Wednesday, May 21, 2008
REACTOR ENTREVISTA LUÍS CARMELO
Luís Carmelo é doutorado pela Universidade de Utrech, professor de semiótica e escrita criativa na Escola Superior de Design, romancista e ensaísta prolífico e, claro, um conhecido blogger e estudioso do mundo da blogosfera. O Reactor conversou com ele numa entrevista de 2007 que, agora, se recupera.
Reactor: Há um post no Reactor intitulado O estado do design. O que é que este título lhe sugere actualmente?
Luís Carmelo: É difícil conceber a ideia de estado – geralmente, uma espécie de redoma imaginária mais ou menos estável onde os fenómenos são um tanto previsíveis – no caso do design. Sobretudo porque o design corresponde a um recorte sempre oscilante, a uma postura de reencontro com os gestos e com os objectos que não cabe em si própria. Esse recorte é das melhores metáforas para a desterritorialização de mundos. Contudo, o “estado do design” poderá também ser entendido como uma espécie de observatório dessas variabilidades, ou dessas ausências de perímetro onde se agenciam moldagens criativas e inesperadas. Tudo se passa, hoje em dia, como se a câmara se colocasse no campo que filma e desse do corpo (que é actor e narrador) a imagem da própria câmara: um vaivém em que as formas jamais se acondicionam sem, no entanto, deixarem de responder à urgência acelerada dos nossos actos, fluxos e delírios.
R: A palavra design identifica cada vez menos um campo disciplinar definido, passando a remeter para uma campo de criação híbrido e difuso. Corresponderá isto a um fracasso ou a triunfo do design sobre a cultura contemporânea?
LC: Já escrevi uma vez que a história do design aparece reflectida numa ideia de criação que funde a dupla formulada por Blumenberg em Trabalho sobre o Mito (a concertação do “Mito” com o “Logos”): de um lado, a dimensão original da poeisis criativa que a arte reivindica e, do outro lado, a racionalidade e a eficácia da abdução aplicada à expressão da cultura material. Ao reunir os dois termos que se amalgamam na invenção moderna – “Mito” e “Logos” –, o design seria, não apenas a consecução plena de uma profecia metafísica (de origem romântica) e de uma conjectura pragmática (de origem racional), mas também o ponto mais alto da actual esteticização generalizada do mundo. Nessa medida, enquanto indefinição que reúne, enquanto hibridismo que afirma, eu creio que o design é sobretudo um território atraente, optimista e sobretudo mobilizador.
R: Há um conceito estruturante do pensamento projectual do Walter Gropius que é o conceito de design total, a ideia é, em síntese, a de que ao designer compete a definição intencional das modalidades de relação social, o design seria, assim, uma disciplina de definição política. Não lhe parece que este "exercício político" do projecto é tão mais eficaz quanto mais imperceptível for e, neste sentido, o carácter difuso do design não poderá ser um sinal da sua eficácia?
LC: A eficácia é uma das matrizes essenciais do design, mas a pertinência que faz de um objecto um objecto com design é sobretudo uma emoção. Dou o exemplo da emergência dos novos materiais que se estão a apresentar à funcionalidade e emoção globais como as novas próteses da nossa cultura material. São simulacros tácteis que podemos fruir com o corpo e com a percepção (cerâmicas flexíveis, espumas metálicas, plásticos condutores, emissores de luz capazes de memorizar as formas, fibras de carbono, etc.). O caso dos polímeros sintéticos é particularmente interessante, já que remete directamente para a mimese das propriedades naturais, preservando os atributos tácteis e alterando se necessário o potencial formal dos produtos. Os objectos e produtos revêem-se, deste modo, como esteios variáveis, estésicos e emotivos que estão para além da forma e função para que foram desenhados (leve vs. resistente, elástico vs. desdobrável, deformável vs. flexível, transparente vs. opaco, etc.). Por outro lado, o desenho da matéria satisfaz cada vez mais o desejo instantanista que nos governa, liofilizando-a e contribuindo decisivamente – repito este dado fundamental – para a generalizada esteticização do mundo (ou não há, hoje em dia, um inesperado museu de arte contemporânea a crescer em todo o espaço à nossa volta, para fora do ‘sagrado’ que aparentemente se institucionalizou após as várias mortes de Deus?).
Por isso, concordo: quanto mais imerso em nós mais imperceptível, mas também mais eficaz, mais colado à ‘respiração dos usos do quotidiano’.
R: Se lhe pedisse uma definição de design...
