Monday, April 21, 2008
SUPERFÍCIES E PROFUNDIDADES: UMA REFLEXÃO SOBRE O CORPO E A JÓIA
Torna-se difícil desenvolver uma reflexão sobre a jóia que não envolva uma reflexão sobre o corpo. A razão é muito clara: a existência de um corpo é a condição de possibilidade da existência de uma jóia, o corpo é o espaço onde a jóia se concretiza ao ser revestida de um valor simbólico particular que, embora possa ser culturalmente codificado, se inter-dá junto à pele.
A pele é o lugar do encontro, se ela protege e guarda o corpo – ter pele significa, antes de mais, não se estar totalmente exposto, como se a nudez radical corresponde-se ao horror da carne viva – é, também, a pele que permite o contacto, que garante a mediação, que impede a mistura, que assim instaura uma dimensão de procura/descoberta autonomizando os dois e, ao mesmo tempo, possibilitando um processo de devir-uno.
No contacto, há algo do outro que passa para nós e há algo de nós que passa para o outro, a pele constitui-se como uma “zona de trocas”, de transferências, físicas e simbólicas, emocionais e comunicacionais. Esta inter-constituição dialéctica gerada pelo contacto está, também, presente na relação entre o corpo e a jóia. A jóia é, aliás, o lugar simbólico do contacto, o seu simulacro, na medida em que apresenta o corpo sem que seja necessário o toque. Através da jóia, o corpo ganha uma capacidade comunicativa nova, funcionando a pele ou a carne como suporte de objectos que transportam, codificados através da sua forma ou do material de que são feitos, determinados significados que determinam quem os usa.
No seu ensaio, “Semantics of the word jewell”, Manuel Vilhena diz-nos que: “the word "Jewel" stands for any object which primary function is: to be worn by the human body” , ou seja, a jóia é, na sua relação com o corpo, pensada, antes de mais, a partir da sua usabilidade o que não sendo incorrecto é, claramente, redutor na medida em que a jóia se define não tanto pela sua usabilidade (conceito determinante de um objecto de design) mas pela sua disponibilidade. De facto, uma jóia não vale tanto pela sua função de uso mas pela sua dimensão simbólica. Como todo o símbolo, a jóia é a presença de uma ausência, algo que está no “lugar de”, uma evocação de qualquer coisa que não está presente, um contracto civil ou um sentimento, a pertença a uma linhagem ou uma memória, um desejo, um clamor, um suplício. Daí que a jóia represente, também, o modo como o nosso corpo é apossado, como o próprio, o outro, a comunidade ou a sociedade o tomam como espaço de inscrição simbólica, o usam, e nesta medida o corpo é usado pela jóia que o performa e pré-forma. No entanto, a jóia não é um corpo-vivo, a sua existência depende da sobrevivência de um discurso simbólico que lhe define uma funcionalidade estranha, uma funcionalidade que está para além da relação entre o corpo-vivo e esse corpo-morto que se vivifica à flor da pele e que faz brilhar o próprio corpo celebrando o maravilhoso do seu estar-aí.
Jóia e corpo tendem a partilhar o mesmo destino, tendem a ser alvo de idênticas interpretações, usos e agenciamentos sociais. Assim, não nos deve surpreender que as transformações (e as suas causas) que fazem a história contemporânea do corpo sejam, em muitos aspectos coincidentes com as transformações que marcam a história recente da joalharia.
Nesta história partilhada dois processos se destacam. O primeiro processo, podemo-lo situar na passagem da década de 1960 para a década de 1970, designamo-lo de ideológico, o segundo processo impõe-se a partir da década de 1990 e designamo-lo de tecnológico. Como as designações o explicitam, no primeiro processo dá-se a “ideologização” e no segundo a “tecnologização” do corpo e da jóia.
De facto, a partir dos anos 60, a joalharia vai sendo atravessada por movimentos que procuram desconstruir a prática clássica da joalharia, o estatuto da jóia enquanto objecto de luxo, o seu elitismo simbólico, a sua rigidez formal e material, reivindicando para a jóia uma nova dimensão social e politica ao mesmo tempo que a própria definição de jóia e a sua tradutibilidade em termos de escala, de relação forma/função e constituição material vai sendo posta em causa.
A exposição “When attitudes become form”, organizada em 1969 por Harald Szeemann para a Kunsthalle de Berna, ilustrava bem uma nova concepção da joalharia menos preocupada como o “objecto” do que com o “processo”, menos preocupada como a “forma” do que com a “atitude”, reflexo claro de novos diálogos entre áreas criativas (joalharia, design, escultura, pintura, performance) cujas fronteiras são esbatidas pelos agenciamentos criativos que as atravessam: da Arte Povera à Arte Conceptual, da Body Art ao Anti-Design.
