Thursday, June 21, 2007
TRAVESSIA DE FRONTEIRA: A LUZ QUE TECE O ESPAÇO
1. Quando, após uma ausência, se regressa a casa é habitual começarmos por abrir as janelas. Permitir, num gesto simultaneamente concreto e simbólico, que a luz entre no espaço e ilumine, numa fantástica aparição, tudo aquilo que permanecia na penumbra esperando a ocasião em que de novo pudesse ser vivenciado. Há nesse gesto a vontade de não deixar que o espaço se feche em nós, abrir o espaço iluminando-o é rasgar um horizonte para o olhar, prolongando a presença do corpo (e da casa que se foi fazendo corpo) para além de nós.
2. Quando visitamos a instalação site-specific que Marta Traquino desenvolveu na Sala do Veado apercebemo-nos que as janelas foram abertas. Esta mesma sala acolhera os vários elementos expositivos trabalhados por Paulo T. Silva no primeiro momento de Travessia de Fronteira. Aí (apercebemo-nos agora mais do que então) intencionalmente as janelas foram fechadas, a iluminação controlada, o espaço isolado e de modo a melhor nos a dar a ver as obras. Agora, pelas seis janelas, a luz – vinda do jardim, vinda da rua, vinda do céu – entra e parece não apenas iluminar tudo o que o espaço acolhe mas, de certa forma, auto-iluminar-se. O primeiro momento encantatório que a instalação de Marta Traquino nos oferece é este: dar-nos a ver a luz. Esta luz natural – trabalhada, como alguns arquitectos o fazem, como uma material arquitectónico – surge-nos espelhada nos tabuleiros de água, reflectida sobre as linhas brancas, sombreada, aqui e ali, no chão e nas paredes fazendo as suas próprias travessias. De certa forma é a luz que aqui funciona como guia, tecendo percursos entre duas paredes de fio, gerando diálogos e permutas entre o interior e o exterior, mobilizando ritmos, envolvendo os sentidos, aquecendo os corpos, norteando os passos, iluminando os espaços. É também a luz que nos permite aceder a um “lá fora” e, deste modo, o dispositivo de instalação proposto por Marta Traquino apropria-se da Sala do Veado e parece rasgar a parede que a tende a isolar do exterior, a privar do contacto, a esconder do outro. Lá fora, há vida, terra e seiva, lá repousam a estrondosa Ginkgo Biloba, os Dragoeiros, as Canfoeiras, as Gramíneas Japonesas e, no alto, a gigantesca Washingtonia. Vêm todas de um tempo anterior a nós e todas nos irão sobreviver. Fechar as janelas é, talvez, uma forma de nos resguardarmos: da vida e da morte.
3. Plotino dizia que a arquitectura é aquilo com que ficamos quando retiramos a uma construção todos os seus elementos materiais, isto é, uma lógica de sentido que define acerca da disposição desses elementos materiais num determinado espaço. A prática arquitectónica e, também, a prática artística modernas tornaram explícito que esta disposição de sentido no espaço não opera apenas com elementos materiais (e menos ainda, exclusivamente, com elementos estruturais) mas igualmente com elementos imateriais, ou seja, tal como os teóricos da espacialidade social (Foucault, Henri Lefebvre, Edward Soja) deixaram claro, a arquitectura está envolvida num processo de construção e de disposição dos corpos e dos seus ritmos, das mentalidades e dos seus processos de organização, das emoções e das suas lógicas de controlo, das formas de imaginário e das suas ritualizações no espaço.
