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A IMAGEM TELEVISIVA
Em Maio de 1997, o jornal Expresso inquiria seis personalidades, representativas de vários sectores sociais, sobre “a televisão que temos”. Questionavam-se, então, hábitos televisivos e solicitavam-se leituras críticas sobre a televisão, a programação e o serviço público num período de transformação marcado pelo arranque dos canais privados. Relendo a peça, interessou-me ver como as várias individualidades responderam ao pedido de serem fotografadas junto de um televisor ligado, interessou-me perceber como cada um se encenava num enquadramento dominado pela imagem no ecrã. Aceitar este convite correspondia, claramente, a aceitar um jogo de reenvios entre o que se é e o que se vê, assumindo a própria imagem como significante a ser revestido pelo significado da imagem televisiva a associar.
A identidade pública de cada um ficava, assim, marcada por uma imagem que se assumia numa espécie de hipersemia que lhe era dada pelo estatuto do medium que a suportava. Um pouco como "Videodrome", a personagem começava a entrar dentro do ecrã a partir do momento em que se deixava mobilizar pelo seu poder. Interessante é o facto das reflexões mais pertinentes sobre o poder do "medium" televisivo serem reflexões não-verbais e involuntárias. De facto, melhor do que a reflexão crítica avançada por cada um, é a encenação de uma identidade em jogo (dir-se-ia "dentro de campo") com a identidade da imagem televisiva, apresentada pelas fotografias. O que essa encenação revela é, desde logo, a consciência de que, se a televisão reduz a identidade ao plano da imagem, reveste-a, por outro lado, de um "corpo" que só se assume no ecrã.
Percebe-se, assim, a cuidadosa encenação a que cada um se entregou e que se presta a uma óptima análise semiótica. Veja-se o modo como Pedro Burmester vira ostensivamente as costas (atitude encenadamente "negligé" perante o espectáculo das massas, o futebol) ao televisor enquanto, focando a câmara, segura, negligente, uma partitura; como D. Eurico Nogueira parece pregar (a eloquência dos gestos!) ignorando um outro (curiosa a proximidade mimética) que prega na televisão; como João Soares Louro, assumindo o seu estatuto de Director de Programas da RTP, segura literalmente a televisão (que simbolicamente transmite a “jóia da coroa” as novelas da Globo); ou, ainda, como Manuel Maria Carrilho, representante nesta peça do Expresso da intelectualidade lusa, transforma a televisão num objecto em devir-livro, colocado na estante, no meio de outros livros, permitindo-nos ler Pessoa. A capacidade da televisão corroer o privado e lança-lo, já transformado, na esfera do público, acaba por se reflectir com clareza nestas imagens (toscamente) encenadas. Que as vejamos hoje num outro ecrã, agenciadas por um outro "medium", é assunto para um outro "post".
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Genérico "radical" da série juvenil "Riscos" (RTP, 1997).
(Esta é uma versão de um texto publicado no Reactor a 26 de Junho de 2007)
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