Thursday, April 19, 2007

REACTOR | ENSAIO

Revelação e Ocultação
As Mediações na Cultura Visual Moderna

José Manuel Bártolo


1. Introdução

“A nossa divindade, a história, encomendou-nos um túmulo do qual não há ressurreição.”
Ingborg Bachman, O Tempo Aprazado

Só do invisível podemos ansiar manifestação. A história dos media é, em grande medida, a história desse anseio e do modo dele se declinar num processo no qual a revelação nunca se dá sem mediação e onde o saber se constrói a partir da sua própria interpretação. Esta é, também, uma história de espectros, de projecções, que começou, talvez, com o abeirar-se de alguém junto da água para nela, surpreendentemente, ver um rosto que nunca havia visto. Várias são as ilações que, do mito de Narciso, se podem retirar para o plano da medialogia: que o medium transforma o eu num outro, ou seja, que o plano da identidade é nele co-relacionado com o da alteridade; que o medium agencia a mensagem o que pressupõe que não existem suportes semioticamente neutros; muitas outras interpretações se poderiam formular, mas, nesta introdução, preferimos salientar esta, a de que o medium, esse nosso intermediário, nos confronta com uma realidade que, aparentemente, não podemos receber sem espanto, porque a história dos media é, também, uma história de espantos e da sua procura. Se a história, a história de cada um, nos encomendou um túmulo do qual não há ressurreição, essa mesma história nos motiva, de cada vez, em cada morte, a olha-la e a fixa-la numa imagem que lhe poderá perdurar. As imagens que nos mediam são a nossa forma de esperar a morte tornando a vida esperançosa.

O que é esperado deve ser, também, temido. A palavra “espanto” deriva de expaveo, expectativa temerosa, mas está, também, próxima de expando, abertura ou revelação. A revelação não ocorre sem mediação. O medium é o intermediário que permite ao invisível a manifestação, ao indizível a enunciação, ao vindouro a anunciação, mesmo que a visibilidade do invisível, a enunciabilidade do indizível ou a presentabilidade do porvir se dêem simbolicamente, essa é, aliás, a forma do oculto se manifestar mediunicamente, esse é o carácter fantasmático dos meios, quer dos velhos quer dos novos. Além do mais, se existem diferentes gerações de media, a verdade é que nenhum medium é completamente substituído por outro, algo permanece, mesmo que fantasmaticamente, nos novos media digitais que descende, por exemplo, das lanternas mágicas ou das fantasmagorias.

Só se desenvolve o medium quando há um saber que tem de ser mediado. Na modernidade, a mediação dos saberes desenvolve-se no interior da nova racionalidade instrumental que faz evoluir meios, instrumentos e dispositivos impondo uma nova cultura técnica na qual as relações de saber e de poder vão sendo tecnicamente mediadas. São essas relações, tomadas na perspectiva da cultura visual, o objecto de análise do presente ensaio.


2. A razão instrumental

No limiar da modernidade há três heranças pré-modernas que determinam o seu destino futuro: a Reforma que expropriando as ordens eclesiásticas desenvolve o duplo processo de expropriação individual e acumulação de riqueza social; a descoberta da América e a subsequente exploração da terra; a invenção do telescópio e o desenvolvimento de uma nova ciência instrumental que relativiza o lugar da terra passando a considerá-la do ponto de vista do universo. Quando estes três processos – laicização e capitalização; projecto taxinómico e desenvolvimento de uma racionalidade instrumental – se vêm ancorados pela matemática moderna ganham possibilidades de crescimento que lhes permitiram chegar ao actual estádio de desenvolvimento do capitalismo, do arquivo e da telemática digital contemporâneos.

Uma arqueologia da cultura visual moderna levar-nos-á, insuspeitamente, ao final do século XVI, período no qual se produz uma transformação fundamental na história do Ocidente, a criação da matemática moderna que irá impor à técnica medieval as regras de precisão e de rigor da ciência matemática. A técnica torna-se, então, técnica de precisão, de medida e de cálculo, entrando no universo científico veiculada à categoria da universalidade (cientifica e social) que determinará a sua vocação futura.

