1. Nós,
abaixo assinados, somos designers, professores de design e críticos de design, que
iniciaram a profissão depois do 25 de Abril de 1974. Nós, que sempre trabalhámos
num contexto politicamente democrático, culturalmente plural e economicamente
liberal, defendemos que os valores da democracia participativa devem ser, de
forma permanente e activa, enunciados, renovados e praticados; que o pluralismo
cultural nos obriga a respeitar a diferença e afirmar identidades; que o
liberalismo económico pode e deve ser criticado e mediado de forma a ser sempre
um meio e nunca um fim da cidadania.
2. Num
momento em que a nossa autonomia enquanto estado-nação é atacada por uma insuportável
ingerência externa, num contexto em que o país está preso a orientações de
credores externos, na mesma altura em que a carga fiscal ultrapassa os 48% do
PIB, em que o desemprego é de 16%, em que o descrédito nos políticos é total,
em que o desalento e o pessimismo nos dominam, nós assumimos a nossa quota
parte de responsabilidade na sensibilização, mediação e mobilização sociais; na
construção crítica do presente; na procura de alternativas futuras.
3. Nós não nos revemos, identificamos ou
conformamos com a actual situação cultural, social, política e económica do
país; defendemos uma maior e mais efectiva responsabilização colectiva - dos
governantes e dos governados – e defendemos a procura de formas alternativas de
fazer política, de fazer cultura, de fazer negócios e de fazer design. O design
é um processo activo de transformação contextual; nós defendemos a
consciencialização dos designers para uma compreensão do projecto enquanto
realização de um acção socialmente eficaz.
4. Nós rejeitamos a ditadura do financeiro e
defendemos a defesa de valores fundamentais, de respeito pelo trabalho, de
equidade, de pluralismo, de participação, de liberdade. Nós defendemos a
importância do papel do design na comunicação e construção de alternativas.
Acreditamos que a democracia é o governo através da discussão. Defendemos o
envolvimento dos designers no assegurar a amplitude e a qualidade da discussão,
tornando-a o mais o quotidiana e pragmática possível.
5. Nós defendemos que o design deve ter uma agenda que resulte da discussão dos
valores, da discussão acerca da utilidade e da eficácia da disciplina, conseguida
de forma alargada e em mais do que um forum:
no movimento associativo; nas escolas; nas empresas de design; nos meios de
comunicação social.
6. Nós defendemos que essa agenda seja capaz de posicionar o design
português, de forma clara, objectiva e pragmática, perante questões sociais,
políticas, culturais, económicas, tecnológicas e éticas que afectam o país e os
cidadãos. Nós comprometemo-nos a criar um grupo de trabalho, aberto à
participação de todos, capaz de desenvolver acções que garantam a prossecução
das intenções do presente manifesto.
7. Nós defendemos que o design e os designers
portugueses sejam valorizados, promovidos e defendidos; nós apelamos às
associações e às escolas para assumirem a sua responsabilidade na defesa
intransigente de uma proposta crítica e exigente para o design e a sua prática
profissional. Nós apelamos a uma maior politização da prática do design, a uma
maior interferência dos designers na programação cultural e social, a uma maior
consciencialização dos designers do seu papel produtivo.
8. Nós acreditamos no design como uma forma
de produção social, e não como acto isolado de criatividade. Nós defendemos uma
prática do design centrada na prestação de serviços do designer a um cliente,
envolvendo respeito mútuo, empenho na procura da melhor solução, de forma a que
cada projecto contribua para a valorização da profissão e para a qualificação dos
valores da cidade e da cidadania. Mas, também, defendemos a procura de práticas
alternativas, auto-propostas e auto-geridas, sejam ou não pro bono. Defendemos a valorização dos designers, a sua liberdade
autoral e condenamos a sua menorização e exploração; valorizamos a formação em
design, a diversidade de formas, processos e manifestações de projecto;
combatemos os estágios não remunerados, a precariedade profissional e quaisquer
formas de descriminação que não se fundamentem em critérios qualitativos
transparentes.
9. Vivemos tempos de urgência que exigem a
nossa participação activa. O presente manifesto comunica um conjunto de
intenções, visa tornar público um compromisso para a construção de uma
comunidade operativa constituída por cidadãos-designers que através da presente
tomada de posição dão um passo para a construção de um grupo de trabalho com a
coesão ou as ramificações necessárias a uma maior eficácia da sua acção.
10. Nós, abaixo assinados, lutaremos para que
o design português possa gerar narrativas fortes, que de forma pragmática e
ideologicamente fundamentada, possam voltar a enunciar, de modo pertinente e
efectivo, palavras como utopia, liberdade, igualdade ou revolução.
Hoje vou participar na manifestação da Av. dos Aliados, no Porto, esperando ser um de muitos milhares que percebem que a cidadania não é uma noção abstracta, vaga ou indefinida; antes uma experiência de organização social, na qual nós, cidadãos, conhecedores dos nossos deveres e direitos, no uso da nossa liberdade e responsabilidade, fazemos política.
Manifesto-me por todas as razões; vou manifestar-me como cidadão, que não esqueceu os princípios da democracia representativa e que não se sente representado por quem me governa; vou-me manifestar contra: contra a ditadura do financeiro sobre o social, o económico, o político; contra a incompetência, a ignorância e arrogância do governo; contra medidas concretas, falta de medidas concretas, contra um estado de coisas, que atingiu contornos obscenos.
E vou-me manifestar a favor: em defesa de alternativas, na procura de alargar o espaço de diálogo, sabendo que manifestar-me é, ainda, uma forma de tornar o empobrecido sistema democrático em que vivemos um pouco mais saudável.
