Saturday, April 14, 2007

DESEMPACOTANDO A MINHA BIBLIOTECA

Regularmente no Reactor desempacotamos um livro. O livro de hoje:

ÉTICA E COMUNICAÇÃO, AAVV, Revista de Comunicação e Linguagens, Nº15/16, Edições Cosmos, Lisboa, 1992.



A problematização ética do regime dos saberes e, em particular, das formas, modos e intenções comunicativas, justificou, no início dos anos 90, a organização de um número da RCL, publicação regular do Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens da FCSH/UNL. Colocada no entrecruzamento da comunicação com outros domínios do saber e do fazer (como a filosofia, a política, a arte ou a ciência), a preocupação ética surgia num contexto marcado pela progressiva crise das fundamentações teóricas, pela degradação dos valores (desde os anos 80 claramente diagnosticada), por uma certa orfandade epistemológica que acompanhou a afirmação da pós-modernidade, por uma ausência, enfim, de um ética aplicada capaz de promover uma orientação axiológica dos comportamentos (e, desde logo, das acções comunicativas) que se não resumisse a funcionar como um discurso, mais ou menos oco, de “moralização” da experiência.

Sobre a questão ética, raramente objecto de reflexões consistentes em Portugal, havia publicado, nesse mesmo ano de 1992, Sottomayor Cardia uma obra maior e injustamente esquecida: “Ética I – Estrutura da Moralidade” (Editoral Presença, Lisboa, 1992). Antes de Sottomayor Cardia encontramos, apenas, algumas reflexões, não muito sistemáticas, em obras de Vieira de Almeida e Fernando Gil e um interessante ensaio de Cristina Grácio na entrada “Ética” do “Dicionário do Pensamento Contemporâneo” (Publicações Dom Quixote, 1991), ambicioso mas desequilibrado projecto organizado por Manuel Maria Carrilho.

O número da RCL 15/16 revestia-se assim de um interesse e actualidade muito particular. Os ensaios foram organizados em três blocos: o primeiro bloco centrava-se na possibilidade de uma ética comunicacional (e aqui destaca-se o estimulante artigo de Karl.Otto Apel em torno da necessidade de uma macroética); os artigos reunidos no segundo bloco abordavam, numa espécie de mosaico, algumas questões que atravessam o debate contemporâneo sobre a ética (como a relação entre discurso e metapolítica trabalhado por José Bragança de Miranda); finalmente, o terceiro bloco de textos ocupou-se das relações entre a ética e a técnica (destacando-se o artigo de Gilbert Hottois em torno das questões éticas da tecnociência).

A actualidade do tema “Ética e Comunicação” permanece, há que dize-lo, intacta. Vivemos no tempo da hibridação proliferadora das linguagens, das formas, da pós-pós-modernidade – com a sua multiplicação dos fragmentos, dispersão e posterior reunião dos pedaços dando lugar a outras linguagens – à maneira de um imenso patchwork cultural sem, aparente, solução de continuidade.

Como escrevia José Augusto Mourão (no prefácio de “A Ética da Leitura”, Vega, Lisboa, 2002), “este é o tempo da impotência diante das misturas e dos excessos. É o tempo em que somos todos simultaneamente vítimas e cúmplices. Por isso se apela tanto à ética”, ou seja, a ética não nos surge como solução mas, antes, como “sinal de um problema”.

Este “sinalizar do problema” tem sido feito, com maior ou menor consistência, também no campo do design. Victor Papanek abria o seu “Arquitectura e Design” citando, em epígrafe, John Vassos: “O design só triunfará se guiado por uma perspectiva ética”. Se o triunfo se deu ou não é duvidoso, certo é que a ética surgiu, amiúde, como solução e, não poucas vezes, como solução a um tempo fácil e incompreensível, ao ponto de parecer que, para haver ética, basta evoca-la. Não surpreende, pois, a hiper-evocação (que, naturalmente, promoveu o empobrecimento e a banalização do discurso ético) da ética que domina algum do discurso e da prática do design ao longo das últimas duas décadas.

Quando, em 1999, Tibor Kalman, recuperando o manifesto escrito por Ken Garland em 1964, promove a publicação de “First Things First 2000”, defendendo um novo compromisso social por parte dos designers, a questão ética voltou a ser um “alvo constitutivo” dessa “complexa simplicidade” que, para Andrew Blauvelt, define a prática do design. O manifesto FTF2000 propunha o desenvolvimento de “formas de comunicação mais úteis, duradouras e democráticas” e, teve, o grande mérito (que, na verdade, partilha com outras iniciativas e publicações que se desenvolvem por essa altura, como a FUSE ou a publicação do influente “The World muust Change: Graphic Design and Idealism” de Leon tem Duis e A. Haase) de promover uma reflexão (que, ainda perdurando, se foi diluindo fatalmente) crítica sobre as competências de um designer profissional. Não me parece que o manifesto possa ser lido enquanto proposta de uma verdadeira ética projectual, partilho, antes, da interpretação que Andrew Howard desenvolve em “Design beyond commodification” (Eye, nº 38, 2000), de que a intenção (e o mérito) do FTF2000 foi essencialmente o de “politizar” o discurso e a prática do design.

A consciência de que a prática do design é uma prática ideológica (muito mais do que uma prática utópica) poder-nos-á aproximar de uma zona, onde o design, é tocado por uma “vibração ética”. Se a ética é, antes de mais, uma forma de lucidez a partir da qual as acções individuais são ponderadas em função de um interesse colectivo e se o design é um processo através do qual se dá, para usar os termos de Andrew Howard, “a conexão simbólica entre as estruturas de poder e a nossa experiência da realidade”, torna-se claro que a reflexão crítica acerca do design contemporâneo nos devolve, como objecto central dessa mesma reflexão, a questão ética e, deste modo, talvez nos aproxime de uma “solução” mas, apenas, na medida em que nos depõe ante o problema.

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REACTOR é um blogue sobre cultura do design de José Bártolo (CV). Facebook. e-mail: reactor.blog@gmail.com