Wednesday, October 29, 2008




REACTOR ENTREVISTA AURELINDO JAIME CEIA



Reactor: O Aurelindo Ceia faz parte de uma geração que eu designo por “Novo Design português” (juntamente com o Dorindo Carvalho, João Machado, Jorge Afonso, Carlos Gentil-Homem) que sucede (em termos cronológicos mas, sobretudo, em termos de opções e intenções formais e sociais) quer à “geração SNI” (Bernardo Marques, Kradolfer, Paulo Ferreira, Manuel Lapa), quer à geração de “transição” (Victor Palla, Sebastião Rodrigues, Sena da Silva). Fale-nos dos seus anos de formação e início de carreira e de como se relacionou com esta herança gráfica portuguesa.

AURELINDO JAIME CEIA: A minha formação é uma coisa um pouco peculiar, onde cabem várias passagens, desde uma deambulação por arquitectura durante um ano e meio, uma viagem a diversas casernas militares com despacho para África durante quase quatro anos, depois artes plásticas nas Belas-Artes, um ano de psicologia no ISPA, até, finalmente, aterrar em Design de Comunicação em 1975 (já um homenzinho, portanto), curso que acabei cinco anos e muitas folhas de Letraset depois.

Como digo algures, o curso na ESBAL dava os primeiros passos e íamos todos, professores e alunos, navegando em ondas improváveis de mares nem sempre conhecidos. Fomos fazendo o curso em conjunto, com as mesmas aflições e as mesmas alegrias, numa relação na altura muito produtiva entre o design, as outras grandes artes e as teorizações exuberantes que a liberdade recente (Abril) nos pedia (agora está tudo muito trancado nos seus quartinhos tristes de Bolonha…).
Em Portalegre, onde nasci, chegavam-nos ecos, distantes mas concretos, de outros mundos. Pelos quinze, dezasseis anos ia integrando imagens complacentes da história da pintura, do cinema (cineclubismo), da arquitectura, dos livros. Comprei os “Almanaques” todos (Sebastião), tinha peneiras com a cultura (um intelectual amargo, em certa medida um cliché anti-salazarista), o que dava um certo jeito à minha introversão natural. José Régio foi meu professor, com 17 anos comprava o Herberto, a cidade encravava-se entre os penhascos de S. Mamede e a distância das searas…

De qualquer modo, mais tarde, já em 75, alguns dos mestres que tive na ESBAL (falo, por exemplo, do Jorge Pinheiro, do Zé Brandão, do Rogério Ribeiro, do Lagoa…) abriram-me para a novidade e para a inquietação dos processos da comunicação e da sua possível dinâmica poética e social. O mundo do design vai-se-me formando como um desejo e, em certa medida, uma utopia.
O conhecimento da “geração SNI” faz-se por caminhos diferentes. No entanto, olhei sempre para aquilo como história envernizadora do Estado Novo. A estética das exposições, do folclore estilizado e dos cartazes turísticos tocava-me pouco. Mas as linguagens da pintura, do cartaz, do desenho, da própria arquitectura vão ganhando densidade, no confronto com os modernos mais inquietos – Sebastião Rodrigues e Victor Palla à frente – como o Sena, o Daciano, o Portas e também, por via destes, toda a Bauhaus e outros estrangeiros (Rand, Lustig, Glaser, Bass, Corbusier, Aalto…), sempre caldeados com as expressões pictóricas contemporâneas, mas tudo através de coisas reproduzidas, livralhada – um bocado “museu imaginário” à la Malraux. Uma razoável caldeirada bastante típica.

A “carreira” como designer é que não é nada típica. Comecei a fazer umas coisas para a área cultural ainda como aluno na ESBAL. Quando acabei o curso vim para aqui dar aulas (até hoje) e estive uns meses no atelier do Zé Brandão, com quem fui aprendendo as agruras da produção. Depois, sozinho, fui arranjando uns clientes patuscos, gente que acreditava que o design gráfico podia salvar o mundo e que era porreiro ser eu a tentar fazê-lo à borla! Safei-me depois numa série de trabalhos para a área da arqueologia (profissionais com quem dá gosto trabalhar, devo dizer), IPPAR, Museu de Arqueologia, para além de algum trabalho para autarquias (uns sujeitos sempre com muito pouco tempo para pensar as coisas por dentro).


