Tuesday, July 07, 2009
O ANJO DA HISTÓRIA
ARTE E CONDIÇÃO CONTEMPORÂNEA
“Quem fala e quem age? É sempre uma multiplicidade, mesmo na pessoa que fala ou que age. Somos todos grupúsculos. Já não há representação, há apenas acção, acção de teoria, acção de prática em relações de transição ou de rede.”
Gilles Deleuze
Pensar a arte contemporânea (ou, como o enuncia John Rajchman, coloca-la como problema) é actualmente indissociável de uma reflexão sobre as “ideias de arte”, num contexto onde a “re-esteticização do pensamento” e a reinvenção das ideias estéticas se encontram e, porventura, coincidem.
A principal pedra-de-toque da condição contemporânea da arte corresponde, curiosamente, a um esforço de pensar o lugar da arte e do artista, renovando a atenção dada à questão da produção (tal como colocada por Walter Benjamin) contextualizada pela afectação de diversas forças, conflagradas, que se interpenetram e modificam reciprocamente: a pressão hegemónica da globalização, face a uma crescente onda de diferenciação cultural/ a pressão hegemónica da globalização pelo controlo do tempo, diante da proliferação de temporalidades assíncronas; a intensificação da desigualdade entre nações, regiões, povos, classes e indivíduos, desigualdade que ameaça horizontes de emancipação; a difícil (e por vezes conflituosa) coexistência de comunidades de conhecimentos especializados mas sem acesso umas às outras, reflectindo uma situação na qual a acção e a comunicação são potencialmente espontâneas e, no entanto, necessitam de ser mediadas; a crise das instituições internacionais como mediadores políticos e económicos (ONU, IMF, Banco Mundial); o aprofundamento das contradições entre economias reguladas e coercivas e economias desreguladas e ilegais; a proliferação de movimentos de protesto e redes sociais que funcionam como alternativas a ausência de um mediador público. Perante este quadro, e no interior dele, tornaram-se progressivamente mais nítidos e convencionais os processos e modelos alternativos ligados à prática e teoria artística, renovando a noção do artista como produtor (indelevelmente marcada por estratégias de autoria colectiva indissociáveis de processos de politica directa), através de uma alteração do uso dos objectos, das formas e do espaço social e politico (do mundo) a que Nicolas Bourriaud chama de pós-produção (1).
Uma leitura benjaminiana do conceito de pós-produção não deixa de ser desencantadora. Para Bourriaud à arte contemporânea não resta senão remisturar (2) as ruínas do que desabou (meios mortos, utopias vencidas, ideologias em crise). Ao artista caberia em sorte um destino semelhante ao do Angelus Novus. E neste ponto, Bourriaud e Terry Smith parecem coincidir: na condição contemporânea o artista é o anjo da história.
É bem conhecida a descrição que Walter Benjamin faz do quadro Angelus Novus de Paul Klee, a descrição do anjo da história. O anjo da história contempla, desamparado e impotente, a acumulação de ruínas e sofrimento sob o seu corpo. Gostaria de ficar, de redimindo-a criar raízes na catástrofe e nela acordar os mortos e reunir os vencidos, mas a sua vontade foi contrariada pela força que o obriga a avançar, inexoravelmente, para o futuro. O seu excesso de lucidez combina-se com um défice de eficácia. Aquilo que conhece bem e que podia transformar torna-se-lhe estranho e, pelo contrario, entrega-se sem condições aquilo que desconhece e que recebe de costas voltadas. Assim, o passado é um relato e nunca um recurso, nunca uma força capaz de, irrompendo num momento de perigo, vir ao encontro dos vencidos.
Para Benjamin, “Articular o passado historicamente não significa reconhecê-lo ‘como verdadeiramente foi’. Significa apoderarmo-nos de uma memoria tal como ela relampeja num momento de perigo.” Entramos no futuro, agarrados ao que nos liga ao passado, uma memoria evocada num momento de perigo. É isto que significa redimir o passado, despertar uma memoria, evocadora de outros que, como nós, inconformados como nós, temerosos como nós, sentindo-se como nós partilhando de uma herança que outros, antes de nós, deixaram e nela erigir o “princípio esperança” que nos faz entrar no futuro narrando a história.
Segundo a tradição popular, é desaconselhável contar os sonhos de barriga vazia. Nesse estado, mesmo que estejamos em vigília, permanecemos ainda sob o domínio do sonho. Aquela que narra o seu sonho deve garantir, como condição da eficácia e sentido da narração, a sua plena lucidez. Para Walter Benjamin, narrar o sonho é uma forma de o realizar. A narração, sob certas condições, tem esse valor produtivo. Seja qual for o seu conteúdo a narrativa reconstrói o estado e o sentido do que narra, podendo projecta-lo, tornando-o actual. Neste sentido, a verdadeira narrativa histórica, discursificando a tradição (certos objectos do passado ou do presente) é susceptível de ser uma narrativa revolucionária, dando lugar a uma história do futuro (3).
