DE REGRESSO AO MEU ESTÚDIO DE DESIGN DOS ANOS 80
Tudo mudou, para nós, em Abril de 1974. Por esses dias, estava Sebastião Rodrigues empenhado nos seus trabalhos para o Banco de Fomento Nacional, quando se ouviu Paulo de Carvalho a cantar E Depois do Adeus, e uma canção, belissimamente orquestrada, lembrando Gainsbourg, desencadeava uma revolução política e cultural.
Um ano antes, por ocasião da 2ª Exposição do Design Português (FIL, 10-22 Março), organizada por Sena da Silva, havia-se reclamado para o Design “a responsabilidade de dar resposta a problemas sociais sérios”, numa espécie de manifesto informal que envolvia, assumidamente, uma tomada de posição política.
Embora os anos de 1960 e início de 1970 tenham permitido o desenvolvimento de trabalho de design de vanguarda em Portugal (penso em Roberto Nobre, Manuel Rodrigues, Sebastião Rodrigues ou Victor Palla), claramente condicionaram e, em grande medida, adiaram um debate cultural que apenas se fez após 74 (ou se fez episodicamente nas páginas da Colóquio e de um ou outro jornal, ou se fez no estrangeiro como a KWY bem exemplifica).
Em surdina, uma verdadeira revolução cultural, nas artes e no design português, ia ganhando forma, sobretudo a partir do final de 1972 na sequência do impacto gerado pela 5ª Documenta de Kassel, cuja recensão em Portugal (Ernesto de Sousa, E.M. Castro, Rui Mário Gonçalves, José Augusto França) foi considerável. Creio que o grande debate - que envolvia nomeadamente: a questão dos limites da modernidade e a reflexão sobre as novas práticas contemporâneas redefinidoras da produção e da recepção cultural; o debate sobre a “alta” e a “baixa” cultura, o confronto entre a erudição e o “saber popular”; o trabalho hermenêutico sobre as linhas de transformação da actividade artística e projectual em Portugal; as questões da forma e da linguagem na transformação da actividade cultural; a criação “consciente das situações”, ou seja, o debate sobre o carácter politico e social da intervenção artística; enfim, o debate sobre a “experimentação” e os “media” – se inicia efectivamente em 1972 (um ano antes, na 1ª Exposição de Design Português a questão dominante, provincianamente colocada, era a da “utilidade”) e que culmina em dois acontecimentos marcantes: Alternativa Zero de 1977 (design da exposição e cartaz de Carlos Gentil-Homem e estudo gráfico para o catálogo de João Melo) onde participaram Helena Almeida, E.M. de Mello e Castro, Robin Fior, Ernesto de Sousa, Sena da Silva, Ana Hatherly, entre muitos outros; Depois do Modernismo de 1982, organizado por Cerveira Pinto, Leonel Moura, Carlos Zíngaro, Michel Pereira e Nuno Carinhas.
Depois do Modernismo assumia-se como o formulário de “cinco pertinentes questões”: Saber até onde a “modernidade” esgotou, ou não, a sua energia avassaladora e se resume hoje a um conceito vazio de conteúdo, pronto a ser utilizado para significar tudo e nada; Saber se em Portugal têm lugar formas de expressão artística que possam integrar a amplitude e ambiguidade de uma noção como é a pós-modernidade; Saber se é possível estabelecer pontes de entendimento entre campos diversos, frequentemente afastados entre si, por acção dos mais diversos mecanismos sociais, partindo do pressuposto de que tanto o alinhamento académico como a inovação a todo o custo não constituem parâmetros aceitáveis para nenhuma das artes em presença; Saber se os fragmentos daí reunidos poderão ajudar a delinear, não uma tendência geral, mas um estado de espírito particular; Enfim, saber onde podemos estar quando tudo leva a crer que já não estamos em parte alguma.
