Tuesday, March 11, 2008
REACTOR | ENSAIO
A redução do acaso e dos riscos é projecto central do programa da segunda modernidade, cujo sentido parece residir no desenvolvimento das ciências exactas e da tecnologia, bem como, conjuntamente, no desenvolvimento de um programa ideológico perseguidor de um welfare state e de uma “segurança social” generalizada. O Design é a disciplina programada para a concretização de tal projecto.
Na sua Filosofia do Design, Vilém Flusser define antropologicamente o ser humano como homo faber, sintetizando a sua história técnica em quatro períodos fundamentais, ao mesmo tempo que coloca em evidência o seu local de produção, a fábrica, e o seu agenciamento produtivo, o Design: « Factories are places in which new kinds of human beings are always being produced: first the hand-man, then the tool-man, then the machine-man, and finally the robot-man. To repeat this the story of mankind.».
A história humana seria, assim, a história da sua produção técnica, directamente ligada a meios e dispositivos de produção historicamente disponíveis, ou seja, a história humana equivaleria a uma história do Design na medida em que o Design é a disciplina construtora de agenciamentos produtivos.
A técnica não se dá nunca a ver a não ser em certos dispositivos, aparecendo sempre sob uma forma qualquer. Arnold Gehlen, ao chamar a atenção para a existência de uma conexão profunda entre a técnica e a “estrutura de acção racional dirigida a fins” que impõe formas de uso dessa técnica, mostrava que os agenciamentos técnicos são, antes de mais, de ordem ideológica e que sob uma forma qualquer todo o objecto técnico é um objecto funcional, isto é, um objecto no qual a forma é determinada ideologicamente e pensada como veiculadora e veículante de uma determinada ideologia . É este “funcionalismo” que está debaixo da mira de alguma da filosofia da técnica, no século XIX como “produção” (Karl Marx), no século XX como “reprodução” (Walter Benjamin), nos nossos dias como “Design” (Vilém Flusser) ou como “Design Total” (Mark Wigley).
São dos anos sessenta e setenta os primeiros projectos de espaços urbanos, baseados em modelos de programação e análise territorial inspirados na cibernética e na nova teoria dos sistemas. Pretendia-se desenvolver modelos capazes de um controlo total dos constrangimentos espaciais. O DPM (Design Process Model) de M.L. Manheim é, a este propósito, exemplar. No essencial o DPM, como que operava uma síntese entre a “habitação como máquina de arquitetura” funcionalista e o sistema de objectos neo-funcionalista, regressava-se a uma ambição de materializar em estruturas de HardDesign uma lógica de SoftDesign, é nisso que consiste a “cidade telemática” dos anos sessenta e setenta, a realização material de uma síntese de algo que não é da ordem do material mas que o atravessa e sistematiza. Pense-se na “Computer City” de Crompton, na “Plug-In City” de Cook, na “Walking City” de Heron ou na “Underwater City” de Chalk, o que estas cidades ideais propõem é a construção de um “modelo ecológico”. Tal modelo atravessa quer os interiores – o espaço domestico – quer os exteriores – o espaço público – equalizando-os, mas atravessa o próprio habitante, progressivamente, regulado por uma telemática extensiva que o prolonga, por uma telemática panóptica que o vigia, por uma telemática tendencialmente desmaterial, porque tendencialmente suportada por interfaces mas directas. O habitante desta cidade telemática deriva interface, tal como o habitante do bairro operário deriva máquina, num caso como noutro a cidade não abre para o exterior, porque o exterior, seja o escritório de serviços na cidade telemática, seja a fábrica na cidade operária é apenas uma extensão; não há a possibilidade de se sair para fora do espaço instrumentalizado, mesmo o objecto mais privado, por exemplo a cama, é um instrumento que projecta uma função em articulação com o quarto, outro instrumento que projecta a sua função, em articulação com a casa, outro instrumento que projecta a sua função em articulação com o bairro e, assim, seguindo-se, numa sucessão sem fim, porque o poder político como instrumento maior que contem todos os outros remete por suas vez para todos os outros; de facto não se trata de uma relação entre contentores de diferentes dimensões como nas bonecas russas ou nas caixas chinesas, mas de uma relação em rede, sem centro nem periferia.
No seu estudo Technologies of Freedom , Ithiel Pool mostra como a tecnologia que liberta o utilizador de uma determinada acção, prende o utilizador a uma outra, a inovação de uma tecnologia sobre outra, tem a ver com a inovação de um modelo relacional sobre outro. Pool, reconhece, por exemplo, que a generalização do uso do telefone foi impulsionador dos subúrbios residenciais e da expansão urbana, mas, por outro lado, identificou um idêntico nexo de causalidade na concentração populacional nas áreas centrais da cidade; o telefone aparece, deste modo, no estudo de Pool como meio causador de descentralização e de centralização, de desconcentração e de concentração, levando-o a falar de um fenómeno de “continuidade sem contiguidade” que as telecomunicações fixas, primeiro, e as telecomunicações móveis, depois, vêm impor.