John Rajchaman, sintetiza em três teses fundamentais a condição da arte contemporânea: Contemporary art is post-medium art; contemporary ar tis art of the globalization of art and its institutions; contemporary ar tis art without transgression (4) . Esta última tese, defende em particular, que a renovação das “ideias de arte” se dá no interior das instituições (cujo carácter se torna progressivamente mais difuso, ultrapassando o espaço físico de uma instituição) e já não de fora e, muito menos, contra as instituições. Este status quo provoca a anulação de uma linha de fronteira central para o reconhecimento do papel produtivo da arte, no sentido de Benjamin, ou para o reconhecimento do sistema de valores da arte, no sentido de Broch, a anulação da fronteira entre vanguarda e retaguarda. Integrada num quadro de vanguarda permanente, a arte contemporânea é, literalmente, pós-vanguardista ou, na visão de Bourriaud, pós-produtivista. E, finalmente, é uma arte distópica que já não pode, com sentido, ser perspectivada à luz do conflito entre utopia e ideologia.
É conhecida a descrição da “polaridade entre ideologia e utopia” feita por Paul Ricoeur: “Tal como a ideologia opera a três níveis – distorção, legitimação e identificação – também a utopia funciona a três níveis. Primeiro, onde a ideologia é distorção, a utopia é o imaginário – o completamente irrealizável (...) segundo, onde a ideologia é legitimação, a utopia é uma alternativa ao poder presente (...) A um terceiro nível, tal como a melhor função da ideologia é preservar a identidade de uma pessoa ou grupo, a melhor função da utopia é a exploração do possível” (5).
Este confronto da arte com as ideologias, o esforço da produção artista renovar as instituições e formas de poder, terá tido o seu ponto de crise – de simultânea dispersão de formas contra-culturais de intervenção artística e de evidenciação da sua ineficácia – nas últimas décadas do Século XX. Certo que, desde o final da década de 1920, se instala uma consciência, juntos dos artistas de vanguarda revolucionários da perda do combate travado face à crescente concentração e legitimação dos poderes de retaguarda. Esta relação, entre arte e poder, é assim definida por Igor Golomstock:
“1. O estado declara que a arte (e a cultura no seu conjunto) é uma arma ideológica e um instrumento de luta ao serviço do poder; 2. O estado adquire o monopólio de toda a manifestação da vida artística do pais; 3. O estado constrói um aparelho exaustivo para controlar e dirigir a arte; 4. Entre a multiplicidade dos movimentos artísticos existentes, o estado escolhe somente um, sempre o mais conservador, aquele que melhor responde às suas necessidades, e declara-o oficial e obrigatório; 5. Enfim, o estado declara guerra sem mercê a todos os estilos e movimentos não-oficiais, decretando que eles são reaccionários e hostis à classe, à raça, ao povo, ao partido ou ao Estado, à humanidade, ao progresso social ou artístico, etc.” (6).
No actual quadro de acção sub-política (7) , claramente distinto daquele que Golomstock descreve, qual o papel do artísta? Qual o seu “estatuto produtivo”? Em O Autor Como Produtor, Benjamin recorre a Brecht para defender a ideia de que a produção cultural deve gerar trabalhos que “não devem ser tanto vivências pessoais (ter carácter de obra) mas antes ser orientados para a utilização (transformação) de certas instâncias e instituições” sublinhando a diferença entre “o simples fornecer de um aparelho de produção e a sua transformação”. O objectivo é tornar “os leitores ou espectadores em colaboradores” desse processo de transformação social (8).
O que se identifica, em projectos tão diversos como os shared spaces de Ben Hamilton-Baillie ou no movimento Bubble Project, é que os métodos utilizados para renovar a participação activa do design na política são consistentes com as convenções da vanguarda modernista: confronto com as estruturas sociais vigentes e transformação das contradições do quotidiano na matéria-prima de criação projectual. Contudo, nestes projectos contemporâneos assistimos à definição de novas estratégias, visando tornar os projectos mais colaborativos, estratégias que indiciam uma intenção, politicamente pragmática, de converter, cooptar e criticar as instituições a partir de dentro, e já não de uma forma distanciada. Ao modelo institucional vigente, a acção de vanguarda não opõe agora uma utopia alternativa, de transformação global da sociedade, mas antes uma acção distópica que procura produzir, localmente, transformações efectivas na organização social.