Dentro de alguns dias, será publicado na Arte Capital um texto onde exponho os argumentos em defesa de uma mobilização do design face à actual a situação política e social nacional. Congratulo-me pela forma como, na preparação mesmo, da manifestação de hoje, muitos e muitos designers, contribuíram nas redes sociais, nos blogues, nos estúdios ou nas mesas do café, para mobilizar, informar, "armar". Os inúmeros cartazes que foram sendo produzidos, as inúmeras mensagens que foram sendo construídas, oferecem-nos essas armas que, hoje e sempre, devemos usar.
Há vários anos que o meu mês de Agosto não é ocupado com grandes
leituras. É um mês dedicado a visitar cidades e acordar no campo, a aproximar-me
da experiência do flâneur, a dormir/não dormir, a esperar o pôr do sol em
conversas longas, entre copos, com amigos.
Mas inevitavelmente há livros que me acompanham e leituras que
se programam, mesmo que acabem adiadas.
Entre essas escolhas encontra-se um clássico, Essays in Design de John Christopher Jones publicado em
1984 mas reunindo ensaios, na sua maioria, dos anos 70. Se o Design Methods de
Jones me parece, actualmente, menos interessante, pelo contrário alguns destes
ensaios revelam uma frescura e inteligência notáveis.
No prefácio, datado de Agosto de 1982, Jones identifica um
conjunto de tendências que influenciavam “não só o design mas a cultura em
geral” e, com evidente actualidade, fala-nos do autor como usuário, da teoria
da auto-poiésis ou do movimento empreendedor.
Cruzando referencias histórica e disciplinarmente distintas,
propondo inusitados diálogos entre John Cage, Kant, Jung e Whitman, os ensaios
de Christopher Jones ora avançam no sentido de uma crítica da cultura ora se aproximam de
uma ontologia do design, perspectivando a disciplina a partir de conceitos como
o desejo, o acaso, a utopia ou a felicidade. Particularmente adequado parece-me
o capítulo 4 “Coisas de Agosto”.
Outro clássico, ao qual regressei recentemente, é Exhibition Design: Theory and Practice de Arnold Rattenbury. É um delicioso livrinho, da magnífica coleção da Studio
Vista/Van Nostrand Reinhold, publicado no início dos anos 70. Bem arrumados em quatro partes – “The Object
of the exercise”; “The People Involved”; “The designer’s exercise” e “The Client’s
Object” – encontram-se tratadas e profusamente exemplificadas as situações essenciais ligadas aos
projectos expositivos.
Obra recente é Design as Politics de Tony Fry,
cuja leitura ainda mal iniciei. O argumento central da obra é exposto por Fry,
com clareza, no texto de introdução: “The central argumente of the book is that
democracy is unable to deliver Sustainment (the post-Enlightenment project
beyond “sustainability”). Why this is the case, and the implications of the
statement” são as questões centrais de um livro que me pareceu revelar uma
escrita escorreita e um pensamento inteligente.
Dentro da leitura política, regresso ao A Política dos Muitos,
publicado em 2010, pela Tinta da China (mais uma bela capa da Vera Tavares) no âmbito da exposição Povo-People organizada pela Fundação
EDP. Já tive oportunidade de ler e trabalhar alguns dos ensaios aqui
reunidos – como os de Éttienne Balibar, Agamben ou Tony Negri – mas outros aguardam
ainda a altura propícia, espero nomeadamente ter tempo para ler a “História
subalterna como pensamento político” de Dispesh Chakrabarty.
Chegando a tempo, também seguirá a viagem The Transdisciplinary Studio de Alex Coles, encomendado há pouco tempo; é essencialmente um livro de entrevista, que
aguardo com interesse.
Se a mochila comportar, ainda levarei comigo, por compromissos de trabalho, o The European Iceberg, editado por German Celant, e algumas
revistas que ainda esperam ser lidas ou sequer folheadas, como a última Back Cover ou a primeira (e até
agora única) Figure.
Uma das consequências positivas do crescimento do contexto académico de design, nomeadamente o grande aumento do número de alunos de mestrado e doutoramento ao longo da última década, foi o aparecimento de trabalhos sobre história do design em Portugal.
Algumas teses resultaram já em publicações, como o recente Design Gráfico em Portugal de Margarida Fragoso; inúmeras outras podem ser consultadas on-line, mostrando uma particular atenção aos estudos monográficos (Sebastião Rodrigues, António Garcia, Maria Keil, Fred Kradolfer...).
Continuando a faltar um trabalho de outro fôlego, capaz de apresentar de forma mais sistematizada a história do design português (que Maria Helena Souto começou a contar mas detendo-se, para já, no início do século XX), ainda assim com muita regularidade surgem trabalhos e projectos interessantes.
O Museu Virtual do Design Português é um desses projectos interessantes. Desenvolvido no contexto do curso de design da Universidade de Aveiro e aproveitando o trabalho de pesquisa dos alunos da unidade curricular de história do design português, apresenta-nos um arquivo em permanente actualização. Se consultado hoje, várias são as ausências que se fazem notar (faltam lá TOM, Manuel Rodrigues, Câmara Leme e muitos outros), diversos são os designers referenciados mas sobre os quais falta enquadramento (veja-se o exemplo de Victor Palla) mas estas lacunas, sobretudo num projecto em progresso, nada anulam ao mérito da iniciativa.
Da minha parte, espero que este Museu Virtual possa continuar a crescer: em obras, em informação e em público.
