra “é cara” e o Estado social “é pesado”. Para ela a margem de lucro não pode baixar porque “os mercados ficam nervosos”. O novo liberalismo tornou-se uma distopia, valorando a propriedade acima da vida tende a privatizar tudo, o seu «sonho é de eliminar a concorrência desleal do “vivo”. A natureza, a vida, produzem e reproduzem gratuitamente, as plantas, os homens, a alimentação, o ar, a água, a luz. Para estes senhores, a coisa é intolerável. Para eles não pode haver bens públicos no sentido estrito do termo. A gratuidade causa-lhes horror.» (Ziegler, Jean (2007)- O Império da Vergonha).
Por tudo isto são urgentes utopias.
REACTOR: Recordo-me de uma utopia particular, “Xanadu” do G. Nelson. Como olha para o actual estado do ciberespaço e da blogosfera em particular?
INFRACÇÕES: A blogosfera não é um meio que nós conheçamos particularmente, não por falta de interesse mas por falta de tempo. No entanto nas nossas buscas notamos que cada vez mais aparecem blogues “pelo caminho”, com informação credível e muitas vezes com ensaios muito interessantes, ou seja, para alem de pesquisadores de informação são criadores de conhecimento, e isso demonstra a importância cultural que estes têm vindo a adquirir. Consideramos a blogosfera um meio socialmente plural e amigável. É incontestavelmente positiva a possibilidade de auto-edição, com vantagem óbvia na divulgação de projectos que saem da “lógica do mercado”, mas também pela capacidade que demonstra em juntar gente com mundivisões semelhantes. Também é notável a capacidade de autoregulação nos blogs colectivos, é sem dúvida um meio digno de estudo e reflexão. Temos a sensação de que a blogo se mantém saudavelmente fora das “guerras de audiência” ou lógicas imediatistas. Não nos parece pensável ver esta entrevista publicada na imprensa clássica, iria ocupar muito espaço “reservado aos compromissos comerciais”.
No ciberespaço, o hipertexto é sem dúvida um potente instrumento de criação e inovação enquanto gerador de fluxos de informação livre (dotada de liberdade). Para isso Nelson teve um papel determinante, no trabalho descrito em “Literary Machines” (1965). Hoje podemos dizer que a utopia “Xanadu” se tornou realidade no sistema de informação aberto e universal World Wide Web, mesmo contando com as forças de controlo central que sempre aparecem (governos, grandes sociedades anónimas, especialmente o cartel do copyright protector do rato Mickey…), tentando abafar as redes espontâneas de informação. Não podemos deixar de prestar homenagem a Tim Berners-Lee, que pôs em prática a WWW sem registar patente de invenção, podendo legalmente salvaguardar o seu controlo, preferiu fornecer ao mundo um vasto campo aberto onde podiam caber novas invenções. É este o espírito utópico.
A Internet dá-nos o instrumento para transformar a sociedade numa estrutura horizontal verdadeiramente democrática, promotora ao mesmo tempo da participação pública do cidadão e da sua autonomia. Se não o soubermos fazer, veremos estabelecer-se paulatinamente “por baixo dos nossos narizes” um arquivo de registo de todos os “movimentos” de todos os cibernautas. E assim criadas as condições óptimas para um “Big Brother" Orwelliano.
REACTOR: Quais são os seus blogues de referência?
INFRACÇÕES: Egoisticamente são os blogues que aceitaram a nossa colaboração: Reactor; domadordesonhos; mandragora; fundacaovelocipedica.
REACTOR: Que pergunta acrescentaria a esta entrevista? E que resposta ela lhe mereceria?
INFRACÇÕES: O Centro Português de Design é a entidade oficial, que desde 1989 está encarregue de promover o design. Que pensam do desempenho deste organismo ao longo destes 30 anos, e muito particularmente se acham que o Centro tem tratado de igual modo as várias áreas do design ?
Para dizer a verdade não nos sentimos habilitados para uma análise aprofundada sobre o seu desempenho. Nos primeiros anos mantivemos atenção (e esperança) no seu resultado, depois foi morrendo progressivamente esse entusiasmo e não fizemos ainda a “autópsia do óbito”. Como tal ficamo-nos por uma opinião sensível, apoiada em notícias que nos vão chegando por várias fontes. No entanto não temos dúvida em considerar que o escopo principal do CPD, desde o início, foi o design de produto. Isso não nos admira. O Centro abre numa época de verdadeira euforia tecnocrata. Economistas, gestores, técnicos de mercado, falavam em fusões, holdings, clusters, competitividade e “limpeza” do sistema produtivo. Os yuppies estavam em alta e o darwinismo social também. Numa dedução simples é natural fazer-se a ligação directa do design de produto com a mercadoria (exportável), a que se iria “acrescentar valor”. Quanto ao design gráfico, ele estava assegurado por uma irreversível terciarização da economia, as novas empresas de serviços saberiam “prevenir-se” com o design adequado. Também é notória a atenção centrada no equipamento/industrial, afastando tudo o que fizesse lembrar “manufactura”, este lapso só é corrigido em 2002 com a introdução de prémios para interiores, moda, joalharia e gráfico.
Na verdade, com ou sem CPD, o design gráfico nacional soube ultrapassar o impacto da “revolução dos média” e integrar-se com nível internacional nos novos paradigmas editoriais com especial relevo na industria cultural. Na área a que estamos ligados, produto, consultámos os prémios nacionais de 2009, e constatámos que vários dos premiados são os mesmos de há 16 anos atrás, isto leva-nos a concluir que em dezasseis anos não apareceram novos nomes merecedores do prémio Sena da Silva, logo o panorama nacional não evoluiu. Será que o critério das candidaturas não é o adequado, que não é prospectivo ? É muito tempo para não corrigir o passo. Na nossa opinião o prémio nunca deveria ser acumulável, se não havia merecedores não havia prémio. O prémio foi pensado para ser um incentivo. Que ao princípio se possa procurar o design onde já se sabe que ele está, pode ser aceitável uma vez sem criar norma. A eleição consecutiva de actores sobejamente conhecidos, pode criar uma inibição em potências candidatos. A inibição pode fundar-se na sensação de que «não vale a pena concorrer com os fortes». Também se pode fundar numa justificável suspeição de que existe conluio. Por nós, quando olhamos para o consecutivo fechar de portas das empresas, tanto se nos dá que tenham (tido) práticas de design como não.
Notas:
[2] Os restantes já não lemos.
[3] A construção morfo-sintáctica, busca adjectivar certas operações financeiras com o
capital simbólico do substantivo engenharia. Termo novo, para nomear (elogiosamente) operações que já se faziam há muito.
