Edição Independente: Notas para um enquadramento
Na página de abertura do sítio de internet de Serving Library, projecto desenvolvido por Dexter Sinister, somos confrontados com um manifesto, em cinco pontos, que sintetiza bem o espírito de uma nova geração de designers-editores:
1. Books are for use.
2. Every Reader his (or her) book.
3. Every book its reader.
4. Save the time of the user.
5. The library is a growing organism.
A edição aparece, no trabalho de Dexter Sinister, Format Standard, Roma Publications, Sara De Bondt, Will Holder ou dos Project Projects mas também numa imensidão de estudantes de design ou jovens designers anónimos, como um elemento fundamental num processo de produção cultural indissociável da arte e do design contemporâneos. Falamos de um processo crescentemente aberto, fluído e participativo, que recorre à edição ligando-a a outras estratégias de criação (design gráfico, curadoria, crítica) de objectos e situações numa orientação social e politicamente activa da prática projectual contemporânea.
The Serving Library é uma espécie de heterotopia proposta pelos Dexter Sinister como sendo capaz de abarcar todas as suas actividades (livraria, edição, workshops, projectos curatoriais) funcionando como uma plataforma aberta envolvendo inúmeros micro-projectos, físicos ou virtuais (como uma livraria, uma escola ou um estúdio), que alojem, catalisem ou suportem processos de mediação cultural associados ao actual campo expandido do design de comunicação. Inúmeros outros projectos revelam idênticas preocupações. É o caso da Book Society, criada em Outubro de 2009 pela Mediabus (um editor independente sediado em Seul), que tem em permanência um “call for colaboration” lançado a editores independentes, livreiros, artistas e designers visando a criação de uma nova cultura do self-publishing: “The book society focuses on encouraging people with the interrest of DIY ethos to Express their creativity via the self-producing.”.
Entre os livros disponíveis no espaço da Book Society encontramos: Portable Document Format (2009) editado pelos Dexter Sinister e que reúne, na primeira parte do livro, textos originalmente disponíveis em formato PDF no sítio da livraria em www.dextersinister.org e, na segunda parte, uma selecção de provas de impressão litográfica, trabalhadas individualmente, e que estabelecem uma relação, nunca linear, entre texto e imagem; Insecta Erectus (2010) publicado por G& ou, por exemplo, o Reader do Laspis Fórum on Design and Critical Practice (Sternberg Press, 2009) que reunindo contributos de uma série de figuras centrais no actual panorama independente do design de comunicação (Abake, Nick Currie, Dexter Sinister, Experimental Jetset, Will Holder ou Metahaven) ajuda a traçar o “estado da arte” deste mesmo panorama.
Se maioria dos editores trabalha dentro de um modelo herdeiro da linha de montagem fordista – autoria, design, produção, impressão e distribuição são tarefas especializadas desenvolvidas em momentos distintos por pessoas distintas – já no caso dos pequenos editores e, de modo ainda mais evidente, da auto-edição domina um modelo de produção Just-in-Time, muito mais aberto e dinâmico, onde os papeis podem ser revertidos ou coincidirem passando uma pessoa ou pequena equipa a desenvolver todo o processo de trabalho: da criação à distribuição.
No contexto actual, algumas livrarias – Pro qm, Barbara Wien e Motto em Berlim; Nijhof & Lee e Boekie Woekie em Amesterdão – funcionam como plataformas de ancoragem e circulação de objectos impressos, informação, pessoas e ideologias ligados à edição independente, criando processos capazes de desencadear uma permanente auto-reflexão associada à auto-publicação. No campo da edição independente, a ideia mais redutora e de cariz economicista do “mercado” tende a ser substituída pela ideia de “contexto” e a relação do auto-editor com o contexto não se esgota na produção de uma mercadoria para um nicho de mercado, a sua relação é assumidamente a de um produtor (Walter Benjamin) ou pós-produtor (Nicolas Bourriaud) capaz de mediar, catalisar e gerar “situações críticas” que permitam alargar o contexto de intervenção cultural para além das fronteiras actuais.
Quando manuseamos publicações como Stuck inside of Memphis (Rob Giampietro, Justin Beal, 2009), Catalogtree (Jeremy Jansen, 2008), We Would Come to doubt everything. And almost everyone would come to doubt (Wytske van Keulen, 2008), Political Artist (Rebecca Stephany, 2009) ou publicações periódicas como a Fucking Good Art (Episode Publishers), entendemos como a um projecto editorial estão associadas outras identidades (críticas, curatoriais, pedagógicas, comerciais, ideológicas) que comunicam com aquela formando pequenas comunidades, culturalmente activas, produtoras de novas “diagonais politicas”, geradoras do que Toni Negri chama de micro-espaços biopolíticos.