A ciência moderna forma-se pela derrocada do modo “grego” de produção de conceitos, efeito da nova matemática e da sua importação pelas ciências da natureza. A revolução científica não resulta tanto do facto de se de declarar o mundo matematizável – o que pelo menos desde o Timeu não era novidade – mas, antes, do facto dessa declaração poder ser feita a partir de uma forma universal de representação, rigorosa e manipulável até ao infinito, a partir da qual a matematização abstracta do mundo vai sendo concretizada através da matematização da vida, dos corpos, dos comportamentos, dos desejos e das memórias, matematização esta que se faz directa e indirectamente, através de meios de cálculo e controlo, através de processos de representação e educação, através, finalmente, do desenvolvimento de aparatos instrumentais e da introdução de politicas instrumentais aplicadas aquém e além do funcionamento estrito dos instrumentos.

Os instrumentos que nos aparecem no final da idade média e no início da idade moderna são na sua maioria invenções artesanais reinterpretadas no interior do espaço científico, integrados como instrumentos de laboratório, e novamente devolvidos para o plano quotidiano. Assim parece acontecer com a luneta astronómica de Galileu, o telescópio criado por Leeuwenhoeck, o microscópio de Swammerman ou o barómetro de Torricelli. Todos estes instrumentos parecem possuir uma quádrupla aplicação: permitem a verificação de certas hipóteses científicas; na medida em que fixam, na sua estrutura e na sua função, uma “verdade teórica” concretizada, eles tornam-se modelos de investigação científica fornecendo perspectivas conceptuais e metodológicas. Assim, por exemplo, as questões da “divisão ao infinito” do cálculo infinitesimal, não são pensáveis sem o microscópio que as concretiza; instrumentalizam a linguagem tradicional modificando-a, os instrumentos científicos são, então, agentes activos de modificação da linguagem; instrumentalizam e funcionalizam os comportamentos quotidianos, funcionando como instrumentos mediadores e fornecendo linguagem mediadora da nossa relação com a realidade.

O desenvolvimento da ciência instrumental moderna modifica, radicalmente, a organização epistemológica da cultura medieval. Conhecemos alguns instrumentos de abertura, que possibilitam tal revolução, desde as lunetas e demais aparelhos ópticos que abrem ao olhar humano ao mundo do infinitamente pequeno e no infinitamente distante aos aparelhos médicos, como os alicates e os afiados escalpelos dos anatomistas que a partir do final do século XIII, abrindo os corpos cadavéricos, deixam entrar, pela incisão, um novo olhar que não só reorganiza a carne morta mas que reinventa a carne viva e a partir dela toda uma organização de saberes, de fazeres e de poderes.

Os escalpelos, as pinças, os alicates, utilizados pelos anatomistas e pelos cirurgiões revelam a importância dos “instrumentos de operação” mas, mais importante, revelam a importância de uma nova lógica instrumental. De facto, tão importante como escalpelo é a mão ou olho, também eles instrumentos que devem ser “afinados”, “apurados”, e a mesma lógica que define o operador como um “instrumento”, definirá igualmente o operado, fazendo do cemitério onde, ocultamente, se praticam dissecações, do laboratório, do teatro anatómico, dos gabinetes de curiosidades, “máquinas instrumentais” complexas onde uma lógica instrumental que se vai impondo, semioticizando de um modo determinado cada objecto e cada sujeito.


A imagem usada por D’Ambert, do saber moderno como um rio que rompe as suas barragens , é ilustrativa do modo como, em largura e em profundidade, a nova lógica instrumental reinterpreta o saber antigo e medieval. O corpo humano que os anatomistas abriram e desmontaram era um “pequeno mundo”, microcosmo inseparável do macrocosmos, ao dissecarem um, necessariamente, estariam a dissecar o outro. Newton expressa-o bem ao concluir a sua Opticks, publicada em 1704, afirmando que com o alargamento da filosofia natural os limites da filosofia moral são também alargados.