Há quase dez anos organizei uma longa série de conversas na Casa d’ Os dias da água que
funcionava no belo palacete na Estefânia onde antes tinham estado os CTT.
Os encontros
chamavam-se Múltiplas Percepções aconteciam aos domingos ao fim da tarde e prolongavam-se pelo tempo da
conversa. Cada sessão reunia em torno de um determinado tema um conjunto de
vozes diferentes e entre muitos, muitos outros comigo por ali conversaram
Eduardo Prado Coelho, Olga Roriz, André Sier, Nuno Grande, Natxo Txeca ou Gonçalo M. Tavares. As
conversas eram abertas e verdadeiramente não havia público, no sentido da
separação entre intervenientes e espectadores, recordo-me de todos serem
igualmente interessados e participativos.
No final as
conversas prolongavam-se, com frequência, à mesa de jantar ou num bar no bairro
alto na companhia do Francisco Rocha, da Catarina Crespo, dos amigos da Sonda Design e de mais alguém que a nós se juntava.
Na altura, como
em certa medida ainda hoje, reconheço que a ideia da estética relacional do Bourriaud
me atraía com uma carga afectiva que me retirava lucidez crítica. Na verdade,
gosto de construir comunidades, gosto de economias de afectos, gosto da
produção imaterial que situações de convivialidade, encontro e conversas,
propiciam.
Gosto por isso
muito, mesmo não conhecendo muito, das Conversasque a Constança Saraiva e a Mafalda Fernandes vêm suscitando; gosto do que nelas
é projecto e do que nelas é projectado; gosto do que elas provocam e promovem; de
como motivam e revelam motivações; e também ideias, convicções e interrogações.
E gosto muito do projecto editorial que nos transmite o espírito, a forma e o conteúdo, da autoria da excelente Isabel Lucena.
Este tipo de
projectos de iniciativa própria tornaram-se frequentes, nos 90’s e no início
deste século, em países como a Holanda ou o Reino Unido onde era fácil a
iniciativa própria ser financiada pelo estado e ancorada no contexto de uma
estrutura independente – estúdio de design ou galeria – quando não mesmo de uma
escola. Também na Holanda os corte na cultura têm sido dramáticos, mas ficou a
educação para um determinado tipo de projectos culturalmente envolvidos
produzidos por designers.
Em Portugal, os
apoios sempre foram mínimos e hoje são virtualmente inexistentes. Também por
isso projectos de iniciativa própria como estas excelentes Conversas não fazem
parte deste país governado pela Troika e que não reserva à cultura sequer um
ministério; estes projectos fazem parte de uma realidade alternativa, eles
afirmam um outro contexto, apontam para uma outra economia, rasgam uma outra
possibilidade de futuro.
Há cerca de um
ano foi publicado um reader de design que eu organizei. Embora tenha aparecido em alguns escaparates de livrarias, a
publicação passou no meio da maior discrição, nenhuma recensão lhe foi feita,
nenhuma crítica ou elogio, nenhuma discussão gerou.
Esta antologia de
textos, surgiu como um número da Revista de Comunicação e Linguagens que o CECL edita desde 1985. Mais do que formato de revista, os
volumes são livros (com cerca de 300 páginas) com ensaios, em regra, densos e
estimulantes. Graficamente as RCL são áridas e desinteressantes – textos longos
justificados, em Garamond, sem imagens e com notas condensadas no fim do
documento – mas não atrapalham a leitura.
A desatenção a
que esta obra foi votada merece uma pequena reflexão. O simples facto de
surgir, no paupérrimo meio editorial português, um livro de crítica do design
deveria suscitar algum interesse, mas na verdade começamos a notar que muitas
vozes fazem mais alarido à ausência do que à presença das coisas. Queixamo-nos
a alta voz que não existem livros, nem exposições, nem revistas, nem eventos de
design mas quando, por fim, eles surgem (e nos últimos tempos têm surgido) as
mesmas vozes que se queixavam assobiam para o lado e encontram renovados motivos para se queixar.
Neste caso, a
desatenção surpreende-me, por três razões:
Em primeiro
lugar, por ser o reader um dos
géneros editoriais mais explorados no campo do design na última década e meia.
Na verdade, a recente teoria do design assentou na publicação de readers – sobretudo, desde 1994, com a
série Looking Closer - e na forma como se fez o arquivo da produção teórica em design do final do
século XIX até à actualidade. Este interesse pelo reader não surpreende, ele
permite a designers que trabalham com texto explorarem princípios tipicamente
de projecto: edição, montagem, arquivo, etc.
Em segundo lugar,
por este ser apenas o segundo livro, dentro deste género, a surgir em Portugal,
o primeiro havia sido Design em Aberto (1993)
organizado por Ana Alçada, Fernando Mendes e Martins Barata.
Em terceiro
lugar, embora advogue em causa própria, pela qualidade da publicação, reunindo
um conjunto de textos, na sua grande maioria inéditos, muito importantes para a
compreensão de temas e debates que marcaram (marcam) o campo do design
contemporâneo.
Organizado em
torno de quatro noções-chave – Teoria; História; Ideologia; Tecnologia – reunia
um conjunto diversificado de perspectivas críticas de autores como Bernard
Stiegler, Andrew Blauvelt, Mark Wigley, Heitor Alvelos ou Andrew Howard.
Talvez este
levantar da questão acerca do porquê do livro ter sido um não-acontecimento
ainda possa ajudar a que alguma explicação apareça.