[4] Adoptámos a “teoria dos campos” de Pierre Bourdieu, assim: À disciplina (subcampo do campo universidade), cabe construir no seu núcleo (grupo de agentes legitimados pelos seus pares), um programa ideológico que servirá de guia aos agentes que pretende formar e reconhecer. O indivíduo (neste caso o designer), mantém a liberdade de seguir ou não esse programa. Não seguir o programa não é condição necessária para “ser um mau designer”. E não é razão suficiente para “fazer bom design”.
[5] A especificação de actividade humana serve para que um qualquer castor, não possa vir reivindicar o estatuto de designer só porque faz muito bem a sua casinha.
[6] Delimitámos o significado à definição antropológica, uma vez que a palavra tem vindo a adoptar novos sentidos (nomeadamente na informática).
[7] Como é evidente a privatização é usada em sentido metafórico – trata-se efectivamente tanto da estatização de associações civis sem fins lucrativos, como da transformação das mesmas em sociedades anónimas, como aconteceu com as mutualidades.
[8] Neste esforço dos agentes envolvidos, considera-se também o esforço de capital investido, remunerado segundo o custo, o risco e o benefício social prestado, nunca por critérios especulativos ou quaisquer outras manigâncias.
[9] Wagner, Peter, (1996) Liberté et Discipline. Les deux crises de la modernité.
[10] O outro oportunista é o Francis Fukuyama.
[11] Mais de 100 cidades nos Estados Unidos 68, Primavera de Praga 68, México 68, Paris Maio de 68, Irão 79, Africa do Sul 80, RDA 89, Palestina sempre...
Saturday, May 22, 2010
O TRABALHO DO CRÍTICO
Crossing the line foi o título da mais recente conferência d-crit, uma organização do departamento de Design Criticism da The School of Visual Arts.
Um dos keynote, John Thackara, numa intervenção sintomaticamente intitulada “A Revelação”, questionou: “What needs writing about? Where? And, how does one get paid for doing so?”. A comunicação de Thackara foi feita para uma plateia na sua maioria constituída por alunos de Mestrado, pertencente a uma geração que, contrariamente à de John Thackara, foi educada dentro de um contexto onde a presença da crítica do design, primeiro em papel e logo de seguida na web, sempre foi natural.
Os críticos de design, da geração de Clive Dilnot, Nigel Whiteley, Steven Heller e, mais novos, Alice Twemlow e Rick Poynor ou, em Portugal, os críticos da minha geração (a mesma de Mário Moura), pelo contrário, começam a publicar num contexto em que a crítica de design era praticamente inexistente, numa palavra: não havia escritores, nem textos, nem leitores. Havia design, mas escasseava a reflexão sobre o design com tudo o que isso implica.
O contexto de produção ajuda a explicar, que a crítica do design cedesse à tentação de fazer da crítica do design provavelmente o seu objecto central de reflexão. Passou, assim, a haver escritores a escreverem sobre crítica do design, textos sobre crítica do design e leitores (cada vez mais há que reconhecer) de textos sobre crítica do design. Alguma produção de design permanecia ignorada pela crítica.
No seminal diálogo entre Rick Poynor e Michael Rock, “What is this thing called graphic design criticism?, Poynor questiona: What needs writing about? Where? And, how does one get paid for doing so?
A crítica do design, não nos esqueçamos, é uma produção da cultura do design. Um, entre vários, produtos de uma sub-cultura, tendencialmente auto-referencial. Também em Portugal, progressivamente ao longo da última década, a produção crítica e curatorial (de que o The Ressabiator e os Personal Views são eloquentes exemplos) passou a coexistir com produtos feitos para grandes clientes (seja a Gulbenkian ou o Continente), uns mais autorais e uma maioria mais mainstream, para pequenos clientes e coisas auto-propostas, a coexistir com o manancial de trabalho produzido nas escolas, uma grande heterogeneidade de produtos, profundamente desigual na natureza e na qualidade mas resultando de uma mesma cultura. Esta constatação de que a cultura do design em Portugal, é constituída por diversas sub-culturas não deixa de implicar o reconhecimento de uma certa riqueza. Com dizia um leitor num comentário a um post “o design não se reduz às experimentas”, seguramente que não, mas a Experimentadesign não deve ser subtraída da realidade da nossa cultura do design, faz parte dela tal com o site do Jumbo, o Samizdat , as capas da Tinta da China, os cartazes para o Teatro Meridional, o logótipo de uma empresa de moldes, o flyer para uma festa no IST usando comic sans, o portal do centenário da República, as capas dos discos dos Osso Exótico e as do Duo Eu e Ela, os trabalho dos R2, o Jornal de Notícias e as conferências do Dia D.
Num comentário a um texto recente de Mário Moura, João Alves Marrucho escrevia que “Talvez pudessem (os críticos) dedicar menos tempo às conferências XPTO, às exposições, experimentas designs, velhotes empresários, que muitas vezes se estão nas tintas para o que vocês escrevem, talvez não fosse má ideia andar um passo atrás das palas das influências académicas, para que consigam, com a necessária leveza, sentir no ar, colher o que está solto, e prever o tempo.”
Não só é natural como, por inúmeras razões, desejável que um designer da geração e do contexto cultural de João Alves Marrucho considere a revista Eye, o Design Observer, o Reactor ou uma conferência dos Personal Views “coisas mainstream”, literalmente de retaguarda, por ter sido formado dentro (e em certa medida a partir) dessa retaguarda. O desafio que João Alves Marrucho lança aos críticos é, sem dúvida, estimulante e saudável, o que constrange é que tal desafio não seja lançado a nenhum critico de design da geração de João Alves Marrucho mas apenas a mim e ao Mário Moura.
Indo directo à questão, consigo eu perceber que coisas são essas que devemos “sentir no ar”? têm elas relevância e interesse? Penso que era Skitz Beatz que dizia qualquer coisa do género "I ain´t no musician. I just like to make things that sound good", pode esta ideia ser extrapolada para o contexto do design de comunicação? Não hesito em afirmar que algum do design mais interessante que hoje é feito encontra-se em projectos que tendem a escapar à definição e compreensão tradicionais do design, teremos de o “recortar” dentro do campo da arte contemporânea, da criação viral, dos projectos comunitários e da acção pública; noutros casos corresponde a algo de mais híbrido ou simplesmente despreocupado em ser design, simplesmente preocupado em make things that sound good – em fazer coisas com sentido ou, pelo menos, desencadear processos com sentido.