LC: A desmontagem das ilusões salvíficas transpostas, em larga escala, na construção provisória de mundos. O design é, pois, uma revolução sereníssima que tornou desnecessária a peregrinação apocalíptica do homem até junto ao trono de Deus. A “Visão”, hoje em dia, mais não é do que a reciclagem da euforia acumulada pelo homem ao longo do seu maior projecto de sempre: a crença. O design sucede hoje à crença do mesmo modo que, para Nietzsche, a gramática pretendeu suceder a Deus. O design é, na contemporaneidade, o apogeu de uma história que passou a ser vivida sem clímax nem desenlace. Diria mesmo mais: o design é um paraíso tautológico.
R: O design sempre se caracterizou pela inexistência de um consenso programático, hoje talvez mais evidente devido à falência dos verdadeiros projectos colectivos, a teoria do design sempre oscilou entre uma interpretação do designer enquanto um "agente social" e uma interpretação do designer enquanto um "agente do mercado", parece-lhe haver sentido nesta distinção?
LC: Quando se entra num hipermercado ou no site da Amazon, verifica-se que o espaço é composto pelo fluxo das formas. O design vive em fluxo, autoreproduzindo-se, esgotando a capacidade de uma individualização que se adequasse a uma solução geral e universal. Está lá tudo (um dasein que agencia todos os agenciamentos que estão em curso). A inscrição de qualquer forma na forma desses espaços (hipermercados e sites muito visitados) é sempre um acto de passagem ou uma notação do diferente no diferente. As matrizes iniciais, ao modo dos “pixels”, parecem dissolver-se e ao mesmo tempo corporizar-se nesta nova concepção que poderia ser baptizada como ‘design do design’. Caracterizá-la-íamos como a moldagem do moldado onde cada inscrição, tal como no hipertexto, se submete à provisoriedade (as formas estão em estado de permanente subtracção e adição), à des-subjectividade (enunciação síncrona e plural), à estesia (simultaneidade entre a sinalização e a poiesis), à meta-contextualidade (as formas criam o seu próprio contexto, deixando de haver um “de fora” e “um de dentro” evidentes), à reversibilidade (multimodalidade e coexistência de registos) e ao incorpóreo (no sentido de um agregado inorgânico e descentrado). Não existindo, felizmente, teorias filosófica ou semióticas unificadas do design, parece-nos que esta caracterização do ‘design do design’ poderá pelo menos complementar a noção de C. e P. Fiell, avançada no recente Designing The 21st Century , segundo a qual a “prática do design deve responder a necessidade técnicas, funcionais e culturais e criar soluções que comuniquem significado e emoção que transcendam idealmente as suas formas, estrutura e fabrico” (2005, pp.11-21). Nesta medida, respondendo directamente à questão, creio que a sociabilidade e o mercado são realidades de tal modo íntimas quanto imersas no chamado ‘design do design’. Daí que não me pareça que haja grande sentido em tal distinção.
R: Perante o relativismo dos valores (e, em particular, dos valores do design após a crise do projecto moderno) não será importante os designers mostrarem que existe uma diferença profunda entre a "ética individual" e a "ética disciplinar"? Quero dizer, os valores que orientam o design não podem ser relativos aos valores que guiam o comportamento dos seus profissionais.
LC: É muito difícil projectar na arena da criação de design padrões de natureza ética. O ‘dever ser’ é hoje um campo que aparece massificada e globalmente sublimado pela aura do consumo e sobretudo por aquilo que é o receptáculo e, ao mesmo tempo, o maior agente do design: o corpo. Este efeito de boomerang (que faz com que o design seja quer o motivo quer o resultado) retira margem de manobra para a separação de águas e, naturalmente, de éticas. Nas actividades onde as deontologias são hipercodificadas e até estriadas (caso do jornalismo), tudo ou quase tudo se passa no limbo onde o possível e o impossível permutam e, por vezes, parecem pactuar. No entanto, em terrenos de tipo emergente – como o são os do design dos nossos dias –, as regras procuram ocupar um espaço que se confunde com esse limbo. E é aí que os criadores objectivam e partilham o possível e o impossível. Ou seja: sem grande capacidade de darem conta de diferenças profundas entre os níveis éticos referidos na pergunta.
R: Historicamente, o design foi sendo pensado como uma disciplina de dimensão utópica. Ainda há espaço para utopias no mundo contemporâneo?