Nesse mesmo ano de 82, a Associação Portuguesa de Designers, dirigida pelo esclarecido Sena da Silva, promovia a exposição Design & Circunstância, creio que o melhor da exposição acabou por ser o cartaz desenhado por Sebastião Rodrigues que nesse mesmo ano apresenta o livro Cozinha Tradicional Portuguesa de Maria de Lourdes Modesto e o interessante desdobrável O Lugar do Design para a APD.
Se num certo sentido no contexto do Portugal democrático, o design renasce, enfrentando consequentemente várias fases até chegar à maturidade, e se sob esta perspectiva há inclusivamente alguns retrocessos em termos de cultura do design português relativamente aos anos 40 da APA (Bernardo Marques, Kradolfer, Manuel Lapa, Paulo Ferreira, Maria Keil, José Rocha, Jorge Matos Chaves), também é verdade que, deste renascimento, surge uma nova linguagem formal associada a uma nova compreensão cultural que perpassa pelas obras de Espiga Pinto, Tomás de Figueiredo, Dario Alves, Jorge Afonso, Aurelindo Ceia, Robin Fior, João Machado, João Nunes e Henrique Cayatte.
Dez anos é tempo suficiente para, de qualquer década, se puder dizer que nada ficou como dantes. No final de 1981, os anos 80 já haviam levado Jean-Paul Sartre, John Lennon, Marshall McLuhan, Oskar Kokochka e Marcel Breur e trazido a disquete e o CD, o primeiro Apple e o MS-DOS, a SIDA e a MTV, Reagan na presidência dos EUA e o início do movimento polaco Solidariedade, liderado por Lech Walesa (o logo for a desenhado por Jerry Janiszewski). Do que se seguiu é difícil fazer resenha breve: Tomás Taveira projecta o complexo das Amoreiras (1980), Neville Brody torna-se director artístico da Face (81), é criada a Memphis (81), Wozencroft cria a Touch (82), Sebastião Rodrigues publica trabalhos no Who’s Who in Graphic Arts no mesmo ano em que Manuel Reis da Loja da Atalaia abre o Frágil e renova a vida cultural do Bairro Alto (82), Paul Rand redesenha o logo da IBM (82), Ridley Scott realiza Blade Runner (82), Vaughan Oliver começa a trabalhar para a 4AD (83), a revista Time nomeia o Computador como Man of The Year de 83, nasce a Émigré no mesmo ano em que Bob Geldof promove o Live Aid (84), muita coisa, como se vê, e ainda não se chegamos a meio dos anos 80.
Os anos 80 – esse tempo que “nunca mais acaba de começar” – terminaram, pelo menos no calendário, há dezoito anos. Retrospectivamente, consigo reconhecer que as causas que motivaram em mim algumas transformações individuais motivaram, igualmente, uma série de transformações colectivas e disciplinares: vivemos a contas com a herança deixada pelos anos 80 mesmo que essa não seja a única herança a contas com a qual vivemos.
Foi também por herança, esta familiar, que no início dos anos 80 tive a primeira experiência do que é um estúdio de design. Terá sido a forte impressão que esse espaço e o que nele habitava – objectos, cheiros, sons – causou sobre mim que me levou a pensá-lo, decorrência natural do “estar atento” à particular coreografia que , então, se encenava num estúdio (ou pelo menos “naquele” estúdio) de design.
Há uma compreensão das coisas que parece exigir o nosso afastamento em relação a elas; precisei de sair dos anos 80 para deles ganhar outra forma de reconhecimento, distanciado, fornecido essencialmente pela leitura de reflexões sobre os 80 denunciando neles o neo-barroquismo, o protagonismo do simulacro (uma certa “realidade da ilusão”), o apogeu da visibilidade, a tentação de uma comunicação imediata e sensível. Não tenho dúvidas que as “razões” que me levaram a valorizar o conhecimento indirecto dos anos 80 sobre o conhecimento que efectivamente deles tive, são “razões” que caracterizam a própria época.
