PARA UMA NOVA IMAGEM DA JOALHARIA CONTEMPORÂNEA
Ana Campos*
Na primeira semana deste mês de Julho, a ASAE fez uma nova investida.
Desta vez, na loja da Fundação de Serralves, o alvo foram jóias de autores contemporâneos Portugueses. À luz da Lei Portuguesa, a Joalharia Contemporânea é ilegítima, tal como os lugares que a vendam.
Haverá apenas uma lacuna legal, ou também ausência de informação sobre como, nesta área, se procede noutros países da UE? Daqui resulta que os diplomados pelos vários cursos de Joalharia existentes no país, superiormente homologados pelo Ministério da Educação, pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e/ou pelo Ministério do Trabalho, não podem exercer a profissão de “Joalheiro”. A estes juntam-se diplomados por outras escolas que, como entidades independentes, se esforçam por formar autores com competências técnicas e artísticas e que têm, igualmente, vindo a ser reconhecidos nacional e internacionalmente.
Nenhum destes diplomados tem acesso a licença de marca das Contrastarias Portuguesas e aprovação para tal da INCM (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, S. A), sociedade anónima de capitais públicos, tutelada pela Presidência do Conselho de Ministros de acordo com o Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado, Relatório Sectorial Final, Janeiro de 2006.
Segundo a mesma lei, os artefactos de joalharia contemporânea não se podem vender em Ourivesarias, nem em lojas de Museus, nem é possível a existência devidamente legalizada de Galerias de Arte e Design de Joalharia, tal como noutros países da UE. Cabe à ASAE fazer cumprir a lei, vigiar, confiscar, apreender.
Que se passa, no panorama internacional, com a Joalharia Contemporânea?
Nos últimos anos, a joalharia tem-se revelado como área largamente atractiva entre as actividades criativas. Por toda o mundo cresce o número de alunos inscritos em escolas e universidades, cuja rede multiplica intercâmbios internacionais. Fortalecem-se galerias com algumas décadas, transformando-se em lugares simbólicos, já que são também pontos de encontro internacionais de joalheiros. Surgem novas galerias, proliferam as plataformas virtuais. As grandes feiras, rodeadas de exposições de artistas-joalheiros todo o mundo, transformam as cidades em lugares de confluência e revitalização anual desta larga rede de joalheiros. São momentos de apresentação de jovens talentos nas diferentes vertentes artísticas, no design e nas galerias de arte e de joalharia que aí funcionam, de ensaio perante a crítica da joalharia, de encontro ou reencontro com joalheiros de nome reconhecido, de competição entre todos para emergir.
Neste panorama internacional, os joalheiros Portugueses não são excepção. Muitos nomes sobressaem, tal como a qualidade no seu conjunto. Interagem nas mesmas plataformas virtuais, mostram trabalho em galerias internacionais e as escolas incluem-se na mesma rede global.
Entretanto, como são compreendidos e recebidos em Portugal os autores, os artistas-joalheiros e os designers?
Esta questão exige algum recuo no tempo e, no mínimo, uma passagem por alguns países Europeus. Nas décadas de 1960/1970, na Holanda, em Inglaterra e na Alemanha o panorama da joalharia transformava-se. As jóias há muito tinham deixado de ser consideradas fruto de artes aprendidas nas bancas oficinais ou em escolas onde apenas se ensinavam técnicas. Emergia a Studio Jewellery, ou seja, de jóias concedidas em domínio do projecto artístico. Demarcava-se uma vanguarda experimentalista – a Nova Joalharia – que introduziu propostas irreverentes no campo artístico, contestando conceitos burgueses e circuitos comerciais tradicionais, passando a expor em galerias de arte da joalharia. O ‘belo’ enquanto conceito estético conservador, e materiais como o ouro, as pedras, foram banidos ou associados a outros para acentuar a provocação. Dominavam materiais ditos ‘pobres’, como o papel, os tecidos, os polímeros ou até mesmo matérias mais efémeras, como palha ou massa alimentar. Os novos materiais permitiam, então, redimensionar as jóias.
Estas atitudes são contemporâneas de outros movimentos de libertação que procuravam inovação, mas também aceitabilidade social: os estudantes no Maio 68, os mulheres, gays.
Também é possível estabelecer paralelos com a Arte Povera. Esta denominação surgiu em Itália, no final da década de 1960, num momento em que a Europa e os Estados Unidos viveram momentos sócio-históricos que conduziram a atitudes artísticas radicais. Estes artistas posicionavam-se contra valores estabelecidos por instituições governamentais, pela cultura, pela indústria e mesmo perguntando-se se a arte, como expressão individual, ainda teria uma razão ética para existir. Representou uma atitude de emancipação relativamente à Arte Italiana Renascentista, cujas convenções herdaram e, também, a inscrição na visão do mundo, revolucionária, que então se vivia e generalizava a muitos sectores.
