REACTOR ENTREVISTA DORINDO CARVALHO
Reactor: Dorindo Carvalho fez a sua formação na António Arroio e, e em 1961, parte para Angola, onde ainda conhece o Cruzeiro Seixas. Como foram esses primeiros anos e que influência é que eles exerceram na sua carreira?
Dorindo Carvalho: A influência foi grande. Direi mesmo que houve em mim uma volta de cento e oitenta graus. Até aí, tinha praticamente vivido num meio familiar bastante fechado. Por várias razões o curso da António Arroio foi só possível fazê-lo à noite. Comecei-o com catorze anos. Antes não se podia entrar num curso nocturno e com mais de doze não se podia entrar num curso diurno. Era assim. Feita a primária, passei pelo menos dois anos ajudando o meu pai em fotografia, o que continuei a fazer, durante o dia, enquanto à noite fazia o curso da António Arroio.
O curso nocturno não era tão intensivo como o de dia. Depois, a estudar de noite e trabalhar de dia noutra área, há menos possibilidade de praticar o que é ensinado e existe mais dificuldade de contactos que permitam abrir caminhos. Assim, tudo o que verdadeiramente aprendi e o que sei foi fruto de uma sensibilidade para saber ver. Posso dizer que não tive mestres nem orientadores.
Terminado o curso em 1958, cumpri o serviço militar obrigatório e, depois de pouco tempo de interregno, fui mobilizado para Angola. Por uma casualidade e pela minha especialidade dentro do exército estive bastante tempo em Luanda. Foi possível então contactar com o meio cultural da altura. Conheci várias pessoas interessantes como o Cruzeiro Seixas. Participei e realizei exposições que proporcionaram que a Fundação Gulbenkian me adquirisse dois trabalhos. Desenhei cenários e figurinos para o Teatro Experimental de Luanda, onde me tornei amigo do director do grupo, Heitor Gomes Teixeira, advogado, ensaísta, professor, por último pertencendo aos quadros da Universidade Nova de Lisboa. Também fez teatro, em Coimbra com o António Pedro e em Lisboa com a Maria Luzia Martins. Heitor Gomes Teixeira, foi particularmente importante para mim porque me abriu horizontes, até então, quase desconhecidos. A tal volta de cento e oitenta graus muito foi devido a ele.
R. : Em 1965 expõe no VII Salão dos Novíssimos organizado pelo SNI. Como é que, nessa altura, o jovem Dorindo se integrava no contexto social, politico e artístico português.
D. C. :Não se pode dizer que tivesse existido uma integração. Não houve mesmo integração. Regressado de Angola há pouco mais de um ano, tornava-se necessário participar em algo. O Salão dos novíssimos foi uma forma de aparecer numa exposição colectiva em Portugal.
R. : Nos seus trabalhos dos anos 1960 é já evidente a influência do Neo-realismo. Recordo-me do Rui Mário Gonçalves que afirmava que "o neo-realismo começou por ser apelo cívico à imediata intervenção política". Como se relacionam estas dimensões (cívica, política, artística) no seu trabalho?
D. C. :Os meus primeiros trabalhos, classificados como neo-realistas não foram realizados sob qualquer formação política ou artística. Foi a representação pessoal do que vi à minha frente: O trabalhador angolano. A sua condição humana fez desenvolver em mim um sentimento, que exprimi plasticamente, talvez numa dimensão cívica, e então, como nada é apolítico, também com uma dimensão quase obrigatoriamente política.
Para reafirmar o que disse está o facto de nos trabalhos apresentados em Luanda alguém ter dito que eles demonstravam influências de Portinari, só que nessa altura, para mim, Portinari era totalmente desconhecido. A partir daí, já de forma pensada, o social, o político e o artístico
se integraram quase sempre em todo o meu trabalho.
R. : É fácil identificar, no seu trabalho gráfico, uma linguagem própria (a utilização da cor; os granulados; a grelha gráfica; o uso da tipografia) com influências que vêm da pintura, da ilustração e do Modernismo gráfico. Quem são as suas grandes referências?
D. C. :Referências, tenho muitas, por certo, mas é difícil individualizá-las. Referências e influências, existem sempre. Há uma atracção naquilo que se vê, que por uma questão de sensibilidade assimilamos e, depois sem dar-mos conta, utilizamos como norma no nosso trabalho. Nenhum artista vive numa ilha deserta, todos têm influências que são decisivas sem se saber por vezes a sua origem. Além de tudo mais, quando gosto de algo que vejo, raramente me importo em saber quem o fez (também porque tenho grande dificuldade em fixar nomes).
O mais importante para mim é o que está feito.
R. : Muito do seu trabalho gráfico foi feito para Editoras, como a Assírio & Alvim e a Diabril, no contexto pós-abril, como foi essa
experiência?