Algum do design mais interessante é fugidio a uma visão mais normativa, são “coisas” que geram, catalisam, interferem ou criam processos de comunicação. Eventualmente, escapará inclusivamente ao que denominamos de “práticas emergentes” de design, em relação às quais a vontade de as dominar teoricamente (a teoria tem pavor do descontrolo) leva, apressadamente, a categoriza-las (seja através das categorias mais batidas - design thinking, design participativo – seja através da invenção de novas categorias).
O crítico de design, era esse o repto de João Alves Marrucho, deve “sentir o ar” e captar coisas que, como no título dos Spiritualized, “are floating in space”. O drama, dentro de uma cultura hiperacelerada, de efemerização contínua, é o de que uma vez descidas à terra as coisas tornam-se rapidamente mainstream e logo devemos correr a sentir uma nova brisa. Defendo que o crítico não deve ter medo do novo, nem medo do velho; não deve ter qualquer preconceito com o que há muito não aparece nem com o que acabou de aparecer: um e outro devem ser sujeitos aos mesmo crivo; um e outro devem ser analisados à luz da contemporaneidade. Mas também sei, que o crítico deve estar consciente de que a cultura contemporânea é marcada pela livre circulação das referências, o seu canibalismo e transitoriedade; também sei que mainstream e underground mantêm relações promíscuas numa época que, no seu zapping, permanentemente remistura Jean-Luc Nancy, Katizinha, David Lynch, Zomby, Reverse Graffiti e Bruno Aleixo.
Da minha parte, quando “sinto o ar”, respiro de tudo. Às vezes sinto o ar rarefeito, outras vezes com um cheiro estranho, muitas vezes claramente poluído. Mas vou conseguindo sentir ar puro. Algum vem do trabalho de alunos, como este , ou de projectos de amigos como A Estante, muito chega-me de jovens designers com a Isabel Lucena ou a Inês Nepomuceno ou menos jovens como Barbara Says.
Uma coisa é certa, o trabalho da crítica de design em Portugal não acabou, na verdade ele mal acabou de começar.
Crossing the line foi o título da mais recente conferência d-crit, uma organização do departamento de Design Criticism da The School of Visual Arts.
Um dos keynote, John Thackara, numa intervenção sintomaticamente intitulada “A Revelação”, questionou: “What needs writing about? Where? And, how does one get paid for doing so?”. A comunicação de Thackara foi feita para uma plateia na sua maioria constituída por alunos de Mestrado, pertencente a uma geração que, contrariamente à de John Thackara, foi educada dentro de um contexto onde a presença da crítica do design, primeiro em papel e logo de seguida na web, sempre foi natural.
Os críticos de design, da geração de Clive Dilnot, Nigel Whiteley, Steven Heller e, mais novos, Alice Twemlow e Rick Poynor ou, em Portugal, os críticos da minha geração (a mesma de Mário Moura), pelo contrário, começam a publicar num contexto em que a crítica de design era praticamente inexistente, numa palavra: não havia escritores, nem textos, nem leitores. Havia design, mas escasseava a reflexão sobre o design com tudo o que isso implica.
O contexto de produção ajuda a explicar, que a crítica do design cedesse à tentação de fazer da crítica do design provavelmente o seu objecto central de reflexão. Passou, assim, a haver escritores a escreverem sobre crítica do design, textos sobre crítica do design e leitores (cada vez mais há que reconhecer) de textos sobre crítica do design. Alguma produção de design permanecia ignorada pela crítica.
No seminal diálogo entre Rick Poynor e Michael Rock, “What is this thing called graphic design criticism?, Poynor questiona: What needs writing about? Where? And, how does one get paid for doing so?
A crítica do design, não nos esqueçamos, é uma produção da cultura do design. Um, entre vários, produtos de uma sub-cultura, tendencialmente auto-referencial. Também em Portugal, progressivamente ao longo da última década, a produção crítica e curatorial (de que o The Ressabiator e os Personal Views são eloquentes exemplos) passou a coexistir com produtos feitos para grandes clientes (seja a Gulbenkian ou o Continente), uns mais autorais e uma maioria mais mainstream, para pequenos clientes e coisas auto-propostas, a coexistir com o manancial de trabalho produzido nas escolas, uma grande heterogeneidade de produtos, profundamente desigual na natureza e na qualidade mas resultando de uma mesma cultura. Esta constatação de que a cultura do design em Portugal, é constituída por diversas sub-culturas não deixa de implicar o reconhecimento de uma certa riqueza. Com dizia um leitor num comentário a um post “o design não se reduz às experimentas”, seguramente que não, mas a Experimentadesign não deve ser subtraída da realidade da nossa cultura do design, faz parte dela tal com o site do Jumbo, o Samizdat , as capas da Tinta da China, os cartazes para o Teatro Meridional, o logótipo de uma empresa de moldes, o flyer para uma festa no IST usando comic sans, o portal do centenário da República, as capas dos discos dos Osso Exótico e as do Duo Eu e Ela, os trabalho dos R2, o Jornal de Notícias e as conferências do Dia D.
Num comentário a um texto recente de Mário Moura, João Alves Marrucho escrevia que “Talvez pudessem (os críticos) dedicar menos tempo às conferências XPTO, às exposições, experimentas designs, velhotes empresários, que muitas vezes se estão nas tintas para o que vocês escrevem, talvez não fosse má ideia andar um passo atrás das palas das influências académicas, para que consigam, com a necessária leveza, sentir no ar, colher o que está solto, e prever o tempo.”
Não só é natural como, por inúmeras razões, desejável que um designer da geração e do contexto cultural de João Alves Marrucho considere a revista Eye, o Design Observer, o Reactor ou uma conferência dos Personal Views “coisas mainstream”, literalmente de retaguarda, por ter sido formado dentro (e em certa medida a partir) dessa retaguarda. O desafio que João Alves Marrucho lança aos críticos é, sem dúvida, estimulante e saudável, o que constrange é que tal desafio não seja lançado a nenhum critico de design da geração de João Alves Marrucho mas apenas a mim e ao Mário Moura.
Indo directo à questão, consigo eu perceber que coisas são essas que devemos “sentir no ar”? têm elas relevância e interesse? Penso que era Skitz Beatz que dizia qualquer coisa do género "I ain´t no musician. I just like to make things that sound good", pode esta ideia ser extrapolada para o contexto do design de comunicação? Não hesito em afirmar que algum do design mais interessante que hoje é feito encontra-se em projectos que tendem a escapar à definição e compreensão tradicionais do design, teremos de o “recortar” dentro do campo da arte contemporânea, da criação viral, dos projectos comunitários e da acção pública; noutros casos corresponde a algo de mais híbrido ou simplesmente despreocupado em ser design, simplesmente preocupado em make things that sound good – em fazer coisas com sentido ou, pelo menos, desencadear processos com sentido.