Entretanto, a energia expansiva que se passou a observar no terreno da joalharia contaminou muitos países para além da Europa. Chegou aos Estados Unidos, à Austrália, ao Japão. A Nova Joalharia constituiu um mainstream que pertence, hoje, à história da arte e do design. Na Joalharia Contemporânea, deixou rastos, maioritariamente visíveis no recurso à utilização de uma diversidade de materiais e tecnologias que se constituíram como um dos meios mais relevantes para dar corpo a conceitos e à contaminação da joalharia por outras orientações artísticas, fazendo surgir expressões mestiças e diálogos configurativos.
Portugal incluiu-se, também. Em Lisboa, no Ar.Co, surgiu em 1973 o primeiro curso de joalharia com moldes semelhantes. Esta escola, precursora e com reconhecimento internacional, formou um modo de pensar a joalharia que contaminou outras que foram surgindo, salientando-se o Contacto Directo, fundado em 1988. Na ESAD de Matosinhos, foi criado o curso de Artes/Joalharia em 1987, até hoje o único que tem nível de Licenciatura. Um Segundo Ciclo do Ensino Superior, com Estudos Pós-graduados em Design de Joalharia, conduzem ao Mestrado em Design da ESAD. A Universidade Católica do Porto tem também em funcionamento um Mestrado em Design de Ourivesaria. A escola Engenho & Arte, as escolas especializadas de ensino artístico Soares dos Reis e António Arroio, foram criando ou actualizando modelos de ensino, bem como o CINDOR, no ensino técnico profissional.
Na maioria destas escolas, o projecto, as tecnologias, as técnicas de joalharia e a teoria inter-relacionam-se numa uma plataforma interdisciplinar de reflexão. Estes aspectos, inerentes ao projecto artístico e do design contemporâneos, são, poderá dizer-se, comuns à prática científica. Assim, das escolas e dos meios académicos saem, anualmente, muitos diplomados com perfis diferentes daqueles que o mundo empresarial conhecia. São os joalheiros contemporâneos, os designers de joalharia, em resumo, os criativos que recorrem a técnicas tradicionais, assim como a materiais e tecnologias contemporâneas para conceber novas interfaces de comunicação.
Os contactos internacionais que se referiram no início, nomeadamente entre escolas, mas também no âmbito das galerias e lojas do sector, bem como plataformas virtuais de apresentação e venda, geraram um processo de significação que produziu efeitos sociolinguísticos. Esta praxis, diluiu a fronteira ourivesaria/joalharia. Em Portugal, adoptou-se a designação “joalharia”, certamente por influência do inglês como língua franca. O mesmo se passou noutros países latinos, onde da palavra “jewellery” resultou joyería, gioielli... Estas denominações referem jóias cujo projecto – concedido em estúdio por designers ou artistas – é também executado pelos próprios autores.
Entretanto, coexistem, no lato panorama da joalharia em geral, os joalheiros e os ourives, segundo a denominação clássica, quer em Portugal, quer noutros países. Não desapareceram, portanto, as antigas profissões goldsmith e silversmith, ou joaillerie, haute joaillerie, orvèvrier, bijoutier.
Se nos colocarmos do lado dos receptores, e aqui incluirmos os organismos legais, os industriais e os consumidores em geral, haverá que pensar, também: a que corresponde a palavra joalharia no imaginário Português e o que contribuirá para dar forma a este preceito que formata a recepção?
Para quem esteja distante do panorama da joalharia contemporânea, o ouro, a platina, as pedras, os ditos materiais preciosos, continuam a ser aqueles com que se executam jóias. Este preceito não é apenas inerente a uma visão burguesa da joalharia. É uma perspectiva ampla, partilhada, inclusivamente, por muitos artistas e designers. A Galeria Tereza Seabra, quando inaugurou em 1993, em Lisboa, organizou a exposição Ilegítimos: Jóias Contemporâneas Portuguesas, para a qual convidou reconhecidos artistas plásticos. Se Cabrita Reis ou Rui Chafes deram, aqui, continuidade à sua obra e incluíram borracha ou ferro, muitos recorram a estes mesmos materiais preciosos que se incluem num imaginário conservador.