A ciência moderna é suportada instrumentalmente. Invenção instrumental, experimentação instrumentalmente apoiada e teorização desenvolvem-se em paralelo. Assim acontece na física com o desenvolvimento de dispositivos instrumentais complexos para estudar a velocidade ou a força dos corpos, como os famosos dispositivos de Giovanni Poleni e de Willem ‘sGravesande para demonstrar as leis da colisão; os conceitos da mecânica analítica – como os de “força viva” e “acção” – foram trabalhados experimentalmente por William Hamilton ou Carl Gustav Jacobi a partir da utilização de instrumentos técnicos por si inventados ou adaptados; assim acontece no campo da ciência natural com a invenção do microscópio que permitirá a Leeuwenhoeck, em 1667, descobrir “animáculos” no esperma humano ou o de Robert Hooke, dois anos antes, elaborar a primeira noção da organização celular; também noutras áreas os instrumentos ganham uma importância decisiva, como se constata com a invenção de novos instrumentos utilizados pelos físicos em termodinâmica, electrodinâmica, energetismo ou os utilizados no campo da óptica, onde a evolução teórica é suportada por instrumentos que permitem a observação e a experimentação como os instrumentos ópticos de Francesco Algarotti; no campo da astronomia uma série de instrumentos desempenham um papel decisivo; sabe-se que as famosas observações de Marte feitas por Tycho Brahe sem telescópio tinham uma precisão de cerca de dois minutos de arco; por volta de 1725, os arcos graduados adaptados a miras telescópicas e os micrómetros de traços (usados por Johann Tobias Mayer ou Jean-Baptiste Delambre) tinham uma precisão inferior a 8 segundos de arco, e no final do século, a precisão aumentara para menos de um segundo de arco. Da mesma forma, a equação que tinha de ser aplicada a todas as observações para corrigir a refracção provocada pela atmosfera da terra melhorou ao longo do século, passando de uma incerteza de até 10 segundos de arco para menos de um segundo. Estas melhorias técnicas significavam que as observações podiam aferir a teoria e vice-versa.

No século XVIII, um pouco por toda a Europa existem fabricantes de instrumentos científicos, capazes de responder às crescentes encomendas que traduzem o aumento e melhoria qualitativa dos laboratórios de química, dos cabinets de física, dos laboratórios de ciência natural, dos hospitais ou, ainda, das expedições científicas. Alguns fabricantes ficaram justamente famosos, tal como o inglês John Cuthbertson que fabricou o gigantesco gerador electrostático que, em 1785, equipou o laboratório de Martinus van Marum. Sabemos, também, que o laboratório de Lazzaro Spallanzini era sofisticado ao ponto de nele ter realizado as primeiras fecundações in vitro.

O aumento da quantidade e da qualidade da informação obtida pelos novos instrumentos científicos colocava problemas ao nível do tratamento, classificação, ordenação, representação, legendagem, arquivo e difusão dessa informação. A tentativa de Thomas Moffett de classificação dos gafanhotos revelava, esclarecedoramente, os perigos do excesso de informação:

«Alguns são verdes, alguns pretos, outros azuis. Alguns voam com um par de asas, outros com mais do que um; aqueles que não possuem asas, saltam, os que não podem voar ou saltar, andam; alguns têm pernas mais longas, outros pernas mais curtas; há alguns que cantam, outros são silenciosos; E existem muitos tipos na natureza, e assim os seus nomes são praticamente infinitos.»

Percebe-se assim a importância de um projecto taxinómico de classificação, ordenação e arquivo de saberes, fazeres e poderes que mobilizará transversalmente a cultura moderna.

As taxinomias assumem uma grande importância, mas também os mapas e os atlas – dos atlas anatómicos ao atlas astronómicos como o de William Herschel, passando pelos atlas geológicos como o que Jean-Etienne Guettard desenvolveu com a ajuda de Lavoisier – através deles desenvolve-se uma nova linguagem gráfica traduzida não apenas na técnica de ilustração mas, igualmente, na forma de legendar e nos processos de representação simbólica.

O projecto taxinómico que domina a modernidade é, antes de mais, um projecto de estabilização do saber, de integração da informação produzida dentro de um sistema epistemológico que o classifica e arquiva. Mas também aqui, é importante percebermos a circulações que se dão entre o sistema dos saberes e o sistema do fazeres e dos poderes, eles estão interligados e a máquina taxinómica deverá estabilizar os três separando e fixando o que se pode e o que não se pode, o que se deve e o que não se deve saber e fazer.