4. A partir da década de 1980, os processos dominantes de intervenção no espaço praticados nos anos de 1960 e 1970 – a performance, o happening, a crítica das instituições, a desagregação conceptual do objecto, o carácter linguístico do trabalho artístico – são recuperados em forma de objectos (e sistemas de objectos) colocados no espaço. A questão da construção do lugar (e a integração do espectador dentro de um lugar e já não diante de um objecto) – o conceito de sculpture as place de Carl André – e da relação com um lugar – a site specificity ou site construction segundo a expressão de Rosalind Krauss – conservando a sua influência, vão sofrendo desenvolvimentos significativos a partir de então. Artistas como Isa Genken, Pedro Cabrita Reis ou Robert Grosvenor realizam configurações retiradas de modelos arquitectónicos ou passíveis de serem relacionadas (mesmo que conflitualmente) com esses modelos arquitectónicos. É igualmente sobre os modelos arquitectónicos, enquanto expressão de espacialidade social, que se desenvolvem os trabalhos de Smithson, Matta-Clark ou, ainda mais claramente, em Thomas Schütte com as suas instalações evocadoras de lugares de ausência, fortemente desumanizados.
É, também, sobre os modelos arquitectónicos que opera o trabalho de Marta Traquino. A sua instalação concebe uma arquitectónica efémera que habitando uma pré-existência arquitectónica, sólida e permanente, dela se apropria e nela gera transformações. O dispositivo de arquitectura móvel (que funciona, antes de mais, como um corpo que relaciona com um espaço pré-existente) performa a estrutura de arquitectura permanente, mobiliza-a ao mesmo tempo que nos permite (espectadores convidados a serem habitantes) relacionarmo-nos com ela de uma outra forma.
Se a instalação trabalha (conceptualmente e fisicamente) percursos, travessias, ritmos, devires, ela não o faz, contudo, como se o espaço funcionasse como um palco (tipologia espacial tendencialmente neutra) no qual os elementos cénicos – desde logo os corpos - são agenciados, aqui é o próprio espaço que é tomado como corpo agenciavel, no qual os elementos que nele se instalam (dados na sua naturalidade, na sua quase neutralidade) operam processos de devir, deste modo a Sala do Veado é atravessada por inúmeras “intensidades” que a colocam num processo de devir: devir-jardim, devir-casulo, devir-rua, devir-casa. É esta relação activa com a arquitectura e a relação activa que a arquitectura estabelece connosco (num caso como noutro relações de interconstrução) que Travessia de Fronteira nos propõe.
5. Da Poética do Espaço de Bachelard, bem como das obras de alguns fenomenólogos (desde logo Bergson), aprendemos que não vivemos num espaço homogéneo, terraplanado, mas, pelo contrário, num espaço pleno de irregularidades, diferenças e singularidades, num espaço também, lembra-nos Foucault, assombrado pelos seus fantasmas. “O espaço da nossa percepção primeira, o dos nossos devaneios, o das nossas paixões detém em si qualidades como que intrínsecas; é um espaço ligeiro, etéreo, transparente, ou então é um espaço obscuro, pedregoso, atulhado; é um espaço de cima, é um espaço de cumes, ou é, pelo contrário, um espaço de baixo, um espaço da lama, é um espaço que pode correr como a água dum rio, é um espaço que pode ser fixado, rígido como a pedra ou como o cristal.” No entanto, estas reflexões, dirigem-se, sobretudo ao espaço de dentro. A instalação de Marta Traquino questiona, também, o espaço de fora, questiona as fronteiras, as vedações, os muros, que as separam, questiona, também, as passagens, as fissuras, os canais que as aproximam.
Não é só “cá dentro” que o fantasma habita. Ele agita-se, também, como o vento se agita, “lá fora”, entre as gramíneas e os Ciprestes-do-México, além mais, nas casas térreas que resistem ao avanço do betão, nas pontes, dos arranha-céus.
Nos nossos dias, afirmou Foucault, a colocação substitui-se à extensão, a qual destronou ela própria a localização. A cidade estende-se, arquitectónica extensiva, que permanentemente invade e fecha, cinde e isola. A erosão do espaço coincide com a erosão da vida. A nossa vida tal como a existência da cidade descreve-se, agora, por um feixe de relações, entre colocações de paragem provisória: o café, o cinema, a praia; a casa, o quarto, a cama. Vai-nos faltando espaço para viver e espaço para morrer. Necessitamos de abrir as janelas.
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