Algum do design mais interessante é fugidio a uma visão mais normativa, são “coisas” que geram, catalisam, interferem ou criam processos de comunicação. Eventualmente, escapará inclusivamente ao que denominamos de “práticas emergentes” de design, em relação às quais a vontade de as dominar teoricamente (a teoria tem pavor do descontrolo) leva, apressadamente, a categoriza-las (seja através das categorias mais batidas - design thinking, design participativo – seja através da invenção de novas categorias).
O crítico de design, era esse o repto de João Alves Marrucho, deve “sentir o ar” e captar coisas que, como no título dos Spiritualized, “are floating in space”. O drama, dentro de uma cultura hiperacelerada, de efemerização contínua, é o de que uma vez descidas à terra as coisas tornam-se rapidamente mainstream e logo devemos correr a sentir uma nova brisa. Defendo que o crítico não deve ter medo do novo, nem medo do velho; não deve ter qualquer preconceito com o que há muito não aparece nem com o que acabou de aparecer: um e outro devem ser sujeitos aos mesmo crivo; um e outro devem ser analisados à luz da contemporaneidade. Mas também sei, que o crítico deve estar consciente de que a cultura contemporânea é marcada pela livre circulação das referências, o seu canibalismo e transitoriedade; também sei que mainstream e underground mantêm relações promíscuas numa época que, no seu zapping, permanentemente remistura Jean-Luc Nancy, Katizinha, David Lynch, Zomby, Reverse Graffiti e Bruno Aleixo.
Da minha parte, quando “sinto o ar”, respiro de tudo. Às vezes sinto o ar rarefeito, outras vezes com um cheiro estranho, muitas vezes claramente poluído. Mas vou conseguindo sentir ar puro. Algum vem do trabalho de alunos, como este , ou de projectos de amigos como A Estante, muito chega-me de jovens designers com a Isabel Lucena ou a Inês Nepomuceno ou menos jovens como Barbara Says.
Uma coisa é certa, o trabalho da crítica de design em Portugal não acabou, na verdade ele mal acabou de começar.
Tuesday, May 11, 2010
WORK & RUN
O último número da revista Graphic é dedicada aos “young studios”.
No total, são 23 estúdios de design gráfico, criados há três anos ou menos, cujo trabalho, motivações e metodologias são apresentados.
Sendo estúdios recentes, constituídos por designers na casa dos vintes, alguns deles recém-licenciados, o seu trabalho está longe de ser desconhecido, em parte pela forma como sabem explorar as plataformas web e as redes sociais para disseminarem o trabalho e em parte graças à acção de sítios de divulgação como o manystuff de Charlotte Cheetham, notável curadora independente, ela própria na casa dos vintes.
Mais do que as características formais dos objectos produzidos, o que se destaca no trabalho da maioria destes “young designers” é a forma de os produzirem: é na exploração do processo que reside a sua energia. E o processo tem como objecto o próprio design e as suas múltiplas possibilidades de mediação e catalisação social. Auto-edição, práticas colaborativas, projectos curatoriais fazem parte das práticas deste "self-referential design" onde a circulação de pessoas e ideias, a recepcção e a remistura são parte importante do processo criativo. A produção de conteúdos, e sua consequente calibração para comunicação pública, são cada vez mais obra de todos e de qualquer um, por tentativa e erro, por wiki-aproximação.
O estúdio catalão Bendita Gloria criado pelos designers Alba Rossel e Santi Fuster, um dos estúdios seleccionados pela Graphic, comentava na sua página no Facebook que adoram dar workshops. Os seus projectos, mesmo quando não resultam formalmente de um workshop, surgem na sequência de um processo experimental e participativo que habitualmente caracteriza um workshop.
Cada projecto é, assim, pensado como um laboratório, literalmente: um lugar onde se fazem experiências, onde se colocam hipóteses. É o próprio design como laboratório social que, no fundo, é experimentado.
Numa entrevista recente à 40fakes, Santi Fuster diz uma coisa curiosa: “En la universidad oímos alguna vez “… en un contexto profesional es inviable”. Este tipo de comentario nos hizo pensar que tal vez no nos interesaba el contexto profesional del que nos hablaban.”. Criar o próprio contexto profissional parece, igualmente, um objectivo (ou consequência) da maioria destes novos estúdios.
Se a lista dos 23 estúdios escolhidos pode ser discutível, em alguns casos sentimos estar perante criadores que vão ser (já vão sendo) as referências para a geração seguinte substituindo ou associando-se às principais referências desta geração (como Sagmeister e Eatock) é o caso do We Have Photoshop , do Applied Aesthetics de Julian Bittiner ou dos londrinos OK-RM.
Infelizmente, não há nenhum designer português nesta mostra de 23. Mas podia haver. Quando visitamos a recente plataforma Colher, rapidamente nos apercebemos das influências exteriores (every morning they check manystuff!) que, por vezes, resulta num portfolio que parece ter sido feito por 5 pessoas diferentes tal a diversidade de recursos e linguagens exploradas; mas noutros casos, em muitos casos, há um universo coerente, desafiante, estimulante, que associa domínio técnico e espírito crítico; em muitos casos, há trabalho despretensioso, desenvolvido por motivações pessoais, individualmente ou em conjunto com amigos; em qualquer caso, há uma vontade de partilha, uma ausência de receio em ver o trabalho exposto, comentado, apropriado. E nisto, há uma série de interessantes diferenças em relação à geração anterior.
Pessoalmente, gosto muito das ilustrações tipográficas de André Beato, do trabalho de te-te-texas, das experiências virais dos já conhecidos Cabracega, das ilustrações (onde julgo reconhecer a influência da extraordinária Cristiana Couceiro) de Hélder Costa, da energia do Bráulio Amado, do minimalismo de Fael, mas também dos cartazes de Ana Schefer e de quase tudo o que a Márcia Novais e o Sérgio Alves vão fazendo.
Uma possível conclusão: há muita qualidade nesta geração de designers desempregados.
Uma possível esperança: talvez a sua qualidade e vontade lhes permita ajudarem a criar novas formas de empregabilidade em vez de se conformarem com o actual e constrangedor mercado de design.
Sunday, May 09, 2010
DESIGN PORTUGUÊS? O QUE É ISSO?
