Friday, April 06, 2007
Jacques Rancière: partilha e compromisso.
As estrelas que vemos brilhar no firmamento dependem, sempre, na nossa posição na terra. As estrelas são, então, presenças de algo mais elevado mas cujo brilho nos toca e nos guia no que há de mais concreto – a nossa existência. Os filósofos encontram-se entre essas estrelas, cada vez menos perceptíveis (a poluição encobre os céus). Vêm estas notas a propósito de Jacques Rancière um grande pensador da estética, nosso contemporâneo. Para Rancière, a “estética” não designa uma disciplina, uma divisão da filosofia, mas uma ideia do pensamento. A estética não é um saber sobre as obras, mas um modo particular de pensamento que se desdobra sobre elas e que as toma como testemunhos de uma questão: uma questão que se refere ao sensível e à potência de pensamento que o habita antes do pensamento, sem o conhecimento do pensamento.
A estética é, antes de mas, uma “partilha do sensível”. Na belíssima entrevista que Rancière deu a Òscar Faria, publicada na edição de hoje do Ípsilon, o filósofo francês esclare o que entende por “partilha do sensível”: “É o conjunto das formas que definem aquilo que podemos perceber, que definem a maneira como podemos dar nomes àquilo que percebemos, à maneira como o podemos pensar.”. O pensamento estético é isto: esta aventura do pensamento para tocar o que o toca, para nomear o que parece clamar o nosso nome, para pensar o que, arrebatando-nos, parece pensar por nós. Não é o “estético” esse “tremor do coração” que faz perder o pensamento (ante um rosto, uma imagem, uma melodia) na fertilidade do deserto?
Na essência, a partilha do sensível é a “configuração” daquilo que para nós é perceptível e sentido, daquilo que para nós “faz sentido” (num “ter sentido” sentindo-o), “esta configuração, esclarece Rancière, supõe ela mesma uma partilha entre aquilo que é e aquilo que não é visível, entre aquilo que faz e aquilo que não faz sentido. E esta partilha é também uma maneira de definir, de distribuir as capacidades dos indivíduos).
Rancière é o pensador da tradição kantiana da “partilha do sensível”, do “sentido comum” de Kant, mas é, também, o pensador do compromisso, marca de alguém que “cresceu no tempo dos livros de Foucault”, leia-se a forma como Rancière fala de Pedro Costa, leia-se a defesa da necessária instauração de um “dispositivo estético de distância” que permita, autenticamente, à arte “representar”. A força da arte, lembra Rancière, não está em entrar na vida, em tornar-se vida, mas em “configurar a vida” através de uma “figura estética”.
“A relação distância/proximidade pode ser compreendida assim: para fazer ouvir uma palavra é necessário instaurar um dispositivo estético de distância. Essas palavras, por que as não ouvimos? Não as ouvimos enquanto elas forem tomadas sob a forma de reportagem: um pobre fala pobre, um imigrante fala imigrante, ele apenas faz reconhecer a sua condição. (…) A força da arte é, precisamente, a de sair das figuras, das formas sensíveis esperadas. Isso supõe esta espécie de distância: estamos diante um ecrã, não estamos perante uma pessoa, estamos na posição do espectador; o que temos diante de nós não é um indivíduo que conta a sua vida, mas uma figura estética que impõe a sua potência.”
Jacques Rancière estará em Serralves na próxima quinta-feira.
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