D. C. :Inicialmente pensando numa carreira de pintor, encontrei-me com as dificuldades de sobrevivência. Viver da pintura não era nada fácil
e mesmo agora, continua a não ser. Ou se comercializa a pintura, pintando o que os outros querem, podendo passar trinta e quarenta anos a pintar o mesmo, como acontece em alguns casos, ou se tem que andar muito perto de grupinhos, amiguinhos e em tertúlias. O que nunca foi do meu gosto.
Dentro do desenho gráfico, o que se senti poder dar-me maior liberdade criativa, era nas capas de livros. Pensei que a capa de um livro funcionava como um pequeno quadro, que numa montra de uma livraria teria muito mais visibilidade do que um quadro metido entre as quatro paredes de uma sala de exposições e que é só visto, quase sempre, pelos amigos.
A capa de um livro numa montra tinha, nessa altura, uma função mais pedagógica de que tem hoje. Existiam diferentes concepções gráficas fornecendo vários dados estéticos e tinham a particularidade de identificarem as casa editoras. Hoje, na maioria dos casos, são iguais com o estilo das novas tecnologias. Realizei inicialmente capas livros para as Publicações Europa- América e logo a seguir para os Livros do Brasil, Prelo e outras editoras e para revistas, como por exemplo a Vida Mundial.
Ainda antes de Abril de 74, acompanhei graficamente o nascer da Assírio & Alvim, onde já existia «um espírito de Abril». Pós 25 de Abril a minha participação, foi deveras interessante no projecto da Diabril e na Vida Rural. Referindo-me ainda à pergunta anterior, os nomes que tenho mais presentes, não são nem da área do desenho gráfico, nem da pintura, embora aqui pudesse indicar Bacon ou Adami, mas as minhas referências são mais de carácter humano dada á actividade ligada precisamente a editoras. Algumas mais influentes e amigas do que outras, mas não deixaram de ser influentes. Estou a falar, para além de Heitor Gomes Teixeira e Cruzeiro Seixas de que já referi, de José Gomes Ferreira, Fernando Namora, José Cardoso Pires, Urbano Tavares Rodrigues, José Saramago, David Mourão Ferreira, e tantos mais.
R. : Curiosamente, ao regressar da Venezuela, volta a colaborar muito activamente com a Divisão Editorial do Instituto Piaget?
D. C. :Sim! Foi praticamente o primeiro contacto que tive ao regressar de Venezuela e dada à sua grande quantidade de edições, tenho permanecido quase a tempo completo colaborando com o Instituto Piaget.
R. : O que o levou a partir para a Venezuela e que experiência recorda desse período onde desenvolveu intenso trabalho?
D. C. :A necessidade de conhecer outros horizontes, outros meios no mundo das artes existia desde há muito. Estive quase para ir para Bruxelas, mas não aconteceu. Com a realidade económica existente em 1979 e forçado por questões particulares, aproveitei um contacto com um português radicado na Venezuela e fui até lá, ainda que estivesse, nesse momento, a trabalhar na Televisão e a dar aulas na António Arroio. Não era por certo, o horizonte desejado, mas foi o que consegui. Foi, quase unicamente uma mudança de residência. A actividade continuou a ser a mesma.
Depois de uma curta passagem pela publicidade, foram as capas de livros, a colaboração em jornais e revistas, a pintura e dando aulas de Desenho Gráfico em dois dos mais importantes Institutos de Caracas que ocuparam o meu tempo.
Há muitas histórias para contar quando se é emigrante, mas o que mais importância teve para mim, foi o ter recebido o 1º prémio de desenho do Salão de Aragua em Maracay, pela primeira vez dado a um estrangeiro. Também a criação de um logótipo de uma instituição estatal que foi afixado em toda a Venezuela. Igualmente de interesse, foi o relacionamento com a comunidade portuguesa que possibilitou pertencer à Comissão Organizadora das Comemorações a Fernando Pessoa e que deu origem à formação do Instituto Português de Cultura de Caracas,do qual fui membro fundador e directivo.
R. : Como foi o regresso a Portugal?
D. C. :De certo modo senti-me de novo emigrante. Muita coisa aqui tinha mudado. Nesses quase treze anos que estive fora do país, de 1979 a 1992, para além das mudanças globais houve a mudança proporcionada pela entrada na Europa, com todo o bom e o mau como sabemos. Era um Portugal diferente.
R. : O livro dedicado à sua obra assume, como título, o princípio de Protágoras "O homem é a medida de todas as coisas", que actualidade tem esta máxima nos dias de hoje e como gostaria que os artistas a praticassem?
D. C. : Desde os meus primeiros desenhos em Angola, a dimensão humanista esteve sempre presente.Tal como eu, gostaria que artistas e todos os seres pensantes reflectissem nas palavras de Protágoras que serão sempre actuais, assim o homem seja sempre humano:
O HOMEM É A MEDIDA DE TODAS AS COISAS;
DAS QUE SÃO ENQUANTO SÃO,
DAS QUE NÃO SÃO ENQUANTO NÃO SÃO.
Sunday, October 12, 2008
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