Neste contexto cultural ficamos órfãos de um nome que possamos, com segurança, chamar às coisas. Assim, encontramos nos objectos das instalações de Lucas Samaras ou Edward Kienholz “jóias” através das quais se faz a experiência de pensar o espaço como corpo (expressão, aliás, das intensas relações entre Land Art e Body Art) ou nos objectos performativos de Rebecca Horn “jóias” que se tornam agora, de certa forma, operadores discursivos, excessivamente cenográficos, que fazem do corpo uma espécie de palco. É, ainda, nesta mesma dimensão interventiva e expressiva de uma certa contaminação disciplinar que se situam as peças desenvolvidas por Gijs Bakker e por Emmy Van Leersum, a partir de meados dos anos 60, que funcionando como “statements” contra uma concepção tradicional da joalharia, associada a materiais preciosos e a um conservadorismo formal e performativo, desenvolvem novas formas de diálogo entre o corpo e objecto, diálogo através do qual as posições parecem, muitas vezes, permutáveis.
Como sublinham Peter Dormer e R. Turner, a joalharia contemporânea é indissociável deste intenção de tornar a jóia numa interface comunicativa, performativa, dinâmica, que se dá, não apenas a ser usada (e pressupondo, em relação à joalharia tradicional novas formas de uso) mas, sobretudo, a ser sentida e pensada.
Após este processo de transformação ideológica que afecta o corpo e a jóia e que se dilui, nos anos 80, com a banalização dos discursos de vanguarda, como a integração das rupturas e das reivindicações sócio-politicas dentro do mainstream de um novo mercado cultural, um segundo processo se destaca, a partir dos anos 1990 e que se traduz na tecnologização do corpo e da jóia, na naturalização da tecnologia e na sua integração progressiva.
Se na joalharia, à semelhança do que acontece no design ou certas disciplinas artísticas, os anos 80 originam esse processo de um underground goes mainstream, a consequência mais imediata é a da necessária reinterpretação e reintegração cultural de objectos que assumindo ainda características formais e funcionais que explicitam o corte com uma tradição moderna perderam a força crítica e o radicalismo conceptual. Como pensar, então, objectos que já não valem pela sua função de uso mas que, também, já não valem pela sua função ideológica ? A emotional turn que marca o design dos anos 80 parece dar a resposta. O valor das peças de joalharia, tal como dos objectos de design, passa agora a ser determinado pela produção de sentido de um indústria cultural orientada para um consumo progressivamente desmaterializado, lúdico-simbólico e, todavia, crescentemente identitário. Se, como mostra Baudrillard, o consumo é um processo de significação e comunicação – uma “máquina semiótica” – e um processo de classificação e de diferenciação social – uma identidade afirmada por “integração” e por “diferença” – o que se torna nítido nos anos 80 é a integração no design e na joalharia de códigos de expressão, a integração dos seus objectos no interior de sistemas que determinam o seu valor como signos disponíveis a serem consumidos.
Por outro lado, o desenvolvimento tecnológico e a, progressiva, desmaterialização e naturalização das tecnologias vai gerando um contexto cultural crescentemente contaminado e hibridizado. A desconstrução da forma e da função no design e na joalharia, a crescente exploração da dimensão simbólica dos objectos, associadas às novas possibilidades de interacção e de integração do objecto proporcionadas pela miniaturização e interactividade dos componentes digitais, tendem a impor lógicas projectuais híbridas das quais resultam peças que se encontram na fronteira entre a joalharia, o design industrial e a multimédia, tal como as peças de joalharia electrónica da IBM ou da IDEO bem o exemplificam.
Está hoje em vigor uma nova economia de aproveitamento e de reciclagem dos produtos do corpo como matéria de construção do próprio corpo. Para esta tendência contribui, também, a joalharia como se confirma através da análise dos projectos de biojoalharia. Aparentemente, a joalharia não escapa a esta lógica de retroacção, a lógica cibernética por excelência, que acaba sempre por se traduzir ao nível das práticas do corpo e dos discursos do corpo.
Que cabe, a quem projecta, não apenas a concepção de objectos mas, através deles, a concepção de linguagens e modalidades de relação entre nós e a coisas, parece-nos evidente. Ao joalheiro cabe, além do mais, em sorte, projectar formas de preformação do corpo, lógicas de estabelecimento do contacto, modalidades interpretativas a partir das quais, em parte, passa também o nosso reconhecimento e nosso “darmo-nos a conhecer”.
Certo é, também, que aquilo que toma contacto como o corpo é, por ele, corporizado e, assim, aquela peça que nos adorna o pulso, que se suspende envolvendo-nos o pescoço ou que nos penetra a carne já não é, a partir desse contacto, um corpo-estranho mas algo que celebrando o corpo-vivo é nele vivificado.
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