No prefácio à
primeira edição da História do Design
Gráfico, Philip B. Meggs evoca uma palavra que não possuí equivalente em
português: Zeitgeist. Ela significa o
espírito de uma época e refere-se a marcas e tendências que caracterizam um
determinado tempo. O carácter imediato e efémero do design gráfico e a sua
particular modelação pelo contexto social, tecnológico e económico de uma
determinada cultura permite que ele expresse esses sinais do tempo de uma forma mais plena do que, possivelmente,
qualquer outra produção humana.
Esta absoluta
sintonia com o presente, que geralmente caracteriza o trabalho gráfico e nos
permite com ele contactar e dele usufruir quotidianamente – nos cartazes, nos
mapas ou nas capas dos discos – associada ao carácter facilmente reprodutível,
torna o design, precisamente por essa proximidade, num objecto de estudo
específico e difícil, em relação ao qual, de cada vez, é preciso construir o
necessário distanciamento crítico.
O método de
analisar, arquivar ou expor um objecto artístico, em particular o modelo monográfico típico da história e da
curadoria da arte, não será o mais adequado ao objecto de design na medida em
que o design se caracteriza por uma negociação entre produção autoral e
adequação ao programa definido pelo cliente, entre funcionalidade e poética,
entre imediaticidade e memória, entre liberdade criativa e constrangimentos
determinados por prazos, orçamentos, materiais e ferramentas técnicas.
Será a análise
comparativa, mostrando-nos como dois designers, num contexto idêntico,
resolveram de formas distintas desafios semelhantes, o modelo que melhor
permitirá não só evidenciar características processuais específicas do projecto
gráfico como destacar a dimensão autoral que lhes está associada,
simultaneamente: identificar e diferenciar.
2.
O design gráfico
em Portugal não nasceu com Sebastião Rodrigues, mas teve certamente neste
autor, na credibilização da profissão que o rigor e sensibilidade do seu
trabalho proporcionaram, e no reconhecimento internacional, um momento de
viragem que ocorre, também, num período de mudança cultural e política do nosso
país.
Ao fazer a
transição entre o Portugal do Estado Novo e a realidade gerada com o 25 de
Abril de 1974, Sebastião Rodrigues (tal como Victor Palla ou Armando Alves) faz
a transição entre duas gerações, aquela que o antecede, a dos pioneiros do
design gráfico português (como Fred Kradolfer ou Manuel Rodrigues) e aquela que
lhe sucede, a do novo design português onde
se destacam José Brandão em Lisboa e João Machado no Porto.
Os ateliers
dirigidos por José Brandão e João Machado representaram, sob várias
perspectivas incluindo a comercial, a expressão maior da prática do design no
contexto do Portugal democrático consolidada num território traduzido, desde
logo, nos seus clientes – clientes da grande Lisboa no caso de Brandão do
grande Porto no caso de Machado. No
entanto é, sem dúvida, limitador pensar a importância destes dois autores circunscrevendo-os
a um contexto regional ou mesmo nacional. Pelo contrário, o que se destaca é a
forma como o seu trabalho acompanha as novas linguagens internacionais, como
elas dialoga e as interpreta e, como, bem cedo, as representa, nomeadamente
Machado cujo trabalho, desde muito cedo, conhece forte visibilidade
internacional.
Neste sentido, a
exposição 1 + 1 Design Gráfico pode
começar por ser vista como uma seleção vasta de trabalhos de dois dos mais
importantes designers europeus dos últimos 50 anos.
Brandão nasceu em
Nova York e formou-se em design gráfico em Londres, trabalhou no atelier
Joubert em Paris e com Keith Cunningham em Londres, na capital britânica viria
a chefiar o gabinete de design da sede do Imperial Group e a leccionar no
Hammersmith College of Art and Building. Machado é dos designers contemporâneos
mais expostos e publicados internacionalmente, tendo recebido, para além de
inúmeras outras distinções, o Prémio
Excelência da Icograda; o seu trabalho foi exposto individualmente na Alemanha,
França, Espanha, Canada, México, Brasil, Dinamarca ou Japão, incluindo na DDD
Gallery em Osaka e largamente publicado (Design Journal, Creative Edge,
Graphis, Print Magazine entre muitas outras).
Sucede serem este
dois designers ambos portugueses, e se esse facto não é irrelevante não encerra
a sua importância dentro das fronteiras nacionais. Com uma obra vasta, há muito
consolidada, inovadora e fortemente autoral, João Machado e José Brandão podem
ser colocados na galeria dos maiores designers europeus, a par de nomes como colocar
Pierre Bernard, Uwe Loesch, Alan Fletcher, Holger Matthies, Pierre Mendell,
Niklaus Troxler ou Leszek Wisniewski.
3.
João Machado
(Coimbra, 1942) formou-se em Escultura na Escola de Belas Artes do Porto. O
contacto com professores como Lagoa Henriques exercitou-lhe o rigor e precisão
do desenho mas seria o contacto com outros universos gráficos (a Pop Art, os
cartazes polacos e o design gráfico japonês) e uma insaciável vontade de
criação e experimentação que viriam a definir uma linguagem única que se
consolidou num processo de evolução formal (desenho; aerógrafo; colagem; design
digital) e conceptual não deixando de partir de um conjunto de referências
recorrentes (o design vernacular português, com os seus motivos
icónico-folclóricos, e um conjunto de influências internacionais (como a
técnica de colagem de Tomaszewski) ancoradas num universo autoral próprio.