R. : Foi um dos primeiros alunos do Curso de Design das Belas Artes de Lisboa. Que memória guarda desse início do ensino do Design em Portugal?

A.J.C. : O início do ensino do design em Portugal, pelo menos na ESBAL, foi, para mim, uma coisa muito estimulante. Talvez pelos meus atavismos, estimulante porque um bocado instável, agarrada a uma diversidade de linguagens plásticas, numa procura inquieta, às vezes bem disposta, outras contraída. O design como problemática, como ensino, era absolutamente urgente em Portugal. Claro que o governo via a coisa, tal como hoje, como um mero catalizador dos negócios, mas a verdade é que se discutia então nos jornais e em um ou outro forum não só esta sua dimensão, mas também o design como a possibilidade de uma linguagem digamos artística. Com o 25 de Abril a oportunidade da criação das licenciaturas é agarrada pelos cabelos na ESBAL (eu andava por lá, pelas artistices).

Aquilo baseava-se vagamente nuns modelos de algumas escolas estrangeiras, uma de Cuba, a velha Bauhaus, alguns princípios racionalistas de Ulm – e a coisa era de tal ordem que, dos 5 anos, o primeiro era comum aos quatro cursos (pintura, escultura, comunicação e equipamento), no segundo ano escolhia-se uma de duas vertentes, artes plásticas ou design, e só no terceiro ano é que nos instalávamos então com armas e bagagens na área específica de licenciatura. Podias sair, no final do terceiro ano, com o bacharelato. Parecia curto… A verdade é que estes três anos eram decisivos na criação de uma cultura e de uma prática integradas, que nos dois anos finais, constituíam um bom lastro.

Por outro lado, o 25 de Abril de 74 vem provocar uma quebra no caminho do design, nomeadamente do industrial, porque enquanto no curto consulado de Caetano alguma cultura da necessidade se instalara em relação ao desenho e à produção, Abril leva os cartolas a mandar parar as máquinas, dá-se a descapitalização de muitas empresas e mesmo a fuga de capitais e o boicote deliberado a um certo “desenvolvimento”. Os patriotas! Mas é neste ambiente (que, por outro lado, convocava à festa e à expressão por vezes comovente das energias até então amordaçadas), que se desenvolve o ensino. Os próprios professores estão muitas vezes à rasca e daí nascia, digamos, uma cumplicidade. As fragilidades davam-nos força e eu, digo com convicção, fartei-me de aprender coisas novas, às quais me dediquei com entusiasmo. Só um bocado mais tarde é que aparece o arraial das privadas e aí o ensino do design entra mesmo numa crise de identidade que está a dar cabo disto.


R. : Num dos seus textos evoca Steiner e a importância de saber “ler os antigos”. Quais são as suas principais referências e, sabendo que elas não se limitam ao campo do design gráfico, como é que referências de outras áreas criativas (da literatura ou do cinema) encontram “tradução” no seu trabalho de design?

A.J.C. :Referências, digamos (sem querer recuar à infância) que elas têm dimensões relativas mas, já agora, não posso deixar de mencionar a de um antigo professor de desenho, no Liceu de Portalegre, João Tavares – sujeito exemplar nas suas aulas e um dos incentivadores da Manufactura de Tapeçarias de Portalegre (hoje, estupidamente entregue a uma miserável degradação por falta de encomendas). Não sei se interessa muito carregar para aqui uma série de nomes, isto é tudo relativo, e as coisas podem ter sido decisivas para mim por razões conjunturais… Façam o que quiserem com isto, não é importante, mas talvez se encontrem algumas marcas relacionadas com o meu trabalho. Assim, à balda, na livralhada, Boris Vian, Mark Twain, Abelaira, Maria Judite de Carvalho (grande pancada), Camus, Pavese, o Steinbeck de “A um deus desconhecido”, depois o Herberto, Luísa Neto Jorge, Fernando Assis Pacheco, Eugénio de Andrade, Nemésio, está bem, o Steiner, Almada, sei lá, no cinema é o Antonioni, assunto arrumado que as outras dezenas não cabem aqui, vá lá ainda o Tati das férias, o David Lean e o Dreyer.