Amanhã vou ao Dia D organizado pelo IPCA falar sobre identidade no design português. A questão da identidade, tem sido, na última década, objecto de crescente reflexão, ao ponto da portugalidade ser hoje alvo de várias abordagens: da reflexão filosófica (de Eduardo Lourenço ou José Gil), ao estudo sociológico (Miguel Esteves Cardoso ou António Barreto), passando pela exploração comercial (na última década ligada à explosão do retro-brandign). Também no campo do design esse questionamento tem vindo a ser feito (Joana Baptista Costa e Marina Leão dedicaram-lhe recentemente um interessante trabalho): há uma identidade no design português? O que a caracteriza? O que nos diferencia e como esse, eventual, diferencial promove o design português internacionalmente?
Durante o último mês de Fevereiro, a Kiosk em Nova York teve à venda uma selecção de produtos portugueses, que segundo os organizadores Alisa Grifo e Marco Romeny, reflectem a identidade de Portugal: das pandeiretas do Bom Jesus de Braga, às embalagens de creme Benamôr e conservas Tricana, pelo meio os cadernos da Serrote e a brochura do Bussaco com design original do Estúdio TOM.
É claro que aquela visão etnográfica e retro-chich, do Portugal da bolacha Maria, que transpôs para a Spring St. de Nova York o ambiente d’ A Vida Portuguesa, evidenciando este renovado interesse, em tempos de globalização e de reflexão pós-colonial, pela cultura popular, estava longe de apresentar o design português contemporâneo, como um nova yorkino atento pode constatar ao ver uma ilustração de André Carrilho ou de Jorge Colombo na The New Yorker, uma capa da Book Review do The New York Times criada por Cristiana Couceiro (é da sua autoria uma dos mais sedutores blogues do momento) ou ao perceber que a tipografia do The New York Times Magazine é a nova Nyte desenhada por Dino dos Santos.
Mas se esta internacionalização do design português é hoje uma realidade (Barbara Says e Change Is Good surgem-nos no último AREA da Phaidon; R2 e Drop na publicação Small Studios; os jornais franceses Libération e Fígaro foram redesenhados com a ajuda da Dstype; a Creativity Magazine aponta Manuel Lima como uma das 50 mentes mais criativas de 2009...) , por outro lado, é notória a falta de agenciamento e de apoio institucional (já há muito é passado o investimento feito pelo ICEP e o CPD é hoje inoperante) ao design português. Para mais, a marca ligada ao design português de maior projecção internacional, que é a experimentadesign, não tem feito um significativo investimento da projecção de críticos, curadores e designers portugueses, ao ponto de Emily Campbell, da RSA, na sua análise da última edição da experimentadesign (onde refere, entre outros, os nomes de Paola Antonelli, Neri Oxman, Alison Maloney, Emily King e Peter Saville) não ser capaz de nomear um único nome português para além da comissária geral Guta Moura Guedes.
Para encontrarmos um número de uma revista internacional dedicando largo destaque ao design português temos de viajar no tempo mais de vinte anos.
Em Junho de 1988, a revista Gráfica dedicava o seu número 20/21 ao design gráfico português, num destaque que começava logo pela capa desenhada por João Machado, que passava pelo editorial de Manuel Peres e se materializava na apresentação de portfolios de cerca de 30 autores agrupados por categorias que iam do cartaz à ilustração, da identidade ao design editorial.
Ao ver-se a selecção diversificada de trabalhos de João Machado, José Brandão, Vasco, Victor Paiva, Manuela Bacelar, J. Carlos da Rocha, Robin Fior, Henrique Cayatte ou Novodesign facilmente se percebia que ela não caracterizava o design gráfico português – não permitindo reconhecer formas de identidade - mas, antes, a produção gráfica feita em Portugal. E se era verdade, em grande medida continua a sê-lo, que “aqui os contextos são regionais”, como referia Manuel Peres no Editorial, também esse regionalismo localizava o espaço de produção e, por vezes, de valorização de um criador mas muito menos a identidade do seu trabalho.
Na entrada da década de 1990, a cultura visual portuguesa parecia dar sinais de uma alargada renovação: do cinema (com José Álvaro Morais ou César Monteiro) ao vídeo (em 1989 é criada a produtora Latina Europa que será responsável pelo programa Lusitânia Expresso para a RTP), da ilustração ao design editorial. Revistas como a K Capa, cujo primeiro número se pública em Outubro de 1990, representam essa suposição de existência de público para uma publicação, de grande tiragem, de carácter alternativo, visualmente forte (da responsabilidade de João Botelho e Luís Miguel Castro) que juntava um conjunto alargado de ilustradores (Ana Vidigal, Ivo, Filipe Meireles, Manuel João Vieira, Pedro Calapez, Pedro Casqueiro, entre outros) e apostando na imagem fotográfica assinada por Inês Gonçalves. Pouco depois hão-de surgir revistas especializadas, mas de vida curta, como a Porto&Risco ou Portugal Design antecipando uma experiência maior que foi, a partir de 1997, a Belém, consolidando linguagens formais (sobreposição de layers, experimentação tipográfica, composição cinemática) e critérios editoriais (nomeadamente o cruzamento entre alta e baixa cultura) então explorados em diversas zines.
A nova geração de designers que, nos anos 90, sucede ou co-existe com a geração anterior é, então, responsável por uma indiscutível evolução da cultura do design em Portugal, sabendo aproveitar ventos economica e culturalmente interessantes ou, pelo menos, esperançosos.
No entanto, também se nota que esta geração dos anos 1990 é menos herdeira de uma história do design português do que criativamente receptora de influências externas. Não desenvolverei aqui essa reflexão, mas faço notar que uma história do design português revela gerações de designers com pouca ligação inter-geracional. Isso nota-se, particularmente, ao nível do design de produto: os objectos desenhados por Manuel Pina, José Espinho (nomeadamente para a Olaio), Margarida Miguel, José Pulido Valente ou Daciano Costa, Cristóvão Maçara e Carlos Costa não exercem particular influência nos objectos (mais influenciados pela estética Droog e pelo design quente italiano) da geração de Fernando Brizio, Filipe Alarcão, Raul Cunca, Marco Sousa Santos e Miguel Vieira Baptista e estes por sua vez não são continuados pela geração new craft dos Pedrita, Krv Kurva, Boca do Lobo ou SAAL.
Se procurarmos, nos anos 1990, uma mostra de design português no estrangeiro (coisa hoje e sempre raríssima) apenas encontramos a exposição Lusitânia – Cultura Portuguesa Actual, que a SEC leva a Madrid em 1992, tendo como responsáveis Margarida Veiga e Fernando Calhau (comissários da exposição de artes plásticas), Delfim Sardo (comissário da exposição de design), Teresa Siza e José Manuel Fernandes (comissários da exposição de fotografia) e Nuno Júdice ( a quem coube a responsabilidade pelo encontro de escritores), o evento, que pretendia mostrar numa panorâmica geral as tendências que circulavam em Portugal enfatizadas pelos pregões de uma revolução cultural urbana que agitara os anos 80.