José Brandão
(Nova York, 1944) formou-se em Design Gráfico em Londres (1970) depois de ter
passado, muito jovem, pelas Belas Artes e pelo Curso de Design Básico na Bauhaus portuguesa que Daciano da Costa
havia imaginado. A expressividade do seu traço e a densidade conceptual do seu
universo como ilustrador encontram a síntese num trabalho de design gráfico erudito, tão atento à ilustração como à
fotografia, ao lettering como a
questões de grelha, indo beber influências ao grafismo britânico e
norte-americano (Geoff White, Richard Hollis, Keith Cunningham, Push Pin
Studios) quer ao rigor técnico e atenção ao detalhe apreendidos no convívio
próximo com Sebastião Rodrigues.
4.
Como descrever,
em traços simples, a exposição 1 + 1
Design Gráfico? Podemos começar por pensar duas exposições autónomas, única
forma possível de comunicar dois universos criativos distintos.
A Exposição João Machado Design Gráficoparte
de um núcleo expositivo central constituído por trabalho recente, desenvolvido
ao longo da última década, tendo como suporte preferencial o cartaz mas
envolvendo outros suportes e formatos, seja de forma mais recorrente (selos e livros)
seja mais ocasional (o design de produto).
Cartazes como os
do International Year of Forests
(2011) e Japan - From Great Earthquake to
Recreation (2011) permitem identificar clientes (na sua maioria
internacionais) e temas do trabalho recente, ao mesmo tempo que evidenciam uma
impressionante largura sintática e semântica do trabalho: da simplicidade
minimal do cartaz Japan, à foça
icónica da ilustração digital dos cartazes do Year of Forests ou das Comemorações do 25 de Abril (Almada, 2012), à densidade do desenho no díptico Save the Life/Water for Life. O percurso expositivo que nos faz chegar aqui apresenta-nos um conjunto diversificado de
trabalhos, mas também elementos de processo, estudos e artes finais.
Nas ilustrações
do final dos anos 70 e início de 80, feitas a Rotering, aguarela ou pastel, destaca-se uma linguagem Pop no tratamento de
temas frequentemente satíricos da realidade social e política. Nos cartazes desse
período, sente-se uma vontade de explorar diferentes soluções formais, através
de experiências de composição e impressão; as influências externas, como Milton
Glaser ou a técnica de serigrafia em íris usada por Peter Max nos seus cartazes
do início dos anos 70, manifesta-se em cartazes como o do Ano Internacional da
Criança (1979), mas não deixando de revelar um crescente amadurecimento de uma
linguagem própria: estilo João Machado, que surge perfeitamente consolidado e,
mesmo, depurado nos cartazes dos anos 90 (excelente exemplo o cartaz para a
Câmara Municipal de Lamego de 1996).
A Exposição José Brandão Design Gráficotem
como núcleo expositivo o design editorial, selecionando perto de uma centena de
livros, de carácter cultural (catálogos de exposição, monografias de artistas,
arquitectos e designers) e comercial (relatórios e contas para a Fundação
Calouste Gulbenkian ou Portugal Telecom). O livro permite identificar diversos
recursos projectuais, explorados neste meio específico, que sob outras formas,
mas partindo de uma mesma matriz criativa, encontramos explorados nos cartazes,
selos, capas de discos ou desdobráveis. Mais do que colocar o foco neste ou
naquele período de tempo, pretendeu-se remeter para um tempo do projecto, que se percepciona através das recorrências que
se podem encontrar em trabalho feito em diversas décadas e apoiado em
diferentes ferramentas técnicas analógicas ou digitais.
Da capa glaseriana de Por Este Rio Acima (1982), ao belíssimo livro (no qual Sebastião
Rodrigues ainda colaborou) comemorativo dos 25 anos da Gulbenkian, Fundação Calouste Gulbenkian 1956-1981
(1983), da subtil lição de história de arte do desdobrável Queda e ascenção da estética clássica (1987) à força da linguagem
directa do cartaz Cenas de uma Execução
(1997) muitas são as direcções propostas pela obra de Brandão.
Se podemos
começar por pensar em duas exposições autónomas, no espaço expositivo elas
tendem a resultar numa só. Aqui a intenção curatorial concretiza-se no
dispositivo comunicacional. A intenção curatorial parte da convicção, a que já
aludimos, de que os mecanismos de display
(mesmo associados à história ou à teoria) da história de arte não se
adequam a tratar o trabalho de design. O projecto de design resultando de uma
criação autoral caracteriza-se pela interferência de conjunto de outros
elementos específicos (cliente, constrangimentos técnicos e materiais, prazos
etc.) que se evidenciam mais correctamente através de um olhar comparativo.
As duas
exposições resultam numa, igualmente, através de um conjunto de princípios
comuns, orientadores da exposição que se
traduzem numa certa narrativa assente na reversibilidade entre projecto e
processo, público e privado, e na própria reversibilidade entre um tempo lento (que permite a experiência, a
produção de várias maquetes, os inúmeros testes de impressão) e um tempo rápido
esteja ele ligado à execução do trabalho (o tempo do cliente, do designer e do
público), esteja ele ligado à própria efemeridade dos objectos gráficos: flyers, cartazes e economato que deixam
de ter função no momento em que a cumprem.
Esta é uma
exposição que resulta do cruzamento de caminhos de duas exposições que
apresentam trabalhos de dois nomes maiores do design gráfico contemporâneo.
Esse cruzamento de caminhos, logo de formas de olhar e de dar a ver, permite situar, enquadrar, problematizar. Identifica e
diferencia, numa celebração de dois nomes; numa celebração do design gráfico
português.