Como é que tudo isto toca o meu trabalho de designer, caramba, não sei responder. Alguém
que esteja para se chatear com isso, mas talvez uma pequena intensidade poética que eu vejo como uma emoção insegura, uma procura, uma imponderabilidade, mas sempre na preocupação do “dia claro”. Como quem diz sim, façam lá um esforço para apanhar a coisa, mas eu preocupo-me que ela esteja lá. Não lhe posso chamar rigor, é mais uma tensão.



R. : Ao analisarmos o seu trabalho gráfico, identificamos uma identidade formal muito definida mas dentro dessa identidade uma notória evolução das soluções formais utilizadas. Nos trabalhos dos anos 1980 sente-se, como determinante, a influência (ou a citação) da pintura enquanto que nos trabalhos mais recentes a utilização da tipografia parece ser o elemento central da composição. Esta evolução resulta de um processo consciente? E que influência tem a evolução das ferramentas gráficas sobre o seu trabalho.

A.J.C. :É bem vista a constatação de uma evolução nas formas dominantes no meu trabalho. Se bem que, como o Byrne, estou quase a puxar da pistola quando se fala da forma!

Bem, a pintura está sempre lá, não propriamente como um “formalismo”, mas como uma relação plástica com o mundo, com os outros (com o “mundo dos outros”).

Depois as problemáticas da comunicação começam, nos noventas, a agigantar-se naquilo que é a dimensão social do trabalho criativo e aí, as dinâmicas do desenho tipográfico surgem como materiais mais adequados, parece-me.

Claro que o digital é parte significativa neste encaminhamento, tanto como também é parte disto como um problema. A desmaterialização da tipografia (ao mesmo tempo que a da imagem, a do corpo, a dos sentimentos…) suscita, curiosamente, um incremento das linguagens tipográficas, pela flexibilidade da experimentação. Desaparece a responsabilidade do tipógrafo e o fim desta relação leva o designer a ter que assumir valores de alguma solidão. O que, diga-se, nem todos merecem… Quando as técnicas não são estruturadas em torno de saberes sólidos e de um sentido da história, podem dar origem a um facilitismo lamentável, que vem banalizando a ideia de design e ajudando a que este vá cristalizando em torno do formalismo e de uma cultura projectual que não se interroga, apenas quer produzir mais ruído para os consumos domesticados. Em vez da cabeça um monitor de computador, em vez das mãos um rato, em vez do coração um estabilizador de corrente.


R. : A propósito da Exposição retrospectiva da sua obra, ocorrida em 2007, o Aurelindo Ceia afirmava que “expor o meu trabalho é também abdicar do que é um processo de poder: um professor, numa sala de aula, encontra-se numa situação de poder perante os alunos, e essa é a base do processo formativo. Quando (me) exponho, subverto essa relação de poder – todos os professores que têm obra feita deveriam ter condições para serem sujeitos a essa prova.” Trata-se de uma ideia muito interessante. Parece-lhe que, de um modo geral, vivemos numa sociedade em que cada um se expõe pouco, em que se foge a situações nas quais abdicaremos do nosso poder, no que é também uma fuga à confrontação, à crítica e ao diálogo?

A.J.C. :O que me parece é que vivemos numa época em que há cada vez mais gente a expor o seu lado menos interessante, o exterior, o efémero, o circunstancial, a imagem sem risco – exibicionismo, diria. O consumo para que somos arrastados como se dele dependa a salvação das almas, implica isso, essa permanente reconversão dos corpos, essa obsessiva formatação em torno de um receituário que se apresenta sem crítica.

Claro que falamos de poder. Abdicamos, como dizes, do poder essencial de tentar determinar a nossa vida, em troca das pequenas glórias do quotidiano onde a comunicação se tornou um problema – não um incremento nas possibilidades de uma relação harmoniosa com o real. Como dizia o outro, comunicamos mais, não comunicamos melhor.

Sim, no fundo trata-se de uma fuga à crítica e ao diálogo. Vamos ter de aprender a andar de costas uns para os outros, como citava já o Nuno Portas num livrinho dos anos sessenta…
De qualquer modo, o facto de ter exposto o meu trabalho correspondeu a um conjunto de circunstâncias internas, nas Belas-Artes, não serve nem para salvar o mundo nem coisíssima nenhuma. Acho, enfim, que um professor, quando tem obra publicada, seja qual for a área, deve poder confrontá-la com o olhar e o pensar dos seus alunos – a quem, de resto, a minha exposição era, não só dedicada, mas também destinada.


