Friday, September 05, 2008
DESIGN E MAL-ESTAR?
No seu conhecido ensaio Design e Mal-Estar, Daciano da Costa escrevia que “Ao pensar no Design coloca-se imediatamente a questão do desassossego ou mal-estar com alguns indícios de infelicidade. Indícios que quanto mais tentamos compreender e interpretar mais se aprofunda esse mal-estar. Designers inquietos, teóricos e críticos desatentos, produtores (industriais) reticentes e público atónito, são o quadro do mal-estar no e no design.”
Mais do que o reconhecimento do desassossego no Design português, era a defesa do desassossego que Daciano, com pouco eco, fazia há quase vinte anos criticando a desorientação dos designers, a desatenção dos críticos e a reticência dos produtores.
Por essa altura o Design em Portugal conhecia um novo impulso dado pela criação de novas escolas de design (a ESTGAD das Caldas da Rainha em 88; a ESAD de Matosinhos em 89; a ESAD da Fundação Ricardo Espírito Santo em 90; a criação do primeiro mestrado em Design no IDUP em 92), pela esperança associada à criação do Centro Português de Design (em 90), pelo apoio do ICEP ao Design (nomeadamente com a realização desde 86 do Jovem Designer), pela realização de alguns eventos (coma Europália ou o Design Lisboa) e o anunciar de outros (como a Expo). Este contexto contribuiu, sobretudo, para criar mais designers e para desenvolver uma superficial, senão mesmo ilusória, presença disseminada do design, associado cada vez mais a uma esfera de tendência pouco consequente.
A desorientação dos designers (reconhecível quer nos epifenómenos directamente ligados ao suposto milagre económico do cavaquismo como a Novodesign ou a Protodesign, quer na procura delirante de acompanhar o que “está a dar” face à incapacidade de construir uma intenção própria) sendo natural num país onde não há cultura de design e onde o pequeno espaço de produção/divulgação foi rapidamente controlado e centralizado, fez gerar em alguns bem sucedidas estratégias de sobrevivência.
Quanto à desatenção dos críticos, referida por Daciano, a questão é curiosa. A este respeito, há dois eventos que merecem ser considerados: Depois do Modernismo e Experimentadesign. A exposição Depois do Modernismo, organizada em 1983 e envolvendo, entre outros, António Cerveira Pinto (na altura activo crítico em “O Independente” ou Leonel Moura, foi organizada com o objectivo explícito de contestar um sistema crítico dominante (encarnado por José Augusto França), este objectivo de ruptura foi parcialmente alcançado com a afirmação de novos teóricos e nos artistas (Julião Sarmento, Leonel Moura, Cabrita Reis, Ricardo Pais, José Manuel Fernandes), tendo sido elaborados statements em diversas áreas (arte; arquitectura; música; moda; teatro, dança) o design não foi considerado; nas Caldas da Rainha uma galeria (Art Attack), informalmente associada a uma Escola (ESTGAD) desenvolveu uma acção renovadora (apenas comparável à ZDB em Lisboa) das artes visuais e sonoras, muito em torno da acção de João Paulo Feliciano. Feliciano estará também envolvido (em 93) na exposição “Imagens para os anos 90” que à semelhança de “Depois do Modernismo” impõe uma vontade de ruptura com a crítica conotada com os “anos 80” (Alexandre Pomar, José Luís Porfírio, João Pinharanda) impondo também o seu “sistema” e os seus representantes (Carlos Vidal, Miguel Palma, Paulo Mendes, João Louro, João Paulo Feliciano), estranhamente o Design volta a não ser considerado. Em 1999, acontece então a primeira Experimentadesign, dirigida por Marco Sousa Santos (na altura na Protodesign) e Guta Moura Guedes (na altura no atelier Elementos Combinados) e contando com uma equipa de colaboradores que representavam o “novo design” numa perspectiva centralizada em Lisboa (Mário Feliciano, José Viana, Henrique Ralheta, Mário Caeiro, Levina Valentim). O evento revelou uma dinâmica e muito capaz gestora cultural de design portuguesa (Guta Moura Guedes) e tornou evidente a existência de público para exposições, workshops e debates sobre design, mas terá tido pouco impacto ao nível da consolidação de um pensamento crítico sobre design ou na revelação de novos críticos de design (Andrew Howard ou Mário Moura, por exemplo, não estiveram envolvidos na EXD’99).