O próximo número
da revista PLI tem por tema Hot&Cool. Neste confronto
entre quente e frio evocam-se uma série de outras polaridades sejam elas ligadas
ao contexto disciplinar do design – design quente vs. design frio; design
autoral vs. design comercial; design moderno vs. design pós-moderno – sejam
elas mais abrangentes – Sul vs. Norte; economia vs. finanças; ética vs.
mercados; pobres vs. ricos etc.
Quente e Frio
evoca, afinal, a crescente conflitualidade – geracional, corporativa, de
classes – e a aparente indefinição do estado de coisas a surgir depois de
ultrapassado o estado de crise das coisas.
O design talvez
seja coisa menor; talvez perante os números do desemprego, a incompetência dos
políticos, a crescente falência do estado, a ausência de formas de mediação
forte, não haja razões para se falar de design; talvez temas como social design
– assunto tão generalizadamente presente antes de rebentar a bolha – seja entretenimento burguês. Mas creio que não!
Na verdade, penso
que hoje começa a existir em Portugal uma efectiva cultura do design que, mesmo que em doses variáveis, revela a
existência de designers notáveis, de público, de alguns empreendedores e de
alguma crítica. Em termos de mercado a situação é seguramente muito difícil. Se
há uma ou duas décadas atrás existiam alguns bons clientes e muitos maus
clientes, hoje simplesmente não existem clientes; o que não impede de haver bom
design e isso é sintoma da força da disciplina malgrado a crise.
Para esta
afirmação de uma cultura do design mais do que um protagonista deve ser
evocado.
Em primeiro lugar,
os designers. Hoje coexistem três, talvez mesmo quatro, gerações de designers
com trabalho de muita qualidade; sobretudo no design gráfico, onde os projectos
de iniciativa própria ou design pro bono surgem com mais facilidade, é
estimulante perceber esta contemporaneidade
de José Brandão e João Machado, de Jorge Silva e Pedro Albuquerque, dos R2
e de Pedro Falcão, de Joana&Mariana e de Sérgio Alves. O sucesso do evento World Graphics Day que organizo há três anos, tem comprovado essa qualidade.
Em segundo lugar,
as escolas. Dou aulas de design há cerca de 15 anos; já leccionei ou colaborei
com quase todas as escolas de design em Portugal – do Politécnico de Viana do
Castelo à Universidade da Madeira, passando pelas Belas Artes de Lisboa e do
Porto – e não tenho dúvidas da elevada qualidade, muito superior à que existia
há uma década, de muitos cursos de design (ESAD, ESAD-CR, Politécnico de Tomar,
Belas Artes de Lisboa entre outros).
Em terceiro
lugar, a existência de prática crítica; traduza-se ela em projectos editoriais,
curatoriais ou outros. Da Coleção D às Jornadas Cantianas diversas têm sido as
iniciativas de valor que excelentes designers (como Jorge Silva e António Silveira Gomes) promovem à margem do seu trabalho de atelier.
Pela minha parte,
tenho estado, igualmente, empenhado nesse esforço de fazer coisas em design. Em
2007, publiquei aqui no Reactor quase 200 posts; nos últimos dois anos
publiquei, com este, apenas 20. Há para este facto mais do que uma razão,sentir ser hoje menos importante a blogosfera
como fórum democrático de divulgação, discussão e crítica – as redes sociais,
por um lado, e novas formas de trabalhar os media tradicionais (livros,
revistas) por outro, esvaziaram parte da utilidade dos blogues – mas sobretudo
por estar, como talvez nunca, ocupado a fazer: exposições,
publicações, workshops, uma série de projectos envolvendo velhos e novos
amigos, catalisando interesses, explorando uma crescente economia de afectos.
Organizei o
último número da PLI em torno no mote do entusiasmo; no que ele envolve de ideológico e de emotivo,
permaneço entusiasmado, ou se preferirem, inconformado; e como eu, muitos outros no campo do design em Portugal.
Thursday, April 12, 2012
O mais recente número da excelente Coleção D a que, em bem hora, o Jorge Silva decidiu dar vida acaba de sair e é dedicado ao Pedro Falcão. O texto de apresentação é meu e foi um imenso prazer associar-me ao trabalho de um dos designers portugueses que mais admiro.
É apresentado amanhã o livro Desenho da Escrita em Portugal. Três movimentos da Letra da autoria de Jorge dos Reis. Segundo o autor, esta obra em três volumes pretende determinar as três áreas artísticas que fazem uso da letra: a caligrafia, a poesia tipográfica e as artes plásticas. Dentro de cada uma destas áreas seleccionam-se quatro autores que possam revelar as estratégias tipográficas e caligráficas aplicadas no processo de construção da obra e que permitam um entendimento do desenho da escrita em Portugal.
O magnífico trabalho de João Machado está agora disponível para ser consultado em iPad. Contextualizando as imagens de dezenas de cartazes, onde se destacam inúmeros trabalhos recentes de grande qualidade, há um esclarecedor texto de Frederico Duarte.
Depois de anos a vermos as belas sardinhas desenhadas pelo Silva!Designers, as Festas de Lisboa lançaram este ano um concurso para seleccionar a sardinha/imagem das Festas de Lisboa 2012. E não houve família em Portugal que não tivesse um familiar ou amigo a concorrer com a sua, no total foram 3.526 as propostas.
No final, os vencedores foram o colectivo Matilha três profissionais do grupo Brandia e independentemente do mérito da proposta teria sido preferível se do júri que a seleccionou não fizesse, igualmente, parte um representante da Brandia. Assim foi pena!
