Tuesday, September 30, 2008




Numa conferência proferida na delegação de Hammersmith da Liga Socialista em Novembro de 1887, William Morris defendia a passagem do programa funcionalista do plano da utopia (o plano da “professia”) para o plano da ideologia (o plano da “acção”) afirmando: «A extinção das incapacidades de um sistema de produção que está exausto não destruirá, estamos convencidos, os benefícios já alcançados; pelo contrário colocará esses benefícios ao alcance de todas a população, em vez de limitar o seu usufruto a alguns. Em suma, chegámos à conclusão que a função dos reformadores é agora a acção, mais do que a professia. Compete-nos usar os meios ao nosso alcance para remediar os males imediatos que nos oprimem; deixamos a tarefa de salvaguardar e usar a liberdade conquistada pelo nosso esforço às gerações vindouras.» (1).

É conhecida a intenção do funcionalismo socialista em utilizar o mesmo sistema técnico, que se reconhece operar no sentido da alienação, com o objectivo de operar a libertação humana.

A estranheza, pelo menos aparente, reside no facto, de, quer do território capitalista, quer do território socialista, se partilhar a mesma esperança em torno das possibilidades que um sistema técnico utilitário pode gerar.

De facto, independentemente, do território ideológico, a máquina (desde a máquina técnica à máquina social) é pensada a partir do modelo conceptual da máquina-utilitária. De qualquer modo, a máquina-utilitária encerra em si os critérios internos da estrutura industrial:

1. Automatismo : automação dos movimentos e das relações.

2. Normalização: normalização das partes activas da máquina; normalização do operário e do operar; normalização dos produtos (conversão do produto em mercadoria).


3. Adaptação: baseada no controlo numérico quer manual quer automático.

4. Integração: integração e complementaridade das operações que não estão associadas por simples adição mas por uma unidade sistemática.


5. Multifuncionalidade: pressupondo uma sistematicidade de todas as funções co-operantes.


Quer a máquina técnica quer a máquina social contemporâneas podem ser pensadas como uma actualização destas características da máquina industrial:

1. Evolução do nível de automação com a passagem do mecânico para o analógico e do analógico para o digital; a máquina passa a possuir memória e iniciativa.

2. A normalização torna-se total; um objecto só pode funcionar dentro de um sistema se normalizado ao sistema; os sistemas passam a possuir circuitos internos de verificação que asseguram, por exemplo, que a informação transmitida à máquina é, de facto, utilizada, anulando, deste modo a entropia.


3. O controlo numérico passa a estar associado a um código simples e eficaz, inscrito, efectivamente, na lógica do funcionamento interno da máquina; as máquinas electrónicas manifestam, precisamente, a redução das operações a formas lógicas simples que sejam fisicamente realizáveis: transístores, imagens de síntese e sistemas binários.

4. A complementaridade das funções conduz à constituição de um sistema global, no interior do qual a actividade humana é integrada.

A máquina de produção é sempre uma máquina de produção semiótica; o processo produtivo, sabemo-lo, pelo menos desde Reuleaux, é sempre um processo de significação que codifica objectos, operações, operadores, espaços e tempos de operação, por relação a um código universal que é o próprio código produtivo. A linguagem produtiva é uma linguagem da qual vamos tento, de cada vez e sempre, índices, índices materiais e concretos a saber: os objectos, as operações e os operadores integrados no sistema de produção. Afinal, “tudo é activo e agido, reagindo no sistema; está tudo em utilização e em função”(2).

Dissemos que a máquina social pressupõe uma máquina semiótica que gera os códigos de produção. Esta linguagem não é feita para os operários mas pelos operários. Os diversos significantes quer associados à máquina – roldanas, tornos, motores, mas também as máquinas totais – quer associados ao operário – fatos, mãos, pernas, pulmões, o corpo todo – quer ao espaço de produção são integrados numa semiótica que fixa os seus significados. A linguagem semiótica, sobrecodifica uma outra, que podemos de designar de linguagem ergonómica. Produzem-se assim duas codificações complementares que designam sentidos, operações, funções, relações no interior de uma meta-máquina que é o sistema de produção social.

Esta meta-máquina torna-se produtora de formas de trabalho e de formas de lazer, produz identidades, relações, territórios, codificando os fluidos (orgânicos, materiais, funcionais, informativos) que percorrem esses territórios organizando uma semiótica sem resto que tudo agencia.

Simondon explica que quanto mais eficaz é uma estrutura técnica mais eficazes são as suas aberturas, isto é, a capacidade de integrar novos fluidos, de os codificar e funcionalizar, preservando e reforçando a sua autonomia. As meta-máquinas cibernéticas contemporâneas são literalmente marcadas por aberturas mas sem exterior, produtoras de integrações excluindo a entropia. Em rigor, esta meta-máquina já não pode ser identificada no plano da técnica mas no plano da tecnologia que integra, codifica, organiza o plano técnico em relação com o plano humano.

A identificação do plano tecnológico permite-nos as seguintes identificações:

1- Mega-máquina (Mumford) população de máquinas (Naville): as máquinas com crescente autonomia, funcionam como uma sociedade na sociedade, definindo novas estruturas de existência humana (mega-máquinas, mega-polis, etc.), constituem-se como unidades fechadas, do ponto de vista do seu funcionamento, mas abertas, do ponto de vista da sua a afectação sobre a realidade.

2. Trabalho integrado, trabalho morto (Naville), trabalho em migalhas (Friedman); a actividade produtora humana não está ligada a um fim que seja consciente ou perceptível, a relação dos meios e dos fins torna-se reversível, o homem mais não faz do que auxiliar a máquina tornando-se peça do sistema ergonómico.