Em que medida uma descrição do panorama internacional da edição independente se ajusta ao que se passa em Portugal? Ao visitarmos a última edição da feira do livro de Lisboa, facilmente identificamos sinais de crise: crise económica que estrangula projectos editorais mais autónomos e ambiciosos (condenados a serem integrados em grandes grupos ou serem relegados a um limiar de inexistência); crise criativa que se revela, desde logo, no paupérrimo design das capas, como se os editores continuassem a acreditar (e a ensinar) que o bom design não interessa ou não vende; crise de identidade das instituições culturais (como a Culturgest e Serralves exemplificam) reflectida nos matérias editados.
Muito poucos são os livros que nos sentimos impelidos a comprar só pela capa, pessoalmente lembro-me de meia dúzia, alguns títulos da Antígona desenhados pela Alfaiataria, da Fenda e da Minotauro desenhados por João Bicker aos quais se podem, eventualmente acrescentar, por ali perdidos, livros desenhados por Barbara Says, GSA Design, Studio Andrew Howard ou Silva!Design.
Em relação às publicações ligadas ao campo da arte e do design, é de esperar que, em Portugal à semelhança do que acontece internacionalmente, as instituições culturais funcionem como editores activos e esclarecidos, criando, através dos catálogos, publicações periódicas e não periódicas, agendas, leaflets, cartazes e outros matérias efémeros, uma identidade cultural da instituição e gerando formas de comunicação que funcionem, igualmente, como formas de intervenção activa nos processos culturais – ao nível da criação e da recepção – contemporâneos.
Relativamente às instituições culturais, somos forçados, na maioria dos casos, a separar o seu papel enquanto programadores e editores da sua estratégia de comunicação. Serralves exemplifica-o bem: é um editor activo embora a qualidade gráfica das publicações seja desequilibrada; por outro lado a qualidade e a coerência identitária (a capacidade de comunicar um projecto cultural através do design) dos materiais de comunicação revelam profundas fragilidades. Na verdade, não creio que exista em Portugal uma grande instituição que assuma, de forma intencional e exigente, um projecto de programação, edição e comunicação. Será, em todo o caso, a Gulbenkian quem estará mais próxima de ter esse projecto e, dentro das instituições mais pequenas, a ZDB. A Culturgest tem sido responsável pela publicação de alguns dos mais interessantes catálogos do mercado português mas os seus materiais de comunicação são insípidos e anónimos. O Museu do Chiado, que em tempos publicou objectos belíssimos (como o catálogo da Revolução Cinética com design de Barbara Says) tem agora uma existência virtual. O MUDE – Museu do Design e da Moda, vem revelando desde o início um desencontro com o design gráfico de boa qualidade, comunicando os seus eventos através de flyers, cartazes e newsletters com grandes carências gráficas e tipográficas. Sem vocação, ou capacidade, para se afirmarem como editores, encontramos na Casa da Música, no Teatro Nacional de S. João ou no Centro Cultural de Vila Flor de Guimarães instituições cuja identidade, estratégia e politicas culturais são transmitidas e perseguidas de forma excelente através do design dos vários objectos impressos.
Paralelamente ao este contexto editorial mainstream, haverá uma “cena alternativa” em Portugal? Recentemente, Sofia Gonçalves (professora na Faculdade de Belas Artes e designer no excelente estúdio de design gráfico Flatland) e Marco Balesteros (designer fundador do estúdio Letra e antigo aluno na Werkplaats Typographie) organizaram na FBAUL o workshop “Samizdat” centrado na fluidificação dos papeis dentro do processo editorial contemporâneo: o designer como autor/editor/produtor; o workshop como uma prática académica que proporciona uma atitude crítica e experimental através da produção colaborativa de conteúdos. No workshop, o contexto do self-publishing era explorado a partir do debate sobre 7 temas: ideologia; arte/publicação; edição/conteúdo; cultura impressa/cultura digital; meta-media; produção; distribuição/audiência/leitor. No final, os projectos comunicavam intenções, em muitos casos, próximas da agenda da Serving Library de Dexter Sinister e do movimento self-publishing contemporâneo.
Se nos recordarmos que, em 2007, a Tate Modern reuniu um conjunto de curadores, críticos, designers e artistas sob o mote das disrupting narratives, tendo esta noção ficado, irremediavelmente entrelaçada a uma série de outras como pós-produção, hibridização, remixologia, participação e performatividade, podemos compreender que as publicações individuais e colectivas geradas no contexto do Samizdat funcionem como “narrativas disruptivas” que nos ajudam a identificar novos modos de produção na arte e design contemporâneos.
Praticamente coincidindo com o workshop, a editora de livros de arte e design Braço de Ferro, criada e gerida por Isabel Carvalho e Pedro Nora, que participou aliás no Samizdat, inaugurava na Rua da Alegria, no Porto, um pequeno espaço, o Navio vazio, apresentado como “local de experimentação editorial a três dimensões”. O último dos projectos acolhido pelo Navio Vazio chamou-se Impossuível e entre 29 de Abril e 30 de Maio proporcionou um debate sobre o campo da edição através das participações de Braço de Ferro, José Bártolo, Mário Moura, Ricardo Nicolau, Voca e Sofia Gonçalves e Marco Balesteros. Acrescente-se que, no contexto do Samizdat, foi feita a apresentação d’ A Estante (um projecto da responsabilidade de Mónica Oliveira, Pedro Proença, Rafael Lourenço e Teresa Lima), uma pequena livraria itinerante composta por uma única estante, na qual podemos encontrar, para além de edições de autor e publicações independentes internacionais, títulos da Braço de Ferro. É fácil perceber como alguns nomes se repetem, o que significa, que dentro do contexto da edição independente – produção, recepção e crítica – se criam comunidades produtoras, como dissemos antes, das tais “diagonais politicas”.