Publicado pela QuidNovi com coordenação de João Paulo Cotrim é amanhã apresentado o livro Jogo da Glória - O Século XX mal visto pelo desenho de humor. Sabendo do peso do desenho humorístico na nossa ilustração gráfica esta pode revelar-se uma muito interessante aproximação à história do design em Portugal, bem a propósito, Mário Moura publica neste livro um ensaio que nos apresenta o seu próprio olhar sobre o design português do último século.
Entre a lista de livros que aguardam uma boa oportunidade para serem comprados encontra-se este maravilhoso Graphic design: visual comparisions que sendo obra de 3 notáveis designers revela a marca de um dos meus preferidos, Alan Fletcher, o autor do conhecido logo do V&A. Enquanto aguardo a melhor oportunidade para adquirir o Visual Comparisions, comprei recentemente este bonito The Jazz Scene (1961) com capa do mesmo Alan Fletcher .
Num momento em que um em cada dois jovens gregos está desempregado, onde 25 000 sem-abrigo vagueiam pelas ruas de Atenas, onde 30% da população desceu abaixo da linha de pobreza, onde milhares de famílias são forçadas a dar os seus filhos para que estes não morram de fome e frio, onde novos pobres e refugiados disputam o lixo nos aterros sanitários, os “salvadores” da Grécia, sob o pretexto de que os “Gregos” não fazem um “esforço suficiente” impõem um novo plano de ajuda que duplica a dose letal administrada. Um plano que elimina o direito ao trabalho, e que reduz os pobres à miséria extrema, tudo isto fazendo desaparecer do cenário as classes médias.
O objetivo não deve ser o "resgate" da Grécia: sobre este ponto, todos os economistas dignos desse nome estão de acordo. Trata-se de ganhar tempo para salvar os credores conduzindo o país a uma falência em diferido. Trata-se sobretudo de fazer da Grécia um laboratório de mudança social que, num segundo momento, se generalizará a toda a Europa. O modelo experimentado nos Gregos é o de uma sociedade sem serviços públicos, onde as escolas, hospitais e centros de saúde caem em ruína, onde a saúde passa a ser um privilégio dos ricos, onde as populações vulneráveis são condenadas a uma eliminação programada, enquanto que aqueles que ainda trabalham são condenados a formas extremas de empobrecimento e precariedade.
Mas para que esta ofensiva do neo-liberalismo possa alcançar os seus objetivos, será necessário instaurar um regime que faça a economia dos direitos democráticos mais elementares. Sob a exigência dos salvadores, vemos instalar-se na Europa um governo de tecnocratas que desrespeita a soberania popular. Trata-se de um momento de viragem nos regimes parlamentares, onde vemos os "representantes do povo" dar carta branca aos especialistas e aos banqueiros, abdicando do seu suposto poder de decisão. De uma certa forma, trata-se de um golpe de Estado, que faz também apelo a um arsenal repressivo amplificado face aos protestos populares. Assim, quando os membros ratificaram a convenção ditada pela troika (União Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional), diametralmente oposta ao mandato que estes tinham recebido, um poder desprovido de legitimidade democrática terá comprometido o futuro do país por trinta ou quarenta anos.
Paralelamente, a União Europeia prepara-se para constituir uma conta bloqueada para onde será transferida diretamente a ajuda financeira à Grécia, para que esta seja usada unicamente ao serviço da dívida. As receitas do país devem ser consagradas como “prioridade absoluta” ao reembolso dos credores e, se necessário, pagas diretamente nessa conta criada pela União Europeia. A convenção estipula que todas as novas obrigações emitidas dentro deste quadro serão regidas pela lei inglesa, que envolve garantias materiais, enquanto que os diferendos serão julgados pelo tribunal do Luxemburgo, tendo a Grécia renunciado à partida qualquer direito de recurso contra uma tomada determinada pelos seus credores. Para completar o cenário, as privatizações serão confiadas a um fundo gerado pela troika, onde serão depositados os títulos de propriedade dos bens públicos. Em suma, é a pilhagem generalizada, característica própria do capitalismo financeiro que oferece aqui uma bela consagração institucional. Na medida em que vendedores e compradores se sentarão no mesmo lado da mesa, não duvidamos que esta tarefa de privatização seja um verdadeiro festim para os compradores.
Todas as medidas tomadas até agora não fizeram mais do que afundar a dívida soberana grega e, com o auxílio dos salvadores que emprestam a taxas exorbitantes, esta, literalmente, explodiu aproximando-se dos 170% de um PIB em queda livre, enquanto que em 2009 representava somente 120%. É provável que este grupo de resgate – sempre apresentado como “final” – não tenha outro propósito que o de enfraquecer ainda mais a posição da Grécia, de forma a que, privada de toda a possibilidade de propor ela mesma termos de uma reestruturação, seja reduzida a ceder tudo aos seus credores sob a chantagem de “a catástrofe ou a austeridade”.
O agravamento artificial e coercivo do problema da dívida foi utilizado como uma arma para tomar de assalto uma sociedade inteira. É com sabedoria que usamos aqui termos relevantes do domínio militar: trata-se de facto de uma guerra conduzida pelos meios da finança, da política e do direito, uma guerra de classe contra a sociedade inteira. E o espólio que a classe financeira conta arrebatar ao “inimigo”, são os privilégios sociais e os direitos democráticos, mas em última análise, é a possibilidade mesma de uma vida humana. A vida daqueles que não produzem nem consomem o suficiente, ao olhar das estratégias de maximização de lucro, não devem ser conservadas. Assim, a fragilidade de um país apanhado entre a especulação sem limites e os planos de resgate devastadores, torna-se na porta de saída por onde irrompe um novo modelo de sociedade adequado às exigências do fundamentalismo neoliberal. Modelo destinado a toda a Europa, e talvez até mais. Esta é a verdadeira questão e é por isso que defender o povo grego não se reduz a um gesto de solidariedade ou de humanidade abstrata: o futuro da democracia e o destino dos povos europeus estão em questão. Por todo o lado a “necessidade imperiosa” de uma austeridade “dolorosa, mas salutar” vai nos ser apresentada como o meio de escapar ao destino grego, enquanto esta por aí avança sempre em frente.