Com o desenvolvimento dos media, com o aperfeiçoamento instrumental, com a estabilização de linguagens de representação gráfica e com a aplicação de princípios de cálculo, evoluções que se dão solidariamente, as taxinomias vão sendo, progressivamente, mais ambiciosas e integrantes. No início do século XVII, Gaspar Bauhin, descreveu cerca de seis mil espécies no seu herbário, no final desse século John Ray na sua Historia plantarum generalis incluía mais de 18 mil espécies. Tornava-se, então, essencial um sistema de classificação capaz de ordenar um tal conjunto de dados. Em 1750, quando o trabalho de Lineu é publicado, marcando uma viragem nos procedimentos taxinómicos, já haviam sido propostos cerca de meia centena de diferentes sistemas.

Se o êxito das taxinomias botânicas se restringiu, sobretudo, a plantas com o padrão familiar de raízes, caules e folhas – formas mais complexas como as algas e os musgos representavam enigmas mais difíceis de resolver e foram afastadas como sendo plantas imperfeitas – a zoologia deparava-se com uma multiplicidade de formas que não podiam ser evitadas, como os quadrúpedes, as aves, os répteis, os peixes, os crustáceos e os insectos, aos quais se acrescentou, progressivamente ao longo do século XVII, a vida microscópica.

Com o desenvolvimento dos instrumentos observacionais, a modernidade vai-se dando conta de que existem formas de vida, desconhecidas do mundo antigo e medieval, acima de nós (reveladas pelo telescópio), à nossa volta, mas, também, dentro de nós, vida infinita pequena revelada pelo microscópio. À nova ciência instrumental cabe, assim, ordenar o saber visível e invisível a olho nu, ordenar o que está infinitamente distante e infinitamente pequeno, ordenar a vida biológica e o mundo inanimado das máquinas, ordenar o cadáver e o corpo vivo, ordenando, ainda, as formas de viver.

A taxinomia fornecia o quadro amplo no qual se organizava o conhecimento biológico e social. Mais do que um simples instrumento científico os projectos taxinómicos constituíam-se como projectos bio-politicos de constituição de formas integradoras e controladoras da vida individual e colectiva.

O grande crescimento do conhecimento físico, associado ao, ainda maior, crescimento do conhecimento biológico, provocou uma reorganização do mundo medieval. A nova geografia física e humana às quais se poderia acrescentar uma nova geografia epistemológica, produz toda uma nova geo-estratégica que reinterpreta saberes, fazeres e poderes agora integrados num esquema de maior complexidade que aquele do mundo medievo. O biopoder moderno, detalhadamente trabalhado por Michel Foucault, insere-se, precisamente, nesta nova ordem geo-estratégica que deve ser capaz de construir uma semiótica, uma axiologia e uma epistemologia que estabilize o novo, que imponha processos normativos, que estabeleça classificações, que possua uma lógica arquivística que seja capaz de integrar e dominar o novo e, ao mesmo tempo, requalificar o antigo.

Assim, novos instrumentos, novos lugares, novos corpos, novos saberes, novas práticas e novos poderes são integrados numa ordem sistemática que parece capaz de impor a sua ordenação, a sua classificação, a sua legenda, a sua arquivística a uma nova natureza da vida.

Progressivamente a partir do século XVI, saber e poder passam a estar associados a partir de um operador comum: o olhar. As diferentes modalizações do olhar determinam diferentes graus de saber e diferentes ordens de poder. O controlo dos media e dos instrumentos significa, também, a possibilidade de ver, de ver mais longe, de ver melhor, de ver o “invisível”, de ver sem ser visto, de ver repetidas vezes. O telescópio e o microscópio o demonstram, mas dentro desta lógica podemos incluir também, e entre tantos outros exemplos possíveis, a arquitectura panóptica ou, posteriormente, a invenção da fotografia. Agora é claro, o olhar é o primeiro instrumento e, por isso, também ele deverá ser “afinado”, também ele deverá ser semioticizado, ganhando um sentido determinado dentro do sistema de saber-fazer no qual se integra. E nesta constatação vamo-nos apercebendo como aqueles mesmos que inventam e utilizam os novos instrumentos vão sendo instrumentalizados, como aqueles mesmos que dissecam os corpos vão sendo dissecados, como aqueles mesmos que desenvolvem taxinomias vão sendo ordenados.