A passagem do artista da posição de autor para a posição de colaborador na construção do conhecimento social implica, porém, diversas modificações do próprio modo de se entender a prática da arte:
Em primeiro lugar, actualizando-se a prática da arte numa sociedade plural e multicultural, a arte não pode ser conduzido por uma teoria mas exige antes uma “prática de tradução” que torne as diferentes acções mutuamente inteligíveis e permita aos “actores sociais” dialogarem sobre as opressões a que resistem e as aspirações que os animam. É por via da tradução e do que, segundo a expressão de Boaventura Sousa Santos, podemos designar de “hermenêutica diatópica” que uma necessidade, uma aspiração, uma prática numa dada cultura pode ser tornada compreensível e inteligível para outra cultura;
Em segundo lugar exige uma transformação do quadro epistemológico da arte, a passagem de um modelo de peritagem para um modelo de conhecimento edificante, passagem através da qual o criador, quer o artista quer, sobretudo, o designer deixa de ser reconhecido como “perito” ou “especialista” a quem compete dar resposta à necessidade de um cliente ou consumidor (esquema produtor/consumidor) para passar a ser reconhecido como um “agente social crítico” que colabora activamente, e no exercício das suas competências, com os seus parceiros não-designers (ou não-artistas) na procura de uma transformação efectiva de determinados aspectos da realidade. Designer e não-designer funcionam, dentro deste modelo, como “parceiros epistémicos” na construção política e social, devendo o designer assumir uma “objectividade forte”, para usar a expressão de Sandra Harding, que não convida à neutralidade, objectividade que permite dar conta eficazmente das diferentes e porventura contraditórias perspectivas, posições, motivações, que se confrontam numa dada situação social, que permite, numa palavra, ao designer o exercício da mediação.
Em terceiro lugar exige uma alteração da própria estratégia de acção, o que pode ser formulado falando de uma passagem da acção conformista para a acção emancipatória. A ideia, contemporânea, de “arte relacional” e “design relacional” – num sentido próximo do sentido da “estética relacional” de Bourriad – recupera a ideia e a prática da transformação social emancipatória. O já referido Bubble Project é disso um exemplo; perante o carácter ditatorial dos mass media contemporâneos, o nosso protagonismo como emissores é marcadamente limitado. Mas se não temos controlo sobre a construção da mensagem podemos assumir um maior controlo sobre a sua recepção, podemo-nos tornar receptores críticos e activos e, dessa forma, localmente subverter as mensagens globais. Os designers do The Bubble Project não são “produtores de conteúdos” são “instauradores de discursividade”, para usar a expressão de Foucault, catalisadores.
A arte contemporânea visa, operando no interior dos processos ideológicos (no sentido de políticos), tornar esses lugares quotidianos em heterotopias. A obra de arte contemporânea está nos antípodas do discurso politico utópico. O que caracteriza o discurso politico utópico é a enunciação de uma história do futuro. Essa narrativa do possível, consiste no entusiasmo suscitado pelo esboço de um “princípio esperança”, pelo esboço de um estado histórico, virtual, que supere a infelicidade daquela que foi até agora a história humana, e pela simultânea remissão desta história ao estatuto precário de uma fase provisória e superável. O que caracteriza a arte contemporânea, na sua coincidência com acções de politica directa, é a enunciação de uma alternativa à história do presente. Se o artista é o anjo da história, actualmente, ele parece contrariar o destino do Angelus Novus de Klee. Resistindo ao impulso que o leva para a frente, afastando-o das ruínas que, à medida que se afasta, crescem aos seus pés, ele resiste permanecendo neste tempo. Agora, é no presente, e já não no futuro, que se esboça um “princípio de esperança”.
Notas:
1. Nicolas Bourriaud, Postproduction, Lukas&Sternberg, New York, 2002.
2. Como refere Bourriaud, “Since the early nineties, an ever increasing number of artworks have been created on the basis of preexisting works: more and more artists interpret, reproduce, re-exhibit, ou use works made by others or available cultural products.”. Cf. Idem, Ibidem, pág. 6
3. Leia-se, a este propósito o ensaio de Terry Eagleton sobre Benjamin, "Walter Benjamin or Towards a Revolutionary Criticism".
4. John Rajchaman, Thinking in Contemporary Art, Sternberg Press, 2007.
6. Paul Riceur, Ideologia e Utopia, Lisboa, 1991, pp. 501-502
7. Igor Golomstock, L’Art Totalitaire, Édition Carré, Paris, 1991, pp. 12-13.
8. A ideia de “acção sub-política” é trabalhada por Ulrich Beck. Veja-se Ulrich Beck, The Reinvention of Politics, Cambridge, Polity, 1997.
9. Walter Benjamin, A Modernidade, Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, pág. 282.
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