Perante este ataque persistente contra a sociedade, perante a destruição das últimas ilhotas da democracia, nós apelamos aos nossos concidadãos, nossos amigos franceses e europeus a exprimirem-se alto e forte. Não podemos deixar o monopólio da palavra aos especialistas e aos políticos. O facto de a pedido dos dirigentes alemães e franceses em particular a Grécia seja de agora em diante interdita de eleições pode deixar-nos indiferentes? A estigmatização e o denegrir sistemático de um povo europeu não merece uma resposta? Será possível não elevar a voz contra o assassinato institucional do povo grego? E poderemos nós permanecer silenciosos perante a instauração forçada de um sistema que proíbe a própria ideia de solidariedade social?
Nós estamos no ponto de não retorno. É urgente lutar contra a batalha dos números e a guerra das palavras para conter a retórica ultra-liberal do medo e da desinformação. É urgente desconstruir as lições de moral que ocultam o processo real posto em prática na sociedade. Torna-se mais do que urgente desmistificar a insistência racista sobre a “especificidade grega”, que pretende fazer do suposto caráter nacional de um povo (preguiça e astúcia à vontade) a causa primeira de uma crise, na realidade, mundial. O que conta hoje não são as particularidades reais ou imaginárias, mas as comuns: o destino de um povo que afetará todos os outros.
Muitas soluções técnicas têm sido propostas para sair da alternativa “ou a destruição da sociedade ou a falência” (que quer dizer, vemo-lo hoje: “e a destruição e a falência”). Tudo deve ser tido em conta como elemento de reflexão para a construção de uma outra Europa. Mas primeiro, é necessário denunciar o crime, trazer à luz do dia a situação onde se encontra o povo grego devido aos “planos de ajuda” concebidos por e para os especuladores e os credores. Num momento em que um movimento de apoio se tece em todo o mundo, onde as redes sociais emitem iniciativas de solidariedade, serão os inteletuais franceses os últimos a elevar a sua voz pela Grécia? Sem mais demora, vamos multiplicar os artigos, as intervenções nos media, os debates, as petições, as manifestações. Porque toda a iniciativa é bem-vinda, toda a iniciativa é urgente.
De nossa parte, eis o que propomos: formar rapidamente um comité europeu de intelectuais e artistas pela solidariedade com o povo grego que resiste. Se não formos nós, quem será? Se não for agora, será quando?
Vicky Skoumbi, editora chefe da revista «Alètheia», Athènes, Michel Surya, diretor da revista «Lignes», Paris, Dimitris Vergetis, diretor da revista «Alètheia», Athènes. E: Daniel Alvara, Alain Badiou, Jean-Christophe Bailly, Etienne Balibar, Fernanda Bernardo, Barbara Cassin, Bruno Clément, Danielle Cohen-Levinas, Yannick Courtel, Claire Denis, Georges Didi-Huberman, Roberto Esposito, Francesca Isidori, Pierre-Philippe Jandin, Jérôme Lèbre, Jean-Clet Martin, Jean-Luc Nancy, Jacques Rancière, Judith Revel, Elisabeth Rigal, Jacob Rogozinski, Hugo Santiago, Beppe Sebaste, Michèle Sinapi, Enzo Traverso.
22 de fevereiro de 2012.
Tradução para português de Alexandra Balona de Sá Oliveira e Sofia Borges
No Carga de
Trabalhos surgiu recentemente este surpreendente anúncio em busca de um
estagiário profissional.
Não sendo uma
nova profissão, ser um estagiário profissional parece tornar-se uma condição
profissional, uma das muitas formas de precariedade laboral, nos tempos que
correm.
Sem grande
esforço, uma análise (tarefa penosa!) aos actuais discursos
político-partidários e, em particular, governativos, faz-nos perceber que
existe um esforço em construir um discurso justificativo da actual situação, em
criar uma certa cultura da resignação, da aceitação da inevitabilidade e, falso
argumento tantas vezes usado, da imprevisibilidade da crise.
Expressões como
Flexibilidade tornaram-se, em linguagem hipócrito-eufemística, sinónimos de
precariedade. O Estagiário Profissional é um bom exemplo do contexto laboral
flexível que muitos avançam ser inevitável aceitarmos.
Hoje, Cavaco
Silva dá início ao Roteiro da Juventude, dedicado ao Empreendedorismo. Poucas
palavras conheceram mais rápida banalização e esvaziamento do que a palavra
empreendedorismo. A valorização do empreendedorismo tal como ela é feita nestas
acções políticas é, em tudo, contestável. Elogiar o empreendedorismo não é,
afinal, senão outra forma de credibilizar a precariedade.
O entusiasmo com
que se olha para um licenciado em biologia marítima que agora gere o café que
era do pai, para dois arquitectos que têm uma empresa que organiza casamentos,
ou dois advogados que montaram um negocio de venda de croquetes, não vai além
da cínica distribuição de pancadinhas nas costas, típicas da acção política
mais débil, da desresponsabilização política, da pactuação com o desenrascanço
perante a incapacidade de criação de verdadeiras oportunidades.