Portugal aderiu à Convenção de Viena. Em 1972 ficaram determinados os toques (permilagem de metal precioso contida numa liga). Logo, o vigente Regulamento das Contrastarias Portuguesas descreve as características dos toques, dita regras relativas à conjugação de ligas consignadas entre si, proíbe o recurso a outros metais e omite a utilização de materiais que não sejam pedras ou pérolas. Note-se que existem processos de montagem que não unem os metais por soldadura, permitindo destacá-los, se necessário. Em muitos países Europeus, recorre-se ao aço ou ao titânio onde, por vezes, são montadas pedras, sendo as peças expostas e vendidas lado a lado com peças de ouro. A legislação Portuguesa, talvez não as considere jóias ou, pelo menos, não quer confusões entre metais. Certas ligas orientais, seriam impensáveis em Portugal, como o Mokume Gane, o Shibuichi, o Shakudo. Este Regulamento indica apenas casos específicos, descritos como excepções de conjugação de metais, em que “a diferença de cor permitir facilmente a sua distinção”. Entre estes casos indicam os obsoletos “anéis sinete, que poderão ser de aço, guarnecidos de ouro ou prata na parte superior da mesa e no interior dos aros”.
Estas regras limitam a acção dos criativos. De acordo com o Regulamento das Contrastarias, os artistas-joalheiros não têm direito a licenciamento, nem a uma marca e punção. Também exercem coação sobre os industriais, amedrontam os museus, os galeristas e demais comerciantes que desejam actualizar-se e competir no mercado interno e externo, introduzindo linhas e expressões contemporâneas e alargando a oferta a outros públicos. De facto, segundo o mesmo Regulamento, não se podem vender, pois também não lhes é fácil obter a licença especifica, sobretudo se, lado a lado, no mesmo espaço quiserem vender outros produtos. Por este facto, a ASAE confiscou peças em Serralves. Segundo esta Lei vigente conceito de comércio “retalhista misto” subentende “estabelecimento situado em localidade que não seja cidade” ou “estabelecimento se situe em zona de assinalado desenvolvimento turístico ou em locais de acesso e passagem obrigatória para turistas”. Enfim, ler este Regulamento – a consultar, por exemplo, em www.aorp.pt - é recuar na máquina do tempo, talvez à idade média. E é isto que nós, os professores temos que ensinar nas escolas e universidades...
Mas, é bem sabido entre a massa crítica que, sem criativos, o mercado não se renova.
Vale a pena lembrar, por um lado, que as jóias não são apenas meios materiais, cujo valor circunscreve apenas à vertente económica. As jóias de autores e artistas reconhecidos valem mais do ponto de vista criativo do que pelos materiais utilizados. Por outro lado, tendo em conta a recepção, do ponto de vista antropológico, as jóias, como segunda pele humana, temporária, são mediadores sociais, porque, como sugere Marc Augé, “a própria aparência, como a obra de arte, é uma chamada a testemunhos; exprime um desejo de intercâmbio”. Portanto, as jóias são também meios relacionais que permitem exprimir a identidade do sujeito no espaço público. É por este valor social que as jóias sempre possuíram que, hoje, ainda que impensadamente, cada usuário selecciona a jóia que prefere para elaborar o design da sua imagem personalizada e com ela se apresenta e se inclui no espaço público. Porque a diversidade de grupos sociais é uma realidade contemporânea, os nichos de mercado são igualmente diversos e as apetências vão sucessivamente emergindo. Assim há, cada vez mais, quem prefira jóias de autores e artistas às obsoletas que se vêm nas montras das ourivesarias.
Considerando que a procura dos fruidores é uma realidade e que há criativos com novos perfis, como avançar num enquadramento em que uma Lei – que está em banho-maria há quase quarenta anos – filtra as licenças? Surgiram entretanto propostas de reformulação, diferentes, do PSD e do PCP. Tudo voltou a adormecer. Que interesses há por trás? Ou este sector não tem significado financeiro, razão pela qual o governo dá prioridade a outros assuntos?
Não poderemos aguardar passivamente que a visão da joalharia se altere no imaginário Português. O tempo vai encarregar-se deste papel e, será tanto mais curto quanto melhor os autores, os artistas-joalheiros e designers se derem a conhecer e optimizarem as suas intervenções. De momento, queremos mostrar o que pensamos através de uma petição online para a revisão do Regulamento das Contrastarias Portuguesas. Mas, o ideal seria que o governo olhasse lá para fora, como por cá se diz, para constatar que, em muitos países comunitários, não há contrastaria nem são necessárias licenças para que um museu ou uma galeria venda jóias de artistas.
7 de Julho de 2009
*Ana Campos,
Directora de Ramo do Curso de Artes/Joalharia e Coordenadora da Pós-Graduação em Design de Joalharia da ESAD, Escola Superior de Artes e Design de Matosinhos
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