LC: Não. As utopias foram espaços de sobrevivência que ampliaram narrativas e sentidos de vida. Hoje há hierofanias utópicas e sobretudo duas: uma relativa aos ‘milagres’ da comunicabilidade e outra relativa à habitabilidade do presente (uma ‘para-utopia’ defensiva). Tal como respondi mais acima (pergunta 4 sobre uma definição de design), o design é, hoje em dia, um espaço (quase) utópico – por isso mobilizador – mas vocacionado para viver e ser criado num mundo sem utopias (tradicionais: escatológicas ou de teor ideológico).
R: Recordo-me de uma utopia particular, Xanadu do Ted Nelson. Como olha para o actual estado do ciberespaço e da blogosfera em particular?
LC: O ciberespaço é a abertura a uma segunda humanidade. E o que a dita é sobretudo um novo tipo de mobilidade e de aparecimento subsumido, por sua vez, a um novíssimo registo temporal (a tentação da instantaneidade) e de espaço. A instantaneidade – aspecto que ainda é fundamental – é geradora de simulações e de prestidigitações e tende por isso a criar cenografias que sempre foram auguradas nas culturas axiais ou escatológicas (a salvação, a perfeição, a metamorfose imediata, a visão mística). O on-off dos ‘ciberaparelhamentos’ é, hoje em dia, por isso mesmo, a grande catarse das antigas narrativas salvíficas e a sua superação e continuidade, de algum modo, também. Daí que o reino do presente esteja a reduzir o passado a uma espessa "amnésia colectiva" (Bertolucci) e se tenha, por outro lado, tornado anfitrião de um futuro que, tradicionalmente, sempre foi o local onde se projectavam idealidades de todo o tipo. Um certo niilismo e uma profunda cautela que reservo face a todo o tipo de “utopias” (incluindo as que se projectarão na sociedade de informação) têm aqui a sua fonte. O que não quer dizer que não olhe para este magnífico presente como se fosse uma ponte criativa que une um mundo ‘catalogável’ que já foi e um outro, seguramente tentador, que virá. Um “Iluminismo” de nome novo, ou melhor ainda: inomeável. O design é um dos emblemas desta travessia que caracterizamos como presente.
R: Quais são os seus blogues de referência?
LC: Não tenho blogues de referência, tenho blogues que visito. As preferências, sempre instáveis por natureza, dependem de novas formas de contrair empatias. Ou seja, os novos tipos de comunicação que se estão a processar na rede não pressupõem apenas uma questão de “tom”, ou seja, da procura expressiva que tenta adequar-se ao novo medium, mas pressupõem também, e sobretudo, uma novíssima questão que aparece associada à interacção entre mundos, euforias, emoções e afectos – com realce para a área do “não dito” – que se desencadeia entre quem navega (seja nos níveis da chatsfera, da blogosfera ou da mediasfera). É este tipo de ciberempatias que geralmente organiza os menus dos blogues, ou seja, as listas permanentes de links que um blogue escalona no seu próprio menu. “Lincar” e “deslincar” tornaram-se, hoje em dia, formas muito frequentes de entender o relacionamento entre o que se expressa na rede: e tanto mais se linca e deslinca quanto mais as identificações se tornam vulneráveis e, claro, atractivas e cúmplices ou, ao invés, desinteressantes e sórdidas. Seja como for, é neste caudal cruzado da vida em rede – com destaque para o caso da blogosfera – que se tem vindo a renovar o significado da noção de amizade e de apego por um lado eminentemente personalista da enunciação. Por uma questão de elegância, prefiro não aflorar os meus links e visitas mais insistentes dos últimos tempos.
R: Que pergunta acrescentaria a esta entrevista? E que resposta ela lhe mereceria?
LC: O que é que o design hoje significa que, antes – na modernidade ainda crente – era significado de outros modos? Porventura – e esta é já a resposta – os padrões do dever com que o altar do destino e as engenharias sociais parodiaram o desejo e o potencial usufruto da felicidade e da liberdade individual.
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- REACTOR é um blogue sobre cultura do design de José Bártolo (CV). Facebook. e-mail: reactor.blog@gmail.com
1 comment:
É por estas e por outras que a teoria do design tende a ser esquecida e ignorada por alunos de Design.
Só li a primeira resposta e a tendência é complicar o português e a forma de escrever e construir as frases. Esta estratégia apenas faz com que a leitura se torne lenta, aos soluços, com re-leituras, fazendo com que o leitor perca o interesse.
Em suma, faz-nos pensar que somos muito estúpidos e que o autor é muito inteligente. Mas, a realidade não é essa. É mais fácil complicar do que expor ideias complexas de uma forma simples, acessível, mas simultanemante potencialmente complexa e densa.
Infelizmente, esta abordagem continua a prevalecer.
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