Dentro do panorama editorial independente português, a Braço de Ferro (com um catálogo de 24 publicações de natureza diversa) é um caso exemplar também pela forma como tem contribuído para uma reflexão, transformação e critica das politicas culturais, das instituições, e da própria estrutura de pensamento dos intervenientes culturais (leia-se A Economia do Artista, Isabel Carvalho, Lígia Paz e Pedro Nora, 2010).
Se as publicações de autor – desde fanzines a livros de artista – não são assim tão raras, a raridade reside na capacidade de criar um projecto de edição e de o afirmar dentro de um determinado contexto. Ao nível das publicações periódicas, de lógica e estética mais ou menos DIY, muitas são as que aparecem e logo desaparecem (a interessante Nexus foi um desses casos), outras as que se transmutam dando lugares a novos projectos ou identidades (penso ser, entre outros o caso, da Satélite Internacional, editada pelo colectivo A Língua que está na origem da Braço de Ferro), poucas são as publicações que atingem um inquestionável espaço de consolidação (Nada) e coerência (Voca). As publicações académicas, que podiam jogar aqui um papel importante, sejam ligadas a associações de estudantes ou centros de investigação, não têm revelado capacidade de inovação no nosso campo editorial, à excepção, recentemente, das publicações da ESAD de Matosinhos. Um caso flagrante é a Revista de Comunicação e Linguagens, editada pelo Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens da Universidade Nova de Lisboa e Relógio d’Água, estimulante ao nível dos conteúdos mas desencorajante da leitura pelo seu formato e aspecto gráfico.
Os postos de venda físicos para as publicações de autor são, em Portugal, muito escassos. Em Lisboa, são incontornáveis a Carpe Diem, a Ler Devagar, a Trama, a Matéria Prima e a Bulhosa; no Porto a Inc., a Leitura de Serralves, a Matéria Prima e a Gesto; estas publicações tendem a não chegar ao resto do pais, salvo uma ou duas excepções como a Arquivo em Leiria. Em algumas destas livrarias conseguimos encontrar o livro de Nuno Coelho e Adam Kershaw Uma terra sem gente para gente sem terra, desenhado, escrito e editado pelos autores; a recente edição da Pierre von Kleist de Lisboa, Cidade Triste e Alegre; as edições da Chroma, editora independente sediada em Londres à qual está ligado André Cepeda; alguns números da Big Odes; livros de artista editados pela Inc.; publicações da Imprensa Canalha e da Oficina do Cego e uma série de outras publicações de espírito zine com o selo da Asa Negra, da Arga Varga, da Averno, da Associação Chili Com Carne ou da editora Mula Alada. A, já referida, livraria itinerante A Estante, com um catálogo de cerca de uma centena de títulos, para além de, gradualmente, se afirmar com uma referência enquanto posto físico de venda de publicações independentes funciona como uma microtopia, para usar a expressão de Bourriaud, um espaço relacional.
A Oficina do Cego – Associação de Artes Gráficas, projecto dinamizado pelo ilustrador José Feitor da Imprensa Canalha, é um bom exemplo da existência de uma “cena alternativa” no campo da edição em Portugal e do seu modelo de funcionamento. A Oficina do Cego recupera, parcialmente, recursos e fundamentos da antiga Oficina Tipográfica, Calcográfica e Literária do Arco do Cego, activa na passagem do século XVIII para o século XIX, que conjugava meios necessários à pré-impressão, impressão e pós-impressão. A exigência do seu plano editorial deu origem à criação da Aula de Gravura, um espaço de formação onde se aprendia fazendo. A Oficina do Cego visa recuperar esse papel, actualizando-o no contexto contemporâneo, de responder à necessidade de juntar esforços no domínio das artes gráficas de carácter autoral, criando uma plataforma capaz de reunir meios, recursos, conhecimentos e motivações que através da edição, do seu ensino, experimentação, critica e produção, contribua activamente para a transformação cultural.
A estas práticas – colaborativas, participativas e abertas – chamei, num outro texto, de práticas de vanguarda do design contemporâneo. Olhando para o campo editorial português não tenho dúvidas acerca da existência de um espaço de retaguarda e de um espaço de vanguarda, de um contexto que procura a sua legitimação e de um contexto que procura a sua transformação. Por isso, apesar das limitações e resistências, falar em edição independente em Portugal implica seguramente mais do que evocar uma possibilidade.
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