O curador convidado a organizar a exposição de design foi Delfim Sardo. A escolha, não sendo consensual, também não se revestia de particular polémica numa altura em que o espaço da curadoria em design era praticamente nulo.
Delfim Sardo não era um crítico ou curador de design mas o argumento, inatacado mas não inatacável, era o de que verdadeiramente não havia em Portugal efectivamente críticos ou curadores de design. A escolha de Delfim Sardo, para comissariar a exposição de Design na “Lusitânia”, era então a escolha de um “intelectual” mais próximo da cultura urbana do Bairro Alto do que, propriamente, do Centro Português de Design, o que traduzia, aliás, a muito relativa crença do Estado nos seus próprios organismos. Como polémica não gerou a escolha (tão discutível na altura como discutível hoje) dos autores representados: Álvaro Siza Vieira, Filipe Alarcão, José Manuel Carvalho Araújo, Pedro Silva Dias, Nuno Lacerda Lopes, Pedro Mendes, António Modesto, Eduardo Souto Moura, Margarida Grácio Nunes, Pedro Ramalho, Francisco Rocha, Fernando Salvador, José Mário Santos e Marco Sousa Santos. A selecção, creio eu, decorria mais da escolha dos empresários (da Loja da Atalaya, da Carvalho Araújo, da Difusão Internacional de Design de Siza, da Elementar e da Proto) do que da escolha do comissário, daí que a exposição “Design Português” ignorasse nomes como João Machado, João Nunes, Francisco Providência, Henrique Cayatte ou o colectivo Infracções, bem como uma nova geração de designers e ilustradores então a afirmar-se. Em todo o caso, também naquela mostra de design português, dificilmente se conseguia caracterizar uma eventual identidade do nosso design (Siza Vieira representaria a identidade da Escola de Arquitectura do Porto, mas uma certa indiferenciação entre Arquitectura e Design era apenas um, entre vários, equívocos da exposição).
Fosse a partir do número de 1988 da Gráfica, fosse a partir da exposição de design português de 1991, era difícil responder à questão: o que caracteriza o design português? O que nos distingue? A dificuldade da resposta resultaria, desde logo, da raridade da pergunta. Efectivamente, a atenção à história e a reflexão teórica sobre o design português só começou a surgir nos últimos anos da década passada. E se na nossa produção gráfica sempre foram visíveis influências do exterior e formas subtis de as receber e reinterpretar (de Leal da Câmara a Henrique Cayatte, de Sebastião Rodrigues a Ricardo Mealha) essa produção não era objecto de análise e reflexão.
Se entre as décadas de 1930 e 1950 assistimos a um esforço do estado, protagonizado por António Ferro, em afirmar, através da cultura visual, uma identidade nacional que culmina na obra maior que é a Vida e Arte do Povo Português encomendada, em 1940, a Paulo Ferreira, a questão da identidade dilui-se no regime de Marcelo Caetano e no pós-25 de Abril.
Ao olharmos para Vida e Arte do Povo Português conseguimos encontrar uma série de características que de forma subtil mas recorrente marcam a produção gráfica de vários designers portugueses: o recurso à ilustração, a exploração de uma iconoplastia etnográfica (a geometrização dos elementos figurativos em Sebastião Rodrigues, Tom e João Machado, a sua gradual abstracção em Cayatte ou o seu uso mais literal como nas sardinhas de Jorge Silva para as Festas da Cidade), a dimensão narrativa, o uso de soluções caligráficas e de tipos não tipográficos (como as letras bordadas dos lenços dos namorados exploradas por Ferreira ou as diversas experiências com lettering testadas pela Silva!Designers para o S. Luiz e sobretudo pela Drop de João Faria nos trabalhos para o TNSJ) características que, pese as diferenças, são exploradas por Sebastião Rodrigues, José Brandão, João machado, Henrique Cayatte, Jorge Silva ou João Faria.
Mas mais do que uma identidade colectiva, o que me parece evidenciar-se hoje no design gráfico português é uma forte identidade individual, o carácter autoral que contribui para uma dinâmica colectiva. Os campos da ilustração e da tipografia provam-no bem.
Se, na sua grande maioria, estes trabalhos tem visibilidade internacional, se inclusivamente os portfolios de muitos jovens designers e estudantes de design foram ganhando, graças às plataformas web, expressão global, um outro aspecto a destacar é o do elevado número de designers portugueses a trabalhar, com sucesso, no estrangeiro. Alguns exemplos: Susana Carvalho trabalha com Kai Bernau no Atelier Carvalho Bernau em Haia com um trabalho excelente de design gráfico, editorial e typedesign; José Albergaria está em França com o muito activo Atelier Change Is Good; Diogo Valério tem um trabalho destacado no Scandinavian Design Group em Oslo; destaque idêntico têm Dina Cereja no TakkStudio em Londres, Gustavo Moita nos Why Not Associates ou Hugo D’Alte na Finlândia, Nuno Vargas e Joana Areal em Barcelona, Nuno da Luz em Berlim, Isabel Lucena e Marco Balesteros na Holanda ou o, incontornável, Manuel Lima a trabalhar na Nokia em Londres.
Os designers portugueses e o seu trabalho circulam internacionalmente e ganharam expressão no mercado apesar do escassíssimo apoio institucional. Talvez essa falta de apoios explique o facto dos designers portugueses se manterem à parte de algumas tendências contemporâneas: os projectos curatoriais, o design relacional, o design-arte determinadas abordagens mais performativas ou políticas. Mas também aqui, lentamente, parecem surgir indícios de mudança...
No design português, a comunidade que vem (no sentido de Agamben) parece ainda indefinida. Talvez esta indefinição seja, aliás, parte do que nos define. Mais do que uma linguagem formal ou dado contextual, o design português caracteriza-se por um conjunto de esforços individuais, dentro de um contexto social, cultural e económico adverso, que contrariando as previsões conseguem ser bem sucedidos. É difícil prever, o que poderia ser o trabalho dos nossos designers, críticos e curadores dentro de um contexto mais sustentável, mas também esse exercício especulativo, o “e se” que tanto nos acompanha, parece fazer parte do que é matéria e estímulo da portugalidade.
