Friday, July 13, 2007





PODE A PALAVRA, NO CIBERESPAÇO, DEVIR MÚSICA?


1.

Fomos esperados por todos os textos que lemos. No tempo que leva um encontro, por vezes súbito e violento, outras pacientemente aguardado, o texto seguiu o seu curso na nossa ausência enquanto leitores. Quando, por fim, nos tornamos leitores (capazes ou incapazes de honrar o encontro) o texto transporta consigo a história da sua recepção, envolvemo-nos num processo de intertextualidade na medida em que não recebemos nunca um “texto puro” mas um texto repleto de preensões, dobras e marcações. Não é em vão que George Landow propõe que se reconheça um “resíduo” de intertextualidade em todo o texto, assim todos os textos (e não só os hipertextos) estariam ligados pelos seus “link, node, network, web and path” (1). Se escrever põe em campo a possibilidade de viajar (talvez de regresso a uma terra natal) para o locus utopicus do corpo vivo da língua, a leitura talvez partilhe, pelo menos em parte, desse destino, dessa tensão de tornar a escrita (ou a leitura) em música (como a prática mística da leitura bem comprova).

Se no ciberespaço opera uma semiótica dinâmica, dir-se-ia que os processos de construção do sentido estão subordinados a procedimentos lógicos de ordenação e processamento de informação. O princípio semiótico, segundo o qual o sentido ou, mais correctamente, a significação (i.e. a construção do sentido em acto) resulta de uma tarefa cognitiva de um sujeito competente é “estilhaçado” no ciberespaço a partir da imposição de competências técnicas associadas ao software.

Tome-se um exemplo musical: se fizermos o processamento digital das Variações Goldberg de Bach e recorrermos a um programa que nos fará a “leitura” e a “interpretação” da informação daí resultante (leitura dos respectivos ficheiros MIDI), a análise não poderá ser comparada a uma “análise semiótica” daquela composição mas consistirá, antes, numa representação, confinada às possibilidades do software, de representação gráfica dos ficheiros MIDI.


As possibilidades arquitectónicas e intermediáticas do ciberespaço permitem quaisquer tipos de “traduções” – transformar o texto em som, o som em imagem, a imagem em palavra, a palavra num número ou sequência numérica – e “combinações” – entre hipertexto, vídeo e áudio.

Noutros projectos, como em Living Melodies de Palle Dahlstedt, podemos traduzir em código MIDI qualquer tipo de informação de origem, captada através de um qualquer tipo de interface, permitindo, no limite, através da combinação de interfaces neurais e de processadores MIDI, traduzir, em tempo real, numa melodia os nossos pensamentos.


2. Em L’inconscient machine, Félix Guattari desenvolveu uma sedutora aproximação, mais tarde retomada por Deleuze, à melancolia originária do ser, algo que está na origem do gesto artístico mas, também, da reflexão filosófica e que corresponderia, por assim dizer, à nossa condição musical. Ler, escrever, pintar, pensar, seriam, na sua expressão ideal, formas de devir-música, actos de retorno a uma morada primeva, de reencontro com a melodia do sentido.

Guattari introduz-nos, assim, a figura da imagem-cristal, que, como todas as “imagens” guattarianas, é uma imagem dialéctica (simultaneamente territorializadora e desterritorializadora) imagem pré-musical e possibilidade de devir-música. Por outras palavras, a possibilidade de uma palavra, uma imagem ou um pensamento devirem música depende da existência de um espaço intensivo próprio a que Guattari dá o nome de cristal e que, em particular, identifica com a ideia de ritornelo. Essa melodia à qual se retorna, ou melhor, essa tensão de retorno a uma melodia, que em nós ressoa, nunca alcançada, é, como Kierkegaard já o pensara, próprio da nossa relação estética com o mundo, desse impulso erótico de nos transformarmos no que desejamos, de se ser um só, um só corpo e, no limite, já não corpo mas um só som, como se o que há de mais vital, o coração que em nós bate, se elevasse, apenas, a esse bater, agora uníssono e perfeito.