Era Paul Rand quem afirmava que o designer projecta relações; ao se projectar uma cadeira, por exemplo, está-se a projectar um modo de sentar que só pode ser funcionalizado quando integrado na rede de relações que estarão a jusante e a montante do acto de sentar, numa palavra, ao projectar-se uma cadeira projecta-se parcialmente, em detalhe, uma organização de vida. Não andamos aqui longe da interpretação de Mattelart segundo o qual todo o objecto é um recorte particular de uma determinada configuração comunicativa. A cidade é, neste sentido, uma configuração comunicativa do poder do mesmo modo que, em diferentes escalas, a habitação, o interior doméstico, o objecto industrial e a informação também o são.
Diferentes maquinarias de poder põem em acção diferentes maquinarias técnicas das quais resultam diferentes configurações comunicativas do espaço regulador do indivíduo. Num estudo muitíssimo interessante Donald Olsen faz a historiografia da evolução de diferentes configurações comunicativas da cidade, suceder-se-iam assim: “The City as Temple”; “The City as monument”; “The City as Fortress”; “The City as Palace”; “The City as Salon”; “The City as Factory”; “The City as Office”; “The City as Toy”; “The city as Cell”; “The City as Expression of Abstract Idea”. Cada modelo de cidade, mais do que cessando para dar lugar a outro, coexiste com diferentes intensidades de presença no interior de um spatium comum que é o espaço do poder. As diferentes configurações comunicativas que Olsen identifica e às quais poderíamos acrescentar tantas outras, da cidade-escola à cidade-jogo, são afinal intensidades que percorrem o espaço do poder e que poderão dar lugar a territorializações determinadas dominadas pela mesma lógica de poder, por exemplo a escola, o mobiliário escolar e o manuais escolares, enquanto exemplos de materializações ao nível de um aparelho disciplinador (a escola) de um design disciplinador (as cadeiras dos alunos, o estrado do professor) e de informação disciplinadora (os manuais) por relação a uma determinada intensidade que colocará o espaço do poder num processo de devir-escola.
O espaço de poder não é um espaço puramente abstacto e imaterial, se o fosse ele não poderia funcionar, logo não exerceria poder; o espaço do poder deve, antes, ser pensado como “dispositivo”, no sentido heideggeriano, ou como “espaço infraestrutural” segundo a proposta dos economistas Reimut Jochimsen e Knut Gustafsson . Na interpretação de Jochimsen e Gustafsson apresenta-se uma taxinomia da infra-estrutura, pensando-a a partir de três categorias: infra-estrutura material; institucional; e pessoal. Na tecnologia urbana, aplicada na construção da cidade, a infra-estrutura envolvida seria, essencialmente, de ordem material; A tecnologia doméstica, aplicada na definição do espaço doméstico, seria, essencialmente, da ordem da infra-estrutura pessoal. Jochimsen e Gustafsson chamam ainda a atenção, no seu estudo dos anos sessenta, para o que consideram ser um processo de desmaterialização global; tal desmaterialização não pode ser associada à fragilidade das infra-estruturas, pelo contrário a progressiva passagem de infra-estruturas materiais para infra-estruturas imateriais é um sintoma não só da consistência da infraestutura material mas igualmente da consistência do funcionamento do poder que se exerce já não apenas a partir da produção de objectos mas, igualmente, a partir da produção de informação. Não andamos, neste ponto, muito distantes da tese de Althuser da “causalidade estrutural” segundo a qual toda a “existência da estrutura consiste nos seus efeitos”, tal causalidade, sabemo-lo, é metonímica, consistiria na eficácia de uma “causa ausente” (supraestrutural ou metaestrutural), isto é, “a ausência em pessoa da estrutura nos efeitos considerados na perspectiva da sua existência”.
O novo protagonismo das infraestruturas informáticas em detrimento das infraestruturas materiais marca, aliás, um novo capítulo na história recente da redefinição do espaço doméstico. Projectos como o edifício H20 dos NOX, no qual o ambiente se transforma dinamicamente em interacção com o corpo do habitante é disso um bom exemplo. No entanto, não nos afastamos aqui do essencial do projecto moderno, a vontade de projectar extensões ao corpo humano que o limitam, definem e objectivam na precisa correspondência do limite e da definição do objecto funcional. Seja esse objecto pensado como actualização dos objectos membros-humanos, seja como actualização dos objectos-sentimento, para recorrermos à dupla classificação proposta por Courbusier no início do século XX, seja, por outras palavras, esse objecto uma nova prótese física, como algum mobiliário projectado por Diller + Scofidio, seja esse objecto uma nova prótese emocional, como as próteses super-emocionais de Anne Jeitz, estamos ainda no interior de um “jogo de trocas” entre a prática projectual e o exercício do poder, afinal, não nos esqueçamos, o Design é a política continuada por outros meios.
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