Amanhã vou ao Dia D organizado pelo IPCA falar sobre identidade no design português. A questão da identidade, tem sido, na última década, objecto de crescente reflexão, ao ponto da portugalidade ser hoje alvo de várias abordagens: da reflexão filosófica (de Eduardo Lourenço ou José Gil), ao estudo sociológico (Miguel Esteves Cardoso ou António Barreto), passando pela exploração comercial (na última década ligada à explosão do retro-brandign). Também no campo do design esse questionamento tem vindo a ser feito (Joana Baptista Costa e Marina Leão dedicaram-lhe recentemente um interessante trabalho): há uma identidade no design português? O que a caracteriza? O que nos diferencia e como esse, eventual, diferencial promove o design português internacionalmente?
Durante o último mês de Fevereiro, a Kiosk em Nova York teve à venda uma selecção de produtos portugueses, que segundo os organizadores Alisa Grifo e Marco Romeny, reflectem a identidade de Portugal: das pandeiretas do Bom Jesus de Braga, às embalagens de creme Benamôr e conservas Tricana, pelo meio os cadernos da Serrote e a brochura do Bussaco com design original do Estúdio TOM.
É claro que aquela visão etnográfica e retro-chich, do Portugal da bolacha Maria, que transpôs para a Spring St. de Nova York o ambiente d’ A Vida Portuguesa, evidenciando este renovado interesse, em tempos de globalização e de reflexão pós-colonial, pela cultura popular, estava longe de apresentar o design português contemporâneo, como um nova yorkino atento pode constatar ao ver uma ilustração de André Carrilho ou de Jorge Colombo na The New Yorker, uma capa da Book Review do The New York Times criada por Cristiana Couceiro (é da sua autoria uma dos mais sedutores blogues do momento) ou ao perceber que a tipografia do The New York Times Magazine é a nova Nyte desenhada por Dino dos Santos.
Mas se esta internacionalização do design português é hoje uma realidade (Barbara Says e Change Is Good surgem-nos no último AREA da Phaidon; R2 e Drop na publicação Small Studios; os jornais franceses Libération e Fígaro foram redesenhados com a ajuda da Dstype; a Creativity Magazine aponta Manuel Lima como uma das 50 mentes mais criativas de 2009...) , por outro lado, é notória a falta de agenciamento e de apoio institucional (já há muito é passado o investimento feito pelo ICEP e o CPD é hoje inoperante) ao design português. Para mais, a marca ligada ao design português de maior projecção internacional, que é a experimentadesign, não tem feito um significativo investimento da projecção de críticos, curadores e designers portugueses, ao ponto de Emily Campbell, da RSA, na sua análise da última edição da experimentadesign (onde refere, entre outros, os nomes de Paola Antonelli, Neri Oxman, Alison Maloney, Emily King e Peter Saville) não ser capaz de nomear um único nome português para além da comissária geral Guta Moura Guedes.
Para encontrarmos um número de uma revista internacional dedicando largo destaque ao design português temos de viajar no tempo mais de vinte anos.
Em Junho de 1988, a revista Gráfica dedicava o seu número 20/21 ao design gráfico português, num destaque que começava logo pela capa desenhada por João Machado, que passava pelo editorial de Manuel Peres e se materializava na apresentação de portfolios de cerca de 30 autores agrupados por categorias que iam do cartaz à ilustração, da identidade ao design editorial.
Ao ver-se a selecção diversificada de trabalhos de João Machado, José Brandão, Vasco, Victor Paiva, Manuela Bacelar, J. Carlos da Rocha, Robin Fior, Henrique Cayatte ou Novodesign facilmente se percebia que ela não caracterizava o design gráfico português – não permitindo reconhecer formas de identidade - mas, antes, a produção gráfica feita em Portugal. E se era verdade, em grande medida continua a sê-lo, que “aqui os contextos são regionais”, como referia Manuel Peres no Editorial, também esse regionalismo localizava o espaço de produção e, por vezes, de valorização de um criador mas muito menos a identidade do seu trabalho.
Na entrada da década de 1990, a cultura visual portuguesa parecia dar sinais de uma alargada renovação: do cinema (com José Álvaro Morais ou César Monteiro) ao vídeo (em 1989 é criada a produtora Latina Europa que será responsável pelo programa Lusitânia Expresso para a RTP), da ilustração ao design editorial. Revistas como a K Capa, cujo primeiro número se pública em Outubro de 1990, representam essa suposição de existência de público para uma publicação, de grande tiragem, de carácter alternativo, visualmente forte (da responsabilidade de João Botelho e Luís Miguel Castro) que juntava um conjunto alargado de ilustradores (Ana Vidigal, Ivo, Filipe Meireles, Manuel João Vieira, Pedro Calapez, Pedro Casqueiro, entre outros) e apostando na imagem fotográfica assinada por Inês Gonçalves. Pouco depois hão-de surgir revistas especializadas, mas de vida curta, como a Porto&Risco ou Portugal Design antecipando uma experiência maior que foi, a partir de 1997, a Belém, consolidando linguagens formais (sobreposição de layers, experimentação tipográfica, composição cinemática) e critérios editoriais (nomeadamente o cruzamento entre alta e baixa cultura) então explorados em diversas zines.
A nova geração de designers que, nos anos 90, sucede ou co-existe com a geração anterior é, então, responsável por uma indiscutível evolução da cultura do design em Portugal, sabendo aproveitar ventos economica e culturalmente interessantes ou, pelo menos, esperançosos.
No entanto, também se nota que esta geração dos anos 1990 é menos herdeira de uma história do design português do que criativamente receptora de influências externas. Não desenvolverei aqui essa reflexão, mas faço notar que uma história do design português revela gerações de designers com pouca ligação inter-geracional. Isso nota-se, particularmente, ao nível do design de produto: os objectos desenhados por Manuel Pina, José Espinho (nomeadamente para a Olaio), Margarida Miguel, José Pulido Valente ou Daciano Costa, Cristóvão Maçara e Carlos Costa não exercem particular influência nos objectos (mais influenciados pela estética Droog e pelo design quente italiano) da geração de Fernando Brizio, Filipe Alarcão, Raul Cunca, Marco Sousa Santos e Miguel Vieira Baptista e estes por sua vez não são continuados pela geração new craft dos Pedrita, Krv Kurva, Boca do Lobo ou SAAL.