Para mim, que entrei na década com menos de 10 anos, os anos 80 foram o tempo da descoberta de três “linguagens” que se assumiram, desde logo, como três formas de paixão: a dança – descoberta da extraordinária “linguagem do corpo” através de Pina Bausch, de Anne Teresa de Keersmaeker, Jean Claude Gallota e o Teatro-Dança europeu que, mais a norte, era Teatro-Físico como o D.V.8 bem o representavam); a música – descoberta do poder do som e do silêncio, do ruído e dos harmónicos, do prazer, adolescentemente melómano, de descobrir, de comprar, de ouvir; e finalmente, o design – a descoberta da comunicação enquanto acção e do não-verbal como meio de construção de uma ordem que nos integra e define.
O que havia afinal nesse estúdio de design dos anos 80? Vou-me limitar aquilo que vos posso contar (como em qualquer “memória” o que se torna público é apenas uma parte).
No estúdio de design dos anos 80, o dia começava fazendo-se três gestos: ligar o gira-discos , ligar a Waxer e, finalmente, fazer café.
Fig. 1 A Velha Waxer.
A velha Waxer “demorava a aquecer” mas era imprescindível, a música tornava-se, com frequência, “silenciosa”, embrenhados no trabalhos dela não nos apercebiamos até que, subreptícia, se tornava presente quando dela mais precisávamos; do café (que não bebia) recordo o cheiro misturado com o do tabáco (que não fumava), em particular, o aroma perfumado de uns cigarros de cravinho absolutamente fabulosos.
Noutra ocasião, gostaria de falar do “método” de trabalho e das “visões” do design a partir deste mesmo estúdio dos anos 80. Por agora, nostalgicamente, recordo os instrumentos fundamentais do estúdio:
Fig. 2/4 Antes do Illustrator não era fácil desenhar elípses mas havia ajudas (das réguas ao elipsógrafo).
Fig. 5 Régua para desenhar tipos feita pela Haberule.
Fig. 6 Compasso Staedtler.
Fig.7 Acu Arc, sempre que o compasso não é suficiente.
Fig. 8 Caneta Radiograph, muito útil...
Fig. 9 ...mas é necessário seguir as instruções!
Fig. 10 Os imprescindíveis livros de tipos, como os de Walter Foster por exemplo.
Fig. 11 O X-Acto, claro.
Fig. 12 "Thinner dispenser", difícil passar sem ele mas assustador para os fumadores!
Fig. 13 Escova Iwata, usava-a para acabamentos.
Fig. 14 Fixadores...
Fig. 15/17 ... e uma série de outras coisas.
Fig. 18 e segs. Polaroid para registo e visualização.
Fig. 21 e segs. E muitas outras coisas fundamentais!
Fig. 24 Até que a revolução chegou, em 1985 (o melhor ano da 4AD), eu tinha 13 anos ele tinha 128k de memoria, 8mhz processador e ecrã de 9’’, um espanto!
Wednesday, June 04, 2008
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- REACTOR
- REACTOR é um blogue sobre cultura do design de José Bártolo (CV). Facebook. e-mail: reactor.blog@gmail.com
3 comments:
uau!...
Para mim os melhores anos da 4Ad ainda são 1988/89 (poderá ter a ver com a diferença de idade) mas obrigado por este exercício de revisitação da memória que por vezes pensamos perdida ou apenas longínqua. São sempre uma ajuda para nos lembrarmos—pelo menos—o que é que andamos por aqui a fazer.
luís
Fiquei maravilhado pelo regresso ao
passado e fez-me lembrar que passei
pelo processo gráfico manual e deu-me uma nostalgia muito grande.
Reviveu-me os fotolitos, a montagem em papel milimetrico, a Repromaster
para fotografar, ampliar manualmente, a passagem para chapa, as maquinas, etc.
O 1º Mac foi mas não tenho a certeza o LC23 um quadrado com 12 polegadas
que ja tinha a capacidade de suportar o photoshop 2.0 (1995).
Ou seja parabens e continuação do blog que é fantastico
Manuel Gonzaga
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