Sejamos claros, o que surpreende nas palavras de Daciano da Costa não é a caracterização dos críticos como “desatentos” mas o facto dessa caracterização pressupor a existência de críticos de design em Portugal. Honestamente, se eles existiam no início da década de 1990 eu nunca os vi nem os li. É evidente que não há crítica sem objecto, nesta medida ao falar em “críticos desatentos” Daciano evidenciava a existência de objecto sobre o qual um crítico de design poderia escrever; mas também é evidente que não há crítica sem “espaço público de produção”, sem jornais ou revistas onde se possa publicar, sem exposições e sem conferências. Quando a democratização mediática surgiu, cedo começámos a poder ler textos críticos sobre design na blogosfera. O Design Observer inicia-se em Fevereiro de 2003 e, no contexto português, um ano depois surge o Designer X (o primeiro post intitulado “Que fenómeno” é de 20 de Fevereiro) e o The Ressabiator (o primeiro post é de 29 de Março) com o seu primeiro e exemplar parágrafo: “Há pessoas que acham que só vale a pena falar do que corre bem (deve ser por isso que não se fala do design gráfico em Portugal).”
Se nas décadas de 80 ou 90 existia pensamento crítico no Design português (basta pensar nas “esculturas funcionais” do Francisco Rocha) mas não existia crítica (podíamos falar na Page que era uma revista de divulgação sem problematização teórica de certa forma próxima do que é hoje a Blue Design e na Belém que era um objecto de design interessante mas que não tinha conteúdos sobre design), actualmente existe produção crítica (ainda que escassa e confinada quase na totalidade à blogosfera) que pode ser questionada, questionação que é, aliás, tarefa crítica essencial. É estimulante constatar que, nos últimos tempos têm havido projectos (como o da “imagem” da Casa da Música), prémios (como o recentemente conquistado pelo Dino Santos), exposições (como a Gateways) e conferências (como os Personal Views) que foram objecto de recensão crítica. Podemos ainda acrescentar os textos do Frederico Duarte no Público (infelizmente descontinuados) suscitaram alguma reacção (mesmo que, lamentavelmente na sua maioria em surdina), a produção crítica regular do Mário Moura ( e a forma como regularmente suscita comentários - ainda que em menor número do que a pertinência dos textos justificaria - vivos) ou mesmo os textos dispersos (mas sempre inteligentes) do Eduardo Côrte-Real. Para que este contexto crítico se fortaleça era desejável uma maior continuidade da publicação dos textos do Luís Inácio, da Joana Bértholo, da Ana Rainha, da Cristiana Santos ou do Francisco Laranjo cuja reflexão sobre o design é meritória.
Num inteligentíssimo e profundamente irónico ensaio, intitulado “Propedêutica da Humildade”, Abel Barros Baptista escrevia que “uma das causas da extrema permeabilidade da profissão de crítico é a ausência de provas mínimas de acesso. Nem exame, nem estágio, nem orientação por mentor qualificado.” A questão da legitimação do exercício da crítica faz algum sentido. Faz sobretudo sentido questioná-la como procedimento propedêutico a própria definição do exercício da crítica. Fazer crítica significa produzir teoria sobre um determinado objecto em análise e “produzir teoria” significa problematizá-lo no sentido de o clarificar, de o tornar na prática (sim, a teoria é prática) compreensível.
Há actualmente uma tendência para a formalização e doutrinação da actividade crítica. Algum criticismo contemporâneo, procurando impor uma crítica doutrinária, conduz a um resultado, cheio de tiques, potencialmente inócuo e vazio, a que Perniola chama, com acuidade, de “crítica sem teoria”. Não contesto, pelo contrário defendo, que a crítica possa ser ensinada (ou pelo menos estimulada e exercitada pedagogicamente) e que deva ser remunerada e premiada, mas assusta-me quando assisto a um clara “gramatização” da actividade crítica. Arrepia-me, também, a ideia cada vez mais generalizada do crítico como alguém que emite opinião sobre as coisas. É alias tarefa crítica desmontar a doxocracia que habitamos.
Termos todos opinião não só não contribui para uma suposta condição crítica contemporânea como torna mais necessária e exigente a tarefa do crítico: esse que numa época em que é fácil seguir, seja com leal reverência ou com indisfarçada dissimulação, uma ideia existente é capaz de arriscar a construção de uma ideia nova, que resistindo à facilidade da opinião é capaz de um esforço competente de reflexão e, depois, de partilha e discussão. Na teoria como na prática do design é determinante tomar o risco – e claro, saber tomá-lo.
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