Se procurarmos, nos anos 1990, uma mostra de design português no estrangeiro (coisa hoje e sempre raríssima) apenas encontramos a exposição Lusitânia – Cultura Portuguesa Actual, que a SEC leva a Madrid em 1992, tendo como responsáveis Margarida Veiga e Fernando Calhau (comissários da exposição de artes plásticas), Delfim Sardo (comissário da exposição de design), Teresa Siza e José Manuel Fernandes (comissários da exposição de fotografia) e Nuno Júdice ( a quem coube a responsabilidade pelo encontro de escritores), o evento, que pretendia mostrar numa panorâmica geral as tendências que circulavam em Portugal enfatizadas pelos pregões de uma revolução cultural urbana que agitara os anos 80.
O curador convidado a organizar a exposição de design foi Delfim Sardo. A escolha, não sendo consensual, também não se revestia de particular polémica numa altura em que o espaço da curadoria em design era praticamente nulo.
Delfim Sardo não era um crítico ou curador de design mas o argumento, inatacado mas não inatacável, era o de que verdadeiramente não havia em Portugal efectivamente críticos ou curadores de design. A escolha de Delfim Sardo, para comissariar a exposição de Design na “Lusitânia”, era então a escolha de um “intelectual” mais próximo da cultura urbana do Bairro Alto do que, propriamente, do Centro Português de Design, o que traduzia, aliás, a muito relativa crença do Estado nos seus próprios organismos. Como polémica não gerou a escolha (tão discutível na altura como discutível hoje) dos autores representados: Álvaro Siza Vieira, Filipe Alarcão, José Manuel Carvalho Araújo, Pedro Silva Dias, Nuno Lacerda Lopes, Pedro Mendes, António Modesto, Eduardo Souto Moura, Margarida Grácio Nunes, Pedro Ramalho, Francisco Rocha, Fernando Salvador, José Mário Santos e Marco Sousa Santos. A selecção, creio eu, decorria mais da escolha dos empresários (da Loja da Atalaya, da Carvalho Araújo, da Difusão Internacional de Design de Siza, da Elementar e da Proto) do que da escolha do comissário, daí que a exposição “Design Português” ignorasse nomes como João Machado, João Nunes, Francisco Providência, Henrique Cayatte ou o colectivo Infracções, bem como uma nova geração de designers e ilustradores então a afirmar-se. Em todo o caso, também naquela mostra de design português, dificilmente se conseguia caracterizar uma eventual identidade do nosso design (Siza Vieira representaria a identidade da Escola de Arquitectura do Porto, mas uma certa indiferenciação entre Arquitectura e Design era apenas um, entre vários, equívocos da exposição).
Fosse a partir do número de 1988 da Gráfica, fosse a partir da exposição de design português de 1991, era difícil responder à questão: o que caracteriza o design português? O que nos distingue? A dificuldade da resposta resultaria, desde logo, da raridade da pergunta. Efectivamente, a atenção à história e a reflexão teórica sobre o design português só começou a surgir nos últimos anos da década passada. E se na nossa produção gráfica sempre foram visíveis influências do exterior e formas subtis de as receber e reinterpretar (de Leal da Câmara a Henrique Cayatte, de Sebastião Rodrigues a Ricardo Mealha) essa produção não era objecto de análise e reflexão.
Se entre as décadas de 1930 e 1950 assistimos a um esforço do estado, protagonizado por António Ferro, em afirmar, através da cultura visual, uma identidade nacional que culmina na obra maior que é a Vida e Arte do Povo Português encomendada, em 1940, a Paulo Ferreira, a questão da identidade dilui-se no regime de Marcelo Caetano e no pós-25 de Abril.
Ao olharmos para Vida e Arte do Povo Português conseguimos encontrar uma série de características que de forma subtil mas recorrente marcam a produção gráfica de vários designers portugueses: o recurso à ilustração, a exploração de uma iconoplastia etnográfica (a geometrização dos elementos figurativos em Sebastião Rodrigues, Tom e João Machado, a sua gradual abstracção em Cayatte ou o seu uso mais literal como nas sardinhas de Jorge Silva para as Festas da Cidade), a dimensão narrativa, o uso de soluções caligráficas e de tipos não tipográficos (como as letras bordadas dos lenços dos namorados exploradas por Ferreira ou as diversas experiências com lettering testadas pela Silva!Designers para o S. Luiz e sobretudo pela Drop de João Faria nos trabalhos para o TNSJ) características que, pese as diferenças, são exploradas por Sebastião Rodrigues, José Brandão, João machado, Henrique Cayatte, Jorge Silva ou João Faria.
Mas mais do que uma identidade colectiva, o que me parece evidenciar-se hoje no design gráfico português é uma forte identidade individual, o carácter autoral que contribui para uma dinâmica colectiva. Os campos da ilustração e da tipografia provam-no bem.
Se, na sua grande maioria, estes trabalhos tem visibilidade internacional, se inclusivamente os portfolios de muitos jovens designers e estudantes de design foram ganhando, graças às plataformas web, expressão global, um outro aspecto a destacar é o do elevado número de designers portugueses a trabalhar, com sucesso, no estrangeiro. Alguns exemplos: Susana Carvalho trabalha com Kai Bernau no Atelier Carvalho Bernau em Haia com um trabalho excelente de design gráfico, editorial e typedesign; José Albergaria está em França com o muito activo Atelier Change Is Good; Diogo Valério tem um trabalho destacado no Scandinavian Design Group em Oslo; destaque idêntico têm Dina Cereja no TakkStudio em Londres, Gustavo Moita nos Why Not Associates ou Hugo D’Alte na Finlândia, Nuno Vargas e Joana Areal em Barcelona, Nuno da Luz em Berlim, Isabel Lucena e Marco Balesteros na Holanda ou o, incontornável, Manuel Lima a trabalhar na Nokia em Londres.
Os designers portugueses e o seu trabalho circulam internacionalmente e ganharam expressão no mercado apesar do escassíssimo apoio institucional. Talvez essa falta de apoios explique o facto dos designers portugueses se manterem à parte de algumas tendências contemporâneas: os projectos curatoriais, o design relacional, o design-arte determinadas abordagens mais performativas ou políticas. Mas também aqui, lentamente, parecem surgir indícios de mudança...
No design português, a comunidade que vem (no sentido de Agamben) parece ainda indefinida. Talvez esta indefinição seja, aliás, parte do que nos define. Mais do que uma linguagem formal ou dado contextual, o design português caracteriza-se por um conjunto de esforços individuais, dentro de um contexto social, cultural e económico adverso, que contrariando as previsões conseguem ser bem sucedidos. É difícil prever, o que poderia ser o trabalho dos nossos designers, críticos e curadores dentro de um contexto mais sustentável, mas também esse exercício especulativo, o “e se” que tanto nos acompanha, parece fazer parte do que é matéria e estímulo da portugalidade.
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