1.
No prefácio à
primeira edição da História do Design
Gráfico, Philip B. Meggs evoca uma palavra que não possuí equivalente em
português: Zeitgeist. Ela significa o
espírito de uma época e refere-se a marcas e tendências que caracterizam um
determinado tempo. O carácter imediato e efémero do design gráfico e a sua
particular modelação pelo contexto social, tecnológico e económico de uma
determinada cultura permite que ele expresse esses sinais do tempo de uma forma mais plena do que, possivelmente,
qualquer outra produção humana.
Esta absoluta
sintonia com o presente, que geralmente caracteriza o trabalho gráfico e nos
permite com ele contactar e dele usufruir quotidianamente – nos cartazes, nos
mapas ou nas capas dos discos – associada ao carácter facilmente reprodutível,
torna o design, precisamente por essa proximidade, num objecto de estudo
específico e difícil, em relação ao qual, de cada vez, é preciso construir o
necessário distanciamento crítico.
O método de
analisar, arquivar ou expor um objecto artístico, em particular o modelo monográfico típico da história e da
curadoria da arte, não será o mais adequado ao objecto de design na medida em
que o design se caracteriza por uma negociação entre produção autoral e
adequação ao programa definido pelo cliente, entre funcionalidade e poética,
entre imediaticidade e memória, entre liberdade criativa e constrangimentos
determinados por prazos, orçamentos, materiais e ferramentas técnicas.
Será a análise
comparativa, mostrando-nos como dois designers, num contexto idêntico,
resolveram de formas distintas desafios semelhantes, o modelo que melhor
permitirá não só evidenciar características processuais específicas do projecto
gráfico como destacar a dimensão autoral que lhes está associada,
simultaneamente: identificar e diferenciar.
2.
O design gráfico
em Portugal não nasceu com Sebastião Rodrigues, mas teve certamente neste
autor, na credibilização da profissão que o rigor e sensibilidade do seu
trabalho proporcionaram, e no reconhecimento internacional, um momento de
viragem que ocorre, também, num período de mudança cultural e política do nosso
país.
Ao fazer a
transição entre o Portugal do Estado Novo e a realidade gerada com o 25 de
Abril de 1974, Sebastião Rodrigues (tal como Victor Palla ou Armando Alves) faz
a transição entre duas gerações, aquela que o antecede, a dos pioneiros do
design gráfico português (como Fred Kradolfer ou Manuel Rodrigues) e aquela que
lhe sucede, a do novo design português onde
se destacam José Brandão em Lisboa e João Machado no Porto.
Os ateliers
dirigidos por José Brandão e João Machado representaram, sob várias
perspectivas incluindo a comercial, a expressão maior da prática do design no
contexto do Portugal democrático consolidada num território traduzido, desde
logo, nos seus clientes – clientes da grande Lisboa no caso de Brandão do
grande Porto no caso de Machado. No
entanto é, sem dúvida, limitador pensar a importância destes dois autores circunscrevendo-os
a um contexto regional ou mesmo nacional. Pelo contrário, o que se destaca é a
forma como o seu trabalho acompanha as novas linguagens internacionais, como
elas dialoga e as interpreta e, como, bem cedo, as representa, nomeadamente
Machado cujo trabalho, desde muito cedo, conhece forte visibilidade
internacional.
Neste sentido, a
exposição 1 + 1 Design Gráfico pode
começar por ser vista como uma seleção vasta de trabalhos de dois dos mais
importantes designers europeus dos últimos 50 anos.
Brandão nasceu em
Nova York e formou-se em design gráfico em Londres, trabalhou no atelier
Joubert em Paris e com Keith Cunningham em Londres, na capital britânica viria
a chefiar o gabinete de design da sede do Imperial Group e a leccionar no
Hammersmith College of Art and Building. Machado é dos designers contemporâneos
mais expostos e publicados internacionalmente, tendo recebido, para além de
inúmeras outras distinções, o Prémio
Excelência da Icograda; o seu trabalho foi exposto individualmente na Alemanha,
França, Espanha, Canada, México, Brasil, Dinamarca ou Japão, incluindo na DDD
Gallery em Osaka e largamente publicado (Design Journal, Creative Edge,
Graphis, Print Magazine entre muitas outras).
Sucede serem este
dois designers ambos portugueses, e se esse facto não é irrelevante não encerra
a sua importância dentro das fronteiras nacionais. Com uma obra vasta, há muito
consolidada, inovadora e fortemente autoral, João Machado e José Brandão podem
ser colocados na galeria dos maiores designers europeus, a par de nomes como colocar
Pierre Bernard, Uwe Loesch, Alan Fletcher, Holger Matthies, Pierre Mendell,
Niklaus Troxler ou Leszek Wisniewski.
3.
João Machado
(Coimbra, 1942) formou-se em Escultura na Escola de Belas Artes do Porto. O
contacto com professores como Lagoa Henriques exercitou-lhe o rigor e precisão
do desenho mas seria o contacto com outros universos gráficos (a Pop Art, os
cartazes polacos e o design gráfico japonês) e uma insaciável vontade de
criação e experimentação que viriam a definir uma linguagem única que se
consolidou num processo de evolução formal (desenho; aerógrafo; colagem; design
digital) e conceptual não deixando de partir de um conjunto de referências
recorrentes (o design vernacular português, com os seus motivos
icónico-folclóricos, e um conjunto de influências internacionais (como a
técnica de colagem de Tomaszewski) ancoradas num universo autoral próprio.