R.
: Numa entrevista ao Público, o Aurelindo Ceia dizia que “o design é hoje uma prática com um défice de pensamento” que o torna menos eficaz na resolução do grande desafio que se coloca “projectar novas formas de viver a contemporaneidade.” Parece-lhe que o ensino superior em Portugal está a ser capaz de formar designers competentes para responder a este desafio?

A.J.C. :Posso parecer pretensioso, no que vou dizer, respondendo à tua pergunta, mas – será o ensino superior hoje capaz de formar seja o que for para responder a qualquer desafio, a não ser os do imediato, isto é, os do “mercado”, como eles dizem?

Quando o ministro nos manda configurar os programas com as necessidades dos “empreendedores”, estamos conversados. E depois há uns académicos que, perante isso, obedecem! Os outros, resistem, mas caramba, não se pode passar a vida inteira à porrada. Cansa. Mas, poder-se-á perguntar: o que são “designers competentes”?

No meu entender, serão aqueles que consigam integrar no seu trabalho uma reflexividade filosófica e científica. Quero dizer: responsabilidade social e ética individual. O design deixou de ser apenas a prática do projecto. Por muito competente que seja, o projecto leva ao produto e este é distribuído como consumo – a única coisa capaz de sustentar este “capitalismo” já tão híbrido que tem que se travestir de outras configurações para que a gente o engula. O óleo de fígado de bacalhau era ao litro, agora é em pílulas, mas não deixa de ser uma coisa enjoativa, só que a malta não dá por isso.

A transversalidade do design atravessa hoje muitos e cada vez mais complexos campos da actividade e, assim, há que repensar o design como processo, e não apenas como uma competência para chegar à “forma” (por muito que a isto juntem o álibi da “função”). E aí entra o modo como eu descrevo o essencial do design: desenho da cidade e da cidadania. Há aqui um programa que envolve uma crítica do mercado, mas também uma reavaliação dos sentidos do “belo” e da “estética”, ao mesmo tempo que limita, naturalmente, a voragem da produção (com o cortejo que esta habitualmente arrasta: destruição dos recursos, desvalorização das funções, estetização absurda da inutilidade).

O ensino superior é hoje, como instituição, uma bajulação complacente das “ideologias” do económico e do financeiro. A velha “academia” fundada por Platão em 387 aC, perto de Atenas, como lugar de discussão livre sobre o saber, é hoje um palavrão depreciado que se contempla mais através dos ridículos rituais do que de uma verdadeira inquietação e progresso.


R. : Se lhe pedisse um conselho para um jovem designer, qual daria?

A.J.C. : Conselhos? Não, não me atrevo, como dizia o outro, é um luxo que não posso permitir-me. Alguns dados para reflectir estarão, em parte, nalgumas das palavras atrás. O que lhes posso pedir é que não se deixem tocar por velhos jarrões e dinossáurios engravatados, e que mereçam a idade que têm.

7 comments:

Anonymous said...

Simplesmente o melhor Professor do Curso Design Comunicação, FBAUL. Sempre em forma.

Anonymous said...

ou não... simplesmente não.

Unknown said...

É dificil agradar a gregos e a troianos!!

Anonymous said...

amigo, não comeces a inventar.
ouve o senhor na aula e ouve-o fora em particular.
é pretensioso sem razões para tal.
é mal educado.
é ofensivo.

Anonymous said...

Fbaul infelizmente não está em grande forma! mas ainda nos restam professores como este!

pretencioso, mal educado e ofensivo?

gostava de saber os factos em que te baseias para afirmar isso... mas não concordo mesmo! talvez seja demasiada areia para a tua camioneta mas é!
devias ter aprendido com ele algumas coisas como eu aprendi...

Já para não falar do seu nivel cutural...


B

Anonymous said...

*pretensioso

Anonymous said...

Concordo! o Aurelindo Ceia foi é e continua a ser um exemplo para mim de docência. Foi como ele que quiz aprender a ser professor.
ass.: P.A.
Docente universitário

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REACTOR é um blogue sobre cultura do design de José Bártolo (CV). Facebook. e-mail: reactor.blog@gmail.com