3. A ciência torna-se um meio de produção e uma prática auxiliar da tecnologia.

4. A Organização ganha o relevo da produção, as máquinas não são utilizadas apenas pela sua função económica, antes a função económica é determinada a priori pela lógica da economia politica a partir de um processo de planificação ou projecção; a máquina tende a desmaterializar-se do ponto de vista funcional utilitário para envolver um excesso, uma sobrecodificação que marca o seu valor no interior da meta-máquina.

5. Os sistemas de informação, os media, produzem uma linguagem crescentemente auto-referencial, gerando significantes automatizados que se significam e se funcionalizam a partir de relações entre si, a partir de regras de correspondência que escapam quer ao locutor quer ao receptor.

Na análise da tecnologia que é desenvolvida por autores não necessariamente coincidentes como Heidegger, Marcuse, Gailbraith ou Simondon, parece haver esse denominador comum que passa pelo reconhecimento de que a tecnologia é na sua essência imaterial, enquanto a técnica é na sua essência material; a tecnologia é o dispositivo operativo e lógico no interior do qual a técnica é agenciada politicamente.

Na sua análise dos objectos técnicos, Simondon mostra que não é a produção industrial que define o objecto técnico, mas é, antes, um certo estado do objecto técnico que determina a produção industrial e exemplifica: “ Ce n’est pás le travail à la chaîne qui produit la standardisation instrinsèque qui permet au travail à la chaîne d’exister. Un effort pour découvrir, dans le passage de la prodution artisanale à la prodution industrielle, la raison de la formation des types spécifiques d’objects techniques prendrait la conséquence pour la condition... »(3).

Não nos esqueçamos que Simondon, de uma forma próxima, por exemplo de Heidegger, analisa os modos de existência dos objectos. Falar em objecto técnico, em objecto tecnológico ou em objecto científico é falar em modificações que se dão no objecto, isto é, significa identificar agenciamentos que são reversivos: o objecto agenciado gera materializações do poder que o agenciou fixando-se, assim, um dispositivo. A operação que se dá é, afinal, a operação de conversão de qualquer coisa num objecto determinado, operação que pressupõe sempre um dispositivo onde essa conversão se produz, isto é, um mundo de substituição na expressão de Husserl. Aquilo que se identifica do ponto de vista da tecnologia é um mundo de substituição que se torna activo, operante e eficaz do ponto de vista social na medida em que converte a própria vida social num objecto seu. O objecto técnico ganha assim, ainda na expressão de Simondon, “o poder de modelar uma civilização”(4).

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Notas:

1. William Morris, As artes menores, Pág. 88.

2. A obra decisiva para compreender o programa funcionalista, a sua inserção fundamental no interior da cultura industrial (e a partir dela da “Cultura do Projecto” ou “Cultura do Design”) e a sua aplicação no domínio social é a obra de S. Giedon, Mechanization takes command, publicada em 1948 [e da qual seguimos a tradução francesa de P. Guivarch: S. Giedon, La mécanisation au pouvoir: contribution à l’histoire anonyme, Paris, Centre Georges-Pompidou, 1980]; Giedon tem participação particularmente activa junto de W. Gropius e outros na programação do movimento “funcionalista” que visa uma definição do Design (isto é da concepção e produção de objectos) como disciplina de organização do espaço social -opondo-se explicitamente ao formalismo (styling) - tal como ele é desenvolvido na Bauhaus de Gropius e na Escola de Chicago (e futuramente de uma forma não menos radical na Escola de ULM sob a vigência de Tomas Maldonado e Gui Bonsiepe); é a visão socialista que orienat o funcionalismo que fará nascer o programa de constituição de um “Design Total” expressão, porventura, bem menos inocente do que a formula de uma “arte popular” ou de um “Design para todos” poderia deixar entender, e com a constituição de um “Design Total” o funcionalismo gera um território ambíguo do qual não se consegue retirar; são essas ambiguidades que perpassam a obra de Giedion, e que poderíamos sintetizar assim: o Funcionalismo, pensado como disciplina ao serviço da cultura industrial, torna-se numa disciplina promotora de um mecanismo sócio-cultural fortíssimo; a mecanização ocupa o poder não apenas da produção da arquitectura e do Design Industrial, o Design Total significa a extensão do principio do projecto industrial, da mecanização, aos corpos e às mentalidades; a obra de Guideon situa-se no centro desta ambiguidade funcionalista e apesar do seu esforço em se referir constantemente à “organicidade” e as “condições naturais e vitais da existência humana” esta ambiguidade permanece insuperável.

3. Simondon, Du mode d’existence des objects techniques, Aubier-Montaigne, Paris, 1958, Pág. 24.

4. Idem, Ibidem

2 comments:

Anonymous said...

Eu penso que o Danny a extremo no jogo contra a Albania foi uma má opção do Carlos.

Forte abraço!

REACTOR said...

Caríssimo leitor anónimo,

Suponho, pelo seu despropositado (em função do "post" comentado) mas divertidamente banal comentário, que terá achado que o meu texto pecou por ser, eventualmente, mais herménito ou "erudito".

Não tenho, neste blogue, nem a preocupação de publicar textos "light" nem a preocupação contrária de publicar ensaios com maior profundidade. Os textos, por vezes, podem cair para um ou outro lado sem que isso, espero, seja sinal de desleixo ou intelectualismo.

Já agora, não me parece que o Danny tenha jogado a extremo e, na minha opinião, má ideia foi tirá-lo em vez de substituir, por exemplo, o João Moutinho.

abraço,

JBártolo/Reactor

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REACTOR é um blogue sobre cultura do design de José Bártolo (CV). Facebook. e-mail: reactor.blog@gmail.com