3. As imagens e o espanto

As imagens mediadas são imagens espantosas. O espanto localiza não só um problema estético mas, igualmente, um problema científico ao confrontar-nos com uma imagem ambígua e pairante. Na Micrographia, publicada em 1667, Robert Hooke reconhecia que o microscópio subvertia as normas de lucidez, coerência e estabilidade dos corpos ao transformar objectos comuns, como simples grãos de milho, em imagens misteriosas, irreconhecíveis e inquietantes. A racionalidade instrumental do século XVIII confrontou-se largamente com este problema, o do estatuto identitário de tudo aquilo que não é “nem uma coisa nem outra”. A geografia, a mineralogia, a química, a óptica, a medicina confrontaram-se com esses inter-seres, espécie de fantasmas cuja aparição depende de condições de possibilidade extraordinárias e cujo lugar no mundo, a despeito na sua permanente presença entre nós, não é reconhecido. O estatuto dos invisíveis (esses seres apenas perscrutados instrumentalmente) está, de certa forma, próximo do estatuto das imagens projectadas que parecem pairar visíveis mas incorpóreas como acontecia com as diabruras de Giovanni Battista della Porta usando a Câmara Obscura ou com as fantasmagorias de Robertson usando a lanterna mágica.

Os media sejam eles quais forem – a máscara do xamã ou o dispositivo de tomografia axial computorizada do médico contemporâneo – despertam o espanto na medida em que intermediam o visível e o invisível, o ausente e o presente, o manifesto e o oculto. O espanto é, essencialmente, a consciência de que o objecto identificado não é inteiramente identificado, há no que se vê algo que se esconde, que se deve conservar escondido, que se deve saber escondido permitindo admirar no que se manifesta o que se oculta. O espanto das imagens mediadas coloca-nos, assim, em contacto com uma zona de não-conhecimento, possibilita-nos algo que de outra forma poderíamos nunca saber, que o que se sabe, que o que se vê, sabe-se em escorço, remetência para algo que é evocado mas nunca fixado. Tal não significa que essas imagens nos remetam para um outro plano ou para uma outra vida, pelo contrário, o espanto é a nossa vida, naquilo que não nos pertence.

A história da fotografia descreve-nos como perante os primeiro daguerreótipos, os espectadores se sentiam perturbados ao ponto de desviarem o olhar. A perturbação nascia do facto de se sentirem olhados pela pessoa retractada, olhados como nunca ninguém os olhou, olhar fixo, sem demora, presente e, contudo, inquietantemente, ausente.

Nas palavras de Agamben, “A imagem fotográfica é sempre mais do que uma imagem; é o lugar de uma separação, de um dilaceramento sublime, entre o sensível e o inteligível, entre a cópia e a realidade, entre a recordação e a esperança.” Era este mesmo dilaceramento sublime que a ciência natural do século XVIII reconhecia nesses seres tão sublimes que para eles não podia haver um nome que definitivamente os nomeasse. Eles teriam de ser nomeados metaforicamente e não apenas por uma imagem mas por inúmeras para que no final, da reunião desses nomes, pudesse surgir uma imagem com um certo sentido identitário, uma imagem que como eles estivesse aquém e além deste mundo. Chamavam-lhes invisíveis, viajantes, vacillators, animáculos. Rapidamente, os instrumentos ópticos tornaram possível descobrir esses inter-seres em todas as coisas sólidas, líquidas ou gasosas, eles estavam nas folhas das plantas e nos caules, numa mão humana e no ventre de um animal, eles estavam no esperma e no ar que respiramos, eles estavam no corpo vivo e na matéria morta, eles representavam a vida que se está permanentemente a perder.


4. A Cultura panóptica

A partir da segunda metade do século XVII verificamos o desenvolvimento de uma nova cientificidade instrumentalmente sustentada. O final do século XVII coincide também com o desenvolvimento do que L. Stewart designa de “Public Science”. Esta public science resulta de dois fenómenos: o estabelecimento por parte dos cientistas de laços entre o interior e o exterior do laboratório, na medida em que se o laboratório é o espaço de análise, ordenação, classificação e arquivo da informação, o exterior é o espaço de observação e registo. Desta forma instrumentos e procedimentos de utilização passam a integrar o espaço público; por outro lado, a orientação utilitarista da nova ciência leva a que muitos dos instrumentos sejam construídos para terem uma aplicabilidade primária nos transportes, na agricultura e na indústria; finalmente, é sabido que os instrumentos científicos eram rapidamente adaptados a funções de entretenimento popular. Desse modo estabelece-se um mercado, um comércio e uma cultura de utensílios, instrumentos, máquinas, manuais de instrução, todo um comércio científico que transporta os objectos e formas de conhecimentos técnicas e cientificas para a esfera pública ao longo do século XVIII.