José Brandão
(Nova York, 1944) formou-se em Design Gráfico em Londres (1970) depois de ter
passado, muito jovem, pelas Belas Artes e pelo Curso de Design Básico na Bauhaus portuguesa que Daciano da Costa
havia imaginado. A expressividade do seu traço e a densidade conceptual do seu
universo como ilustrador encontram a síntese num trabalho de design gráfico erudito, tão atento à ilustração como à
fotografia, ao lettering como a
questões de grelha, indo beber influências ao grafismo britânico e
norte-americano (Geoff White, Richard Hollis, Keith Cunningham, Push Pin
Studios) quer ao rigor técnico e atenção ao detalhe apreendidos no convívio
próximo com Sebastião Rodrigues.
4.
Como descrever,
em traços simples, a exposição 1 + 1
Design Gráfico? Podemos começar por pensar duas exposições autónomas, única
forma possível de comunicar dois universos criativos distintos.
A Exposição João Machado Design Gráfico parte
de um núcleo expositivo central constituído por trabalho recente, desenvolvido
ao longo da última década, tendo como suporte preferencial o cartaz mas
envolvendo outros suportes e formatos, seja de forma mais recorrente (selos e livros)
seja mais ocasional (o design de produto).
Cartazes como os
do International Year of Forests
(2011) e Japan - From Great Earthquake to
Recreation (2011) permitem identificar clientes (na sua maioria
internacionais) e temas do trabalho recente, ao mesmo tempo que evidenciam uma
impressionante largura sintática e semântica do trabalho: da simplicidade
minimal do cartaz Japan, à foça
icónica da ilustração digital dos cartazes do Year of Forests ou das Comemorações do 25 de Abril (Almada, 2012), à densidade do desenho no díptico Save the Life/Water for Life. O percurso expositivo que nos faz chegar aqui apresenta-nos um conjunto diversificado de
trabalhos, mas também elementos de processo, estudos e artes finais.
Nas ilustrações
do final dos anos 70 e início de 80, feitas a Rotering, aguarela ou pastel, destaca-se uma linguagem Pop no tratamento de
temas frequentemente satíricos da realidade social e política. Nos cartazes desse
período, sente-se uma vontade de explorar diferentes soluções formais, através
de experiências de composição e impressão; as influências externas, como Milton
Glaser ou a técnica de serigrafia em íris usada por Peter Max nos seus cartazes
do início dos anos 70, manifesta-se em cartazes como o do Ano Internacional da
Criança (1979), mas não deixando de revelar um crescente amadurecimento de uma
linguagem própria: estilo João Machado, que surge perfeitamente consolidado e,
mesmo, depurado nos cartazes dos anos 90 (excelente exemplo o cartaz para a
Câmara Municipal de Lamego de 1996).
A Exposição José Brandão Design Gráfico tem
como núcleo expositivo o design editorial, selecionando perto de uma centena de
livros, de carácter cultural (catálogos de exposição, monografias de artistas,
arquitectos e designers) e comercial (relatórios e contas para a Fundação
Calouste Gulbenkian ou Portugal Telecom). O livro permite identificar diversos
recursos projectuais, explorados neste meio específico, que sob outras formas,
mas partindo de uma mesma matriz criativa, encontramos explorados nos cartazes,
selos, capas de discos ou desdobráveis. Mais do que colocar o foco neste ou
naquele período de tempo, pretendeu-se remeter para um tempo do projecto, que se percepciona através das recorrências que
se podem encontrar em trabalho feito em diversas décadas e apoiado em
diferentes ferramentas técnicas analógicas ou digitais.
Da capa glaseriana de Por Este Rio Acima (1982), ao belíssimo livro (no qual Sebastião
Rodrigues ainda colaborou) comemorativo dos 25 anos da Gulbenkian, Fundação Calouste Gulbenkian 1956-1981
(1983), da subtil lição de história de arte do desdobrável Queda e ascenção da estética clássica (1987) à força da linguagem
directa do cartaz Cenas de uma Execução
(1997) muitas são as direcções propostas pela obra de Brandão.
Se podemos
começar por pensar em duas exposições autónomas, no espaço expositivo elas
tendem a resultar numa só. Aqui a intenção curatorial concretiza-se no
dispositivo comunicacional. A intenção curatorial parte da convicção, a que já
aludimos, de que os mecanismos de display
(mesmo associados à história ou à teoria) da história de arte não se
adequam a tratar o trabalho de design. O projecto de design resultando de uma
criação autoral caracteriza-se pela interferência de conjunto de outros
elementos específicos (cliente, constrangimentos técnicos e materiais, prazos
etc.) que se evidenciam mais correctamente através de um olhar comparativo.
As duas
exposições resultam numa, igualmente, através de um conjunto de princípios
comuns, orientadores da exposição que se
traduzem numa certa narrativa assente na reversibilidade entre projecto e
processo, público e privado, e na própria reversibilidade entre um tempo lento (que permite a experiência, a
produção de várias maquetes, os inúmeros testes de impressão) e um tempo rápido
esteja ele ligado à execução do trabalho (o tempo do cliente, do designer e do
público), esteja ele ligado à própria efemeridade dos objectos gráficos: flyers, cartazes e economato que deixam
de ter função no momento em que a cumprem.
Esta é uma
exposição que resulta do cruzamento de caminhos de duas exposições que
apresentam trabalhos de dois nomes maiores do design gráfico contemporâneo.
Esse cruzamento de caminhos, logo de formas de olhar e de dar a ver, permite situar, enquadrar, problematizar. Identifica e
diferencia, numa celebração de dois nomes; numa celebração do design gráfico
português.
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