No pensamento de Kierkeggard há uma categoria à qual Deleuze e Guattari retornam na sua interpretação do ritornelo, trata-se da categoria da repetição, cuja tradução mais vital é precisamente essa imagem-sonora do “bater do coração”, esse pulsar que não se reduz a nenhuma imagem nem palavra. A diferença entre a “língua” e a “música” é bem expressa por Kierkegaard: “O domínio que eu conheço e que se encontra no extremo oposto daquele no qual eu devo entrar para descobrir a música é o domínio da língua” (2) . O anseio de toda a linguagem, dir-se-ia, é o de transformar-se em música, mas ao dizermos isto não estaremos a compreender a radical diferença entre a língua e a música. A música é, ela própria uma linguagem, com os seus constrangimentos sintáxicos e semânticos mas, no sentido mais radical, a música que compomos, tal como a poesia, a filosofia, a dança, também almeja tornar-se “música”, libertar-se das limitações ínsitas à linguagem, vencer o indizível, tornar-se “melodia do sentido”.

O ritornelo deleuziano é esse movimento de retorno a uma dimensão pré-linguistica, essa “repetição” para a qual somos lançados através da música. Neste sentido, a música desencadeia o movimento intensivo que nos aproxima de uma dimensão pré-linguística, que nos deixa próximos de retomar a comunhão plena com o sentido.

Como diz Kierkeggard “Somente quando a língua, por fim, se silencia, é que a música começa, e então, como se diz, tudo se torna música” (3) . A música é, em linguagem deleuziana, a operação activa, criadora, que consiste em desterritorializar o ritornelo.

Pascale Criton afirma, a propósito, que “Para Deleuze, a música é o lugar privilegiado de um processo transversal de variação. Lugar de trocas entre as forças territorializantes do ritornelo e a composição de uma linha de variação propriamente musical.

Do que trata a música, qual é o conteúdo indissociável da expressão sonora? O ritornelo é o ponto de preensão, território, dobra secundária, com o risco de um retorno melancólico ao natal, mas é também uma linha potencial cujos pontos podem se redistribuir, se pôr em movimento: distribuição polifónica, variações melódicas, variações de timbres, de velocidades.” (4)

O ritornelo seria o conteúdo (ainda não musical) da música, o espaço de captação de forças e afectos, lugares e momentos, de captação de intensidades, sobretudo intensidades de infância, que assim retornam como se de motivos musicais se tratassem. O ritornelo seria esse devir-criança, o estar de novo na casa materna, escutar de novo as primeiras melodias, voltar a descobrir a primeira palavra, essa que depois se perde, a única que salva. Consta que, antes de morrer, Sócrates compôs música para dessa forma se pôr em paz com os deuses. Durante várias noites, em sonhos, o Deus Apolo incentivara-o a compor. Durante muito tempo, Sócrates acreditara que as discussões teóricas que mantinha com os jovens atenienses fossem a suprema música mas, perto do fim, parece ter sido invadido por sérias dúvidas. A saudade natal parecia não ser já apaziguável pela discussão filosófica, parecia exigir mais, uma espécie de partilha com a sorte do universo, comunhão com a música celeste, com o cântico dos deuses, com todas as vozes dos homens.

3. O movimento intensivo do ritornelo acompanha, muitas vezes, a leitura. O leitor deixa, então, de existir separadamente e torna-se parte do que acontece. Noutros casos é o texto que parece tornar-se música (penso em alguns textos de Maria Gabriela Llansol e de Rui Nunes). Esta tensão não cessa no hipertexto, não que as dobras, as ligações, os ritmos sejam aí mais fortes, eles estão, simplesmente, sujeitos a uma outra organização formal que torna as dinâmicas da leitura mais explícitas mas, nem por isso, necessariamente mais ricas. E no entanto, a palavra pode sempre devir-música. Em Teclados de Teolinda Gersão, a personagem Júlia descreve esse poder mágico da música: “Ouvir era deixar o mundo entrar em si. Ficava sem defesa, escutando. O som seguia o seu curso e ela deixava de existir separadamente, tornava-se parte do que acontecia. O que era também um risco. Quase de morte, pensava às vezes. Porque a música, de algum modo, estilhaçava-a, fazia-a sair de si mesma e arrastava-a para um estádio indiferenciado, não humano. Contra o qual a música finalmente triunfava.”. Resta dizer que, tal como a música, também a palavra é perigosa.

Notas:

George Landow, “The definition of Hypertext and its History as a Concept”, in www.thecore.nus.edu/cpace/jhup/history.

2 Sören Kierkegaard, L’Alternative, Oeuvres Completes de Kierkegaard, Paris, Éditions de Lórante, Vol. 3, Pág. 54.

3 Idem, Ibidem.

4 Pascale Criton, “A propósito de um curso do dia 20 de Março de 1984. O ritornelo e o galope”, IN Éric Alliez (org.), Gilles Deleuze: Uma vida filosófica, Editora 34, São Paulo, 2000, Pág. 497.

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