Impõe-se assim uma nova racionalidade definida a partir das possibilidades oferecidas pela mecanização ao nível da produção material e mental. As novas legislações, que um pouco por toda a Europa vão sendo redigidas, têm bem presente toda a lógica desta razão instrumental e o modo como a mecanização pode ser ajustada ao desenvolvimento de uma nova economia politica. Esta nova racionalidade constrói, alicerçada sobre os princípios da ciência observacional, constrói toda uma cultura da visibilidade.

Torna-se difícil identificar, com rigor, qual o domínio no qual esta nova filosofia da visibilidade surge: podemos identifica-lo nos tratados de politica onde a corrupção e o desperdício são percebidos como efeitos do secretismo, identificamo-lo nas doutrinas morais e no pensamento dos higienistas onde o vicio e a degradação estão associadas à marginalidade ao que acontece no escuro e às escondidas; encontramo-lo numa nova lógica de comércio onde a exposição, a visibilidade de produtos e mercadorias surge garantia de honestidade e rigor; identificamo-lo também, claramente, na observação do funcionamento da máquina metáfora de um funcionamento perfeito, útil, eficaz, sem desperdício, no qual as varias peças colaboram com um objectivo comum e cujo funcionamento está visível, exposto aos olhos de quem o quiser observar. A nossa racionalidade passa à associar o erro, o vício, a doença, a corrupção, o crime, a ignorância ao que está obscuro, ao que é escondido ou mantido em segredo ao mesmo tempo que dignifica o que é iluminado, revelado, manifestado, exposto. O novo valor da exposição, a eficácia da visibilidade, exige no entanto, para ser aplicado ou para ser maximizado, ordenação, normalização, racionalização. Estabelecem-se assim séries de visibilidade e de invisibilidade, por vezes relacionáveis, por vezes permutáveis, esquemas que se vão tornando progressivamente mais complexos, que perpassam pelo pensamento filosófico de Kant na separação entre fenómeno e númeno, que circulam pela literatura fantástica agora dominada por espiões, agentes duplos, seres mutáveis, que atravessam a nova filosofia da natureza atenta à mudança, à metamorfose, mas também à simbiose ao mimetismo, que se materializam enfim com o desenvolvimento de toda uma panóplia de instrumentos auxiliares dos sentidos que ver para além do humanamente visível, ouvir para além do humanamente audível, palpar para além do humanamente palpável, registar para além do que a memória humana consegue registar.

Constrói-se deste modo, em vários domínios que progressivamente passam entre si a cooperar uma máquina de exposição que disciplina espaço, tempo, corpos, objectos de modo a expô-los à uma determinada visão que não apenas o olha mas que os observa com tudo o que a observação moderna passa conter de registante, analisante, ordenante, instrumentalizante.

Esta máquina pode com toda a propriedade ser designada de panóptica. A sua presença tende a criar micro-máquinas que a replicam. São máquinas que integram peças e são máquinas que se reduzem a peça integrando-se noutras máquina.

Encontramos o principio em algumas máquinas de James Watt, encontramo-lo a partir dos anos 80 do século XVIII nos panoramas de Barker, com mais clareza ainda encontramo-lo na fábrica do porto de Portsmouth concebida por Samuel Bentham e que impõe toda uma lógica de visibilidade. Samuel Bentham concebe todo um plano que prevê a distribuição de máquinas e operários garantido uma visibilidade gradante: a máquina é visível para o operário, os operários e máquinas são visíveis para os fiscais que percorrem o corredor a partir do qual se dá a distribuição, por sua vez máquinas, operários e fiscais podem ser observados pelo engenheiro ou pelo industrial a partir de uma plataforma superior. O princípio de visibilidade está também presente na abertura da fábrica aos visitantes, estes podem ser atraídos por simples curiosidade ou por interesse científico. Entre o final do século XVIII e o início do século XIX visitar as fábricas britânicas eram tão popular e tão cientificamente estimulante como ler as descrições geológicas ou zoológicas de um determinado filósofo, observar a lua através de um telescópio ou examinar um pedaço de tecido ao microscópio. Os próprios industriais ganham um novo estatuto científico, o caso de William Strutt, dono de uma fábrica de algodão em Derby e membro destacado da Philosophical Society, é um exemplo entre vários.

A importância dos dispositivos públicos enquanto elementos ordenadores defendida por Samuel Benthan é igualmente sublinhada pelo seu irmão Jeremy na sua obra epistolar onde apresenta a ideia de um novo princípio de construção aplicável a qualquer local onde as pessoas devem ser mantidas sob observação, prisões, fábricas, asilos, hospitais e escolas.

O princípio arquitectónico é bem conhecido, na periferia uma construção em anel; no centro uma torre; esta é rasgada por largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em selas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; cada cela tem duas janelas, uma abre para o interior correspondendo à janela da torre; outra abre para o exterior permitindo a iluminação da cela. Para que um sistema de vigilância funcione basta colocar um vigia na torre central e em cada cela trancar um prisioneiro, um louco, um doente, um operário ou um escolar. O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Quem observa não pode ser observado e quem é observado só pode observar alguém que lhe é igual: um operário observa um operário mas não observa o fiscal que pode observar outro fiscal; o leproso observa outro leproso mas não observa o médico que o observa e que pode observar e ser observado por outro médico. A partir deste olhar que sublinha, dir-se-ia por repetição mecânica, identidade e alteridade, desenvolve-se toda uma lógica funcional normalizadora e instrumentalizadora da vida.


5. CODA

Toda a revelação é desesperante. Há, no que se oculta, no que permanece secreto ou desconhecido, uma extraordinária possibilidade de esperança, que decorre do facto de nos ser permitido imaginar isso que ainda não se manifestou, pura promessa de ser. Mas quando isso se manifesta, irremediável, irrepetível, sabemos que a manifestação conduziu o ser ao seu túmulo e o tornou impossível de voltar a ser.

Adolf Portmann advertia-nos para a diferença, radical diferença, entre dois tipos de manifestações: as manifestações autênticas seriam aquelas que nos aparecem naturalmente, brilhando à luz, sem que o nosso poder operatório as provoque, e as manifestações inautênticas corresponderiam aquelas manifestações que se escondem do nosso olhar e que apenas se revelam à força, através da violência exercida pelos nossos instrumentos.

Forçar a realidade a mostrar-se foi o grande projecto da modernidade que a contemporaneidade prolonga e intensifica. Não deixar nada por revelar, próximo ou distante, nas superfícies ou nas entranhas, e não apenas expor ao olhar, mas cartografar, dissecar, legendar, classificar e arquivar. O arquivo contemporâneo manifesta a actualidade do grande projecto taxinómico moderno, actualizando-o num arquivo multimédia, parcialmente consultável em rede e que nos permite visitar o interior da galáxia ou o interior do nosso corpo, a evolução de um vírus ou o funcionamento do nosso cérebro.

Com os novos media tornamo-nos espectadores que se confrontam com imagens cujo carácter sedutor resulta da extraordinária ausência de correspondência com qualquer fenómeno do mundo natural. O que implica reaprendermos a experiência de ser espectador, apreendermos uma nova técnica da observação e uma nova gramática visual que nos permita fazer a leitura dessas imagens extraordinárias. Este fenómeno tende a estar presente em variadíssimas situações, ele caracteriza o olhar do visitante de um site científico ao observar as imagens do cérebro obtidas por tomografia axial computorizada ou olhar do visitante de um site pornográfico ao observar imagens, obtidas com micro-câmara, do interior de uma vagina. Estas imagens, obtidas através de novos media, possibilitam-nos a mediação com uma realidade unicamente acessível instrumentalmente, uma realidade absolutamente estranha onde é impossível não vermos senão fantasmas, imagens que podem vir a ser revestidas de sentido mas que naturalmente nada são, porque se o acesso é mediado, o saber sobre aquilo a que se acedeu carece, igualmente, de mediação. Que os fantasmas sejam agora tão orgânicos, tão viscerais, menos etéreos e mais carnais, que os fantasmas sejam agora menos incorporais e mais coisas em carne viva é, talvez, um elemento distintivo da nossa época. Como se os fantasmas estivessem dentro de nós e os media – os media digitais e os